Sumário: 1-A Norma o Estado e o Direito Penal. 2- Questões concretas: interpretação e aplicação da norma penal. 3- O Juiz e o Direito Penal. 4- Conclusões
1-A Norma, o Estado e o Direito Penal
Embebidos na nossa realidade diária, pontual no tempo espaço, raramente nos damos conta de que esta mesma realidade social é fruto de um processo histórico, pois é certo que a sociedade, como a conhecemos, não existiu desde sempre.
Noções que nos são tão caras, como lei, Estado, governo não são institutos naturais. São construções humanas, reconhecidas a partir de um ponto no desenvolvimento da humanidade, e dentre elas, o Direito representa sem dúvidas uma das pilastras da sociedade como hoje ela se apresenta.
O Direito surge da inarredável conclusão de que é preciso estabelecer parâmetros de comportamento, regras de conduta que possam viabilizar a convivência em sociedade dentro de uma perspectiva racional, e dentro do Direito, as diversas espécies de relações humanas recebem diferenciado tratamento, conforme seja sua natureza.
Ao Direito Penal restou o papel de ser o instrumento mais incisivo do Estado, resultado da sociedade organizada, para intervir nesta mesma sociedade, conformando comportamentos a uma pauta predefinida. Se determinado comportamento fere esta pauta, estabelecida a partir de um juízo de valoração, há a interferência do Estado, visando aplicar uma sanção estabelecida, caracterizando um mecanismo de coerção.
Mas o Direito Penal, por isso mesmo, ou seja, pela gravidade de que se revestem as conseqüências das situações fáticas por ele tratadas e da sua própria aplicação, é um campo espinhoso, e é sabido que foi, e ainda é, utilizado como mecanismo de opressão.
Nesta ótica, percebe-se o valor da norma penal, vale dizer, do tipo, como mecanismo de regulação e limitação do espectro penal. De fato, o Direito Penal trabalha com tipos, que por serem normas de limitação, devem ser claros, precisos, e interpretados e aplicados sem que se olvide sua natureza e função.
Não há sociedade, não há Estado sem o Direito Penal, ou mecanismos de conformação de condutas equivalentes, e o Direito Penal no Estado Democrático de Direito, deve escudar-se no primado da legalidade, da norma positivada, produzida de forma legítima pela instância legislativa representativa, pois todo o poder emana do povo, conforme apregoa o artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal.
Esta constatação, contudo, não torna a aplicação do Direito Penal uma ação de subsunção mecânica. De par com sua função puramente funcional, a norma deve agregar o valor, deve ser axiologicamente dimensionada.
Parte desta tarefa é feita pelo legislador e parte pelo juiz.
É então que me pergunto: qual deverá ser o papel do juiz frente ao direito penal? Até onde pode ir sem comprometer a independência dos poderes e a objetividade que permeia (ou deve permear) a norma positivada?
É o que me proponho a analisar diante de algumas questões concretas no âmbito do Direito Penal e da Execução Penal.
2- Questões concretas: interpretação e aplicação da norma penal.
Algumas questões concretas podem servir de paradigma para uma reflexão acerca do papel do juiz ao aplicar o Direito Penal.
A Lei nº 8.072/90 estabelece que o cometimento de crime hediondo ou equiparado não poderá ser beneficiado por liberdade provisória e deverá cumprir pena em regime integralmente fechado. Não obstante, há várias decisões que concedem liberdade provisória quando ausentes os requisitos da prisão preventiva e concedem progressão de regime quando não tenha a sentença estabelecido de forma explícita ou implícita que o regime é integralmente fechado.
A Lei nº 8.072/90 recebe inúmeras críticas em prestigiosos setores da doutrina e na jurisprudência. Especificamente no que tange à progressão de regime, pertinente a citação de Alberto Silva Franco, que afirma:
"O § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90 proíbe, em relação aos crimes hediondos e aos a eles equiparados, o regime progressivo de cumprimento da pena privativa de liberdade, lesando desse modo, ao mesmo tempo, os princípios constitucionais da legalidade, da individualização da pena e da humanidade da pena." (1)
O citado autor, após mencionar que o preso não pode ser manipulado como um objeto, referindo-se ao princípio da legalidade da execução da pena (no que lhe assiste plena razão), complementa:
"Por sua vez, o princípio constitucional da individualização da pena, mercê do regime prisional progressivo, insere-se no tronco comum do processo individualizador que se inicia com a atuação do legislador, assa pela ação do juiz, e se finda, ao atingir o nível máximo de concreção. na execução da pena. Destarte, excluir, legalmente o sistema progressivo é impedir que se faça valer, na sua fase final, o princípio constitucional da individualização. Lei ordinária que estabeleça, portanto, regime prisional único sem possibilidade de nenhum tipo de progressão atenta contra tal princípio e revela expressa ofensa a preceito constitucional. Mas não é só. A exclusão legal do sistema progressivo conflita também com o princípio constitucional da humanidade da pena, que na expressão de Jescheck (Tratado de Derecho Penal, 3a ed. 1993, p. 23), ‘se converteu no pensamento reitor da execução penal’. Pena executada com um único e uniforme regime prisional, significa pena desumana, porque inviabiliza um tratamento penitenciário racional e progressivo; deixa o recluso sem esperança alguma de obter a liberdade antes do termo final do tempo de sua condenação e, portanto, não exerce nenhuma influência psicológica positiva no sentido de seu reinserimento social; e, por fim, desampara a própria sociedade na medida em que devolve o preso à vida societária após submetê-lo a um processo de reinserção às avessas, ou seja, a uma dessocialização." (2)
Data venia, nenhuma destas críticas se sustenta.
O estabelecimento de um regime integralmente fechado não implica em tratar-se o apenado como um objeto. Regime não tem nada a ver com tratamento do preso. Não há incompatibilidade alguma. O apenado não perde a condição de titular de direitos, sem dúvida, e principalmente, não perde a condição de ser humano, como tal devendo ser tratado. Mas impedir-se a progressão de regime não significa dar-lhe outra condição que não esta.
A Constituição Federal em momento algum estabeleceu a progressão como regra. Esta foi estabelecida por lei ordinária e pode ser proibida por lei ordinária sem qualquer espécie de ofensa à legalidade ou à Constituição.
Da mesma forma, é perfeitamente possível compatibilizar a individualização da pena com a execução em regime integralmente fechado. O mérito do condenado no cumprimento da pena pode ter diversas repercussões positivas sobre esta execução, não sendo a progressão a única possível.
Individualizar a pena na fase de execução é dimensionar esta execução de acordo com o mérito do condenado, o que pode ser feito através da concessão de vários benefícios. Vários exemplos podem ser referidos como acesso a lazer, espécies de serviços internos, maior tempo fora da cela, etc..
Não há nenhuma regra ou princípio lógico que limite as medidas de individualização da execução à progressão de regime. A sanção foi dimensionada pelo legislador e mensurada pelo julgador em vista do caso concreto. Deve, portanto, ser cumprida em sua íntegra, diferenciando-se a forma de cumprimento de acordo com o merecimento de cada um, avaliado através de critérios objetivos e legalmente estabelecidos.
O que não se pode admitir é tomar-se um único benefício possível como paradigma e afirmar-se que a sua ausência gera prejuízo à individualização da execução da pena.
E são estas outras formas de benefícios que podem servir de estímulo para que o apenado tenha um bom comportamento. A progressão de regime é uma forma de estímulo mas não a única, e, diga-se de passagem, causa mais prejuízo do que benefício à sociedade, porquanto reduz significativamente a eficácia repressiva da pena.
Admitir-se a progressão de regime em crimes hediondos implica, por exemplo, admitir-se que um condenado por homicídio qualificado a uma pena de 12 anos possa estar nas ruas em pouco mais do que três anos. E o pior é que os jurados julgam pensando na pena formalmente imposta e não na que efetivamente será cumprida.
A possibilidade de progressão não é uma regra absoluta. Sua inserção no regime jurídico depende de uma opção político-legislativa que deve ser tomada pelo legislador. Não se trata, como alguns parecem fazer crer, de um princípio absoluto.
O que não é possível é que se continue a pensar em delinqüentes "ideais", passíveis sempre de "ressocialização" de "reinserção social", e se feche os olhos para as realidade dos índices de violência brasileiros. Só o medo de uma situação ainda pior pode obstar quem nada tem a perder.
Aliás, falar-se em ressocialização e reinserção social é uma perspectiva profundamente paradoxal em relação a um direito penal humanitário e do fato. Fala-se do apenado como se ele estivesse fora da sociedade, como se seus valores devessem ser mudados.
Ora, em um Estado Democrático cada um pode ter os valores, certos ou errados, que quiser cultivar. Ninguém, nem mesmo o Estado pode obrigar quem quer que seja a ter determinado valor como correto.
O que o Estado pode, isso sim, é exigir determinado comportamento, comissivo ou omissivo, em vista da prejudicialidade em relação a outras pessoas ou mesmo ao próprio Estado. A pretendida ressocialização, portanto, encerra na verdade uma violência psíquica contra o apenado, tomando-o verdadeiramente, esta sim, como um objeto moldável. O indivíduo não tem o dever de pensar de determinada forma, ele tem o dever de comportar-se de determinada forma sob pena de sanção. Ele não pode ser obrigado a reinserir-se em um status quo.
Mas ainda que se admitisse o cabimento de uma "ressocialização" é de ponderar-se que ela muito pouco funciona. Basta verificar a quantidade de deliqüentes hoje presos que apresentam algum envolvimento anterior com infrações penais (são a grande maioria) embora tecnicamente primários.
Em síntese, a pena não pode ter uma função educativa, pelo simples fato de que uma medida de força do Estado não pode ser utilizada para compelir o indivíduo a pensar desta ou daquela forma. Isso é arbitrariedade.
Por fim, quanto ao fato de ocorrer uma "reinserção às avessas", é de se lembrar que ela é uma conseqüência da situação carcerária brasileira, e não será afastada ou diminuída pelo fato de após um tempo o apenado sair do cárcere antes do que previsto para o término da pena. O só fato de estar condenado e encarcerado, independentemente do tempo já serve de estigma. Isso somente será afastado quando as penitenciárias oferecerem educação e trabalho. Por outras palavras, não é a aplicação da progressão ou do livramento condicional o fator decisivo.
O artigo 61, inc. I, contempla o instituto da reincidência, consagrado de longa data em nosso direito. Decisões há que afastam a aplicação da reincidência ao argumento de que seria inconstitucional, implicando bis in idem. A respeito, Alberto Silva Franco, após referir que nem sempre o reincidente apresente maior culpabilidade, assertoa: "Por outro lado, mostra-se hoje, bastante duvidosa, em sua constitucionalidade, a agravação obrigatória da pena, em razão do agente ser reincidente", e complementa, "não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração." (3)
José Antônio Paganella Boschi, após mencionar a doutrina de Muñoz Conde (contrário à reincidência) e de Mirabete (favorável), conclui:
"A primeira orientação é, sem dúvida, consentânea com o princípio que proíbe a dupla valoração da mesma circunstância. É, também, a que melhor reflete a tese de que a reincidência não pode ser sempre e necessariamente justificada como imperiosa punição ao condenado que, por má formação, desvio de conduta, tendência ao crime, insiste em continuar violando a lei, como tradicionalmente se afirma, mas, isto sim, pode e deve ser compreendida, também, como a expressão final do processo perverso de estigmatização do homem pela prisão e da absoluta falta de políticas de amparo ao egresso, criadoras de novas oportunidades para a harmônica reintegração ao mundo livre pelo trabalho, pela edificação de moradia, pela reconstrução da família." (4)
Lênio Luiz Streck é ainda mais incisivo. Diz ele:
"E o que dizer da reincidência? No nosso Código penal, a reincidência, além de agravar a pena do (novo) delito, constitui-se em fator obstaculizante de uma série de benefícios legais, tais como a suspensão condicional da pena, o alongamento do prazo para deferimento da liberdade condicional, a concessão de privilégio do furto de pequeno valor, só para citar alguns. Esse duplo gravame da reincidência é antigarantista, sendo, à evidência, incompatível com o Estado Democrático de Direito, mormente pelo seu componente estigmatizante, que divide os indivíduos em ‘aqueles-que-aprenderam-a-conviver-em-sociedade’ e ‘aqueles-que-não-aprenderam-a-conviver-em-sociedade.’" (5)
Primeiramente, a reincidência não está punindo o infrator pelo fato anterior. A sua punição é pelo delito atual, no qual está sendo julgado. A condenação anterior é tomada como um simples fato, indicativo de que o réu merece maior censura. De fato, se já foi condenado anteriormente, melhor do que ninguém está advertido das conseqüências do cometimento de um delito, e sabe, ou deve saber, que a condenação anterior irá repercutir negativamente sobre nova eventual infração. É maior a exigência de ação conforme os fins da lei.
E nem se diga que o Estado é também responsável por submeter o apenado a um regime "desumano e marginalizador", pois tal argumento não seria válido para os condenados que tiveram sua penas substituídas por penas restritivas de direitos. Quantos processos criminais redundam em penas de prisão atualmente, com a larga aplicação das penas restritivas de direitos?
O que há é uma presunção iure et de iure de maior censurabilidade, que, tecnicamente, não é punição por fato anterior. Aliás, afirmar-se que neste caso estaria havendo bis in idem faria com que o mesmo argumento fosse utilizado para afastar-se as conseqüências previstas nos artigos 91 e 92 do CP. Não há nestas conseqüências um verdadeiro bis in idem?
O artigo 123 da LEP condiciona a concessão do benefício de saída temporária a uma decisão judicial específica e à prévia manifestação do Ministério Público. Em algumas comarcas, porém, existem portarias autorizando a concessão das saídas pela própria administração carcerária, de forma automática.
A execução da pena está adstrita ao princípio da legalidade. Disso não resta dúvida. A lei estabelece, em numerus clausus, quais os direitos do apenado são tolhidos e em que medida isso ocorre. Estes, e nenhum outro, podem ser atingidos.
Por este motivo, a atividade de execução da pena é jurisdicional, e não meramente administrativa, e deve contar com um sistema múltiplo de controle recíproco entre os envolvidos: apenado, administração carcerária, Ministério Público e Poder Judiciário.
Especificamente no caso do Ministério Público, preconiza o artigo 67 da LEP que "fiscalizará a execução da pena e da medida de segurança, oficiando no processo executivo e nos incidentes da execução." Através deste dispositivo, "confere-se ao parquet a função de promover a observância do direito objetivo, atuando imparcialmente na verificação dos requisitos legais para o estrito cumprimento do título executivo penal" (6), pois "nem sempre o interesse da Administração confunde-se com os interesses genéricos e maiores de toda a coletividade, devendo o Ministério Público defender estes, orientando sua fiscalização para que se perfaça a exata aplicação da lei penal, processual e de execução penal." (7)
Se a saída temporária está adstrita a requisitos específicos, se a oitiva do Ministério Público é sempre indispensável e se há necessidade de uma decisão judicial fundamentada (artigo 93, inc. IX, da CF/88), então é evidente que a concessão de saídas pela administração carcerária é ilegal.
Realmente, como bem lembrou o Desembargador Luis Carlos Avila de Carvalho Leite no julgamento do Agravo em execução nº 70008313439: "Essas ordens de serviço foram editadas pelo próprio prolator da decisão. Em outras palavras, ‘legislou’ e ‘aplicou sua própria lei’. Assumiu as funções de legislador e de julgador". Adiante prossegue:
"Em segundo lugar, as saídas temporárias não dependem da livre escolha do apenado, mas devem ser motivadas em um dos permissivos legais, todos eles elencados no art. 122 da LEP. Não há saída por sair, mas saída plenamente justificada, cuja motivação deverá ser sopesada pela autoridade judiciária, e não pelo administrador do presídio. Porque a lei admite saídas temporárias não significa que sejam elas desmotivadas. Assim como definido nas ordens de serviço, tem-se a nítida impressão de que se está transformando um cárcere, que é casa destinada a cumprimento de penas, em razão de condenações trânsitas em julgado, em uma colônia de férias em que o administrador do presídio se transforma em um verdadeiro agente de turismo"(grifo no original)
"Em terceiro lugar, a saída temporária deve ser examinada previamente, caso a caso, mediante fiscalização do Ministério Público. A combatida ordem de serviço transfere o controle ao administrador de presídio, que apenas informa após o gozo do benefício, quando a saída já se consumou, impedindo a devida atuação do órgão ministerial, que se vê, dessa forma, alijado do processo"..
E conclui: "Ora, mais não é preciso dizer. Eliminada ficou a fiscalização prévia a ser exercida pelo Ministério Público, pois até dispensada foi a própria decisão judicial. O administrador do presídio é quem define, de forma isolada, as saídas do presídio. Com isso, a decisão impugnada violou o art. 123 da LEP."
As questões acima tratadas espelham apenas algumas das dezenas que se formam pela diversa interpretação e aplicação da lei e suscitam uma outra mais abrangente: Qual o papel do Juiz frente ao Direito Penal, ou por outras palavras, até onde ele pode ir na flexibilização da lei?