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Federalização dos crimes contra os direitos humanos

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23/05/2005 às 00:00
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Uma das mudanças da Emenda Constitucional nº 45 diz respeito ao incidente de deslocamento de competência, criado pela modificação do art. 109 da Constituição Federal, que cuida da competência dos juízes federais.

"Justiça tardia não é Justiça, é injustiça manifesta" (Rui Barbosa)

"A demora na administração da justiça constitui, na verdade, pura denegação de justiça", conforme conhecida parêmia, atribuída ao Conselheiro De la Bruyère" (José Rogério Cruz e Tucci, em Tempo e processo).


1. Introdução

A Emenda Constitucional nº 45, que reformou parcialmente o Judiciário brasileiro, foi promulgada em dezembro de 2004 e, desde então, tem rendido várias e boas polêmicas. Uma das mais interessantes diz respeito ao incidente de deslocamento de competência, instituto criado por meio da introdução de um novo inciso e de um novo parágrafo ao artigo 109 da Constituição Federal, que cuida da competência dos juízes federais.

Com efeito, o artigo 109, inciso V-A, passou a prever que também compete aos juízes federais processar e julgar "as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo ". E o parágrafo 5º estatui:

"§5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal ".

É justamente nesse parágrafo que estaria uma relevante e controvertida questão constitucional, no entendimento da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) (1) e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Tanto que esta última, no início de maio de 2005, ajuizou a ADIN 3486/DF, com pedido de medida cautelar, para que o STF venha a declarar a inconstitucionalidade da EC 45/04 exatamente na parte em que instituiu o incidente de deslocamento de competência (IDC). Foi sorteado relator da ação o ministro Cezar Peluso, oriundo da magistratura paulista.

Várias organizações não-governamentais de direitos humanos e organismos internacionais, assim como a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) (2), são favoráveis ao incidente de deslocamento. A expectativa é de que o Supremo Tribunal Federal defina os limites e pressupostos do IDC, mas rejeite a ADIN. Aliás, a posição da AMB não surpreende, já que, durante a tramitação da PEC 29/00 (Reforma do Judiciário), a associação de magistrados sugeriu emenda para suprimir o IDC do texto original e, alternativamente, tentou modificar o incidente para que só fosse possível sua instauração durante a fase pré-processual.

A seguir, analisaremos algumas características do incidente de deslocamento de competência e apontaremos razões pelas quais esse novo e importante instituto deve ser mantido no ordenamento jurídico.


2. O incidente de deslocamento de competência (IDC)

É antiga a luta de organizações de defesa da pessoa humana para instituir no Brasil a federalização dos crimes contra os direitos humanos, o que resultou na inclusão da proposta no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) de 1996. No espaço legislativo, a primeira iniciativa materializou-se com a PEC 368-A/96, do Poder Executivo, que acabou sendo incorporada à PEC 96/92 (mais tarde PEC 29/00, no Senado), da Reforma do Judiciário, convertendo-se, oito anos depois, na EC 45/04.

A construção da tese da federalização dos delitos contra os direitos humanos encontrou substrato na escalada da violência e da impunidade em várias regiões do País. São exemplos os massacres, chacinas e crimes de mando ocorridos em Eldorado dos Carajás, Vigário Geral, Carandiru, Parauapebas, Xapuri, Candelária e Queimados, só para citar alguns dos mais recentes. A atuação de grupos de extermínio em várias cidades brasileiras, somada à impunidade generalizada, fez crescer as pressões internacionais sobre a União, responsável, no plano externo (artigo 21, inciso I, da Constituição Federal), pelo cumprimento das obrigações decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos.

Esse cenário negativo acabou por ser o catalizador que faltava para o efetivo estabelecimento de uma nova vertente processual para a defesa dos direitos da pessoa humana, quando violados no Brasil, em consonância com a internacionalização do direito humanitário e com a admissão da personalidade jurídica internacional da pessoa humana.

Pode-se conceituar o IDC como um instrumento político-jurídico, de natureza processual penal objetiva, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos, previstos (3) em tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro seja parte. Cuida-se de ferramenta processual criada para assegurar um dos fundamentos da República: a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF) e para preservar um dos princípios pelos quais se guia o País nas suas relações internacionais e obviamente também no plano interno: a prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, II, CF).

Sendo também, como me parece, uma garantia individual, o IDC tem aplicação imediata, por força do artigo 5º, §1º, da Constituição Republicana. Essa sua natureza decorre da sua própria finalidade, qual seja, a efetiva prestação da jurisdição nos casos de crimes contra os direitos humanos, servindo primordialmente aos interesses da vítima e da sociedade, no ideal de segurança jurídica e de reparação, mas também prestando-se a resguardar a posição jurídica de autores de delitos, no que diz respeito à duração razoável do processo (4) e ao respeito aos seus direitos fundamentais por parte dos Estados-membros e do Distrito Federal.

Alvo de severas críticas, o incidente de deslocamento não revela, como alguns querem ver, qualquer nota de desconfiança preconcebida quanto à atuação da Justiça das unidades da Federação (5). Trata-se tão-somente de um instrumento vocacionado a preservar a responsabilidade internacional do Brasil perante cortes e organismos internacionais (como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (6), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (7), a Organização dos Estados Americanos e, por via indireta, o Tribunal Penal Internacional (8)) e de efetiva proteção aos direitos humanos em nosso território, em virtude da internacionalização do direito humanitário e das obrigações derivadas de inúmeras convenções universais firmadas pelo País, como o Pacto de Direitos Civis e Políticos (Nova Iorque, 1966), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José, 1969), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989) e o recente Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (9), e as convenções da ONU contra a tortura e para a eliminação de todas as formas de discriminação racial, por exemplo.

A federalização de crimes desta ordem encontra respaldo no direito comparado (10). Segundo FRANCISCO REZEK (11), "Em geral, nas federações os crimes dessa natureza, os crimes previstos por qualquer motivo em textos internacionais, são crimes federais e da competência do sistema federal de Justiça. Isso tem várias vantagens, como uma jurisprudência uniforme, uma jurisprudência unida, a não tomada de caminhos diversos segundo a unidade da federação em que se processe o crime. É vantajoso e é praticado em outras federações".

Como instituto processual penal, o IDC deve ser visto em consonância com o novo inciso LXXVIII do artigo 5º da CF, também introduzido pela EC 45/04, que a todos assegura, no âmbito judicial e administrativo, "a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação ". Tais dispositivos coexistem no plano genético com a regra do §3º do artigo 5º da Constituição, que equiparou a emendas constitucionais os tratados de direitos humanos que venham a ser aprovados, em dois turnos de votação, por maioria qualificada de três quintos dos membros das duas casas do Congresso.

Neste sentido, o deslocamento de causas de competência da Justiça estadual para a Justiça federal é justamente mais um desses meios que garantem a celeridade da tramitação de processos. Trata-se de uma garantia individual posta à disposição tanto de acusados quanto de vítimas de delitos. Em caso de arquivamentos indevidos, omissão ou demora injustificável na prestação jurisdicional em causas de direitos humanos, podem os interessados provocar a federalização, dirigindo-se ao Procurador Geral da República, que, então, decidirá sobre a instauração do incidente, não sem antes realizar uma apuração preliminar.

De fato, cabe ao Procurador-Geral da República, na condição de promotor natural, em qualquer fase da investigação (12) ou do processo (13), suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, quando presentes três pressupostos objetivos: a) prática de grave crime contra os direitos humanos; b) possibilidade de responsabilização internacional do Brasil; c) omissão, leniência, excessiva demora, conluio ou conivência dos órgãos de persecução criminal do Estado-membro ou do Distrito Federal (14).

Citando a professora FLÁVIA PIOVESAN (15), o Procurador-Geral da República CLÁUDIO FONTELES afirma "[...] a possibilidade de se promover o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, verificando como preenchido os requisitos acima mencionados na excepcional situação de demora injustificada na investigação, processo ou julgamento de graves violações de direitos humanos ou quando haja fundado receito de comprometimento da apuração dos fatos ou da atuação da Justiça local , argumentando que tal hipótese ‘está em absoluta consonância com a sistemática processual vigente (vide o instituto do desaforamento), como também com a sistemática internacional de proteção dos direitos humanos (que admite seja um caso submetido à apreciação de organismos internacionais quando o Estado mostra-se falho ou omisso no dever de proteger os direitos humanos’)" (16).

Embora ainda não exista norma regimental regulamentando o procedimento do novo instituto, a Resolução n. 06/05 da Presidência do Superior Tribunal de Justiça, determinou que o incidente deve ser apreciado pela 3ª Seção do STJ, composta pelos ministros da 5ª e 6ª Turmas do tribunal, entre os quais se escolherá o relator. Ouvida a autoridade judiciária estadual suscitada (17), o procedimento será submetido a julgamento colegiado.

Entendemos que deve ser conferida oportunidade ao Ministério Público Estadual e ao réu ou investigado para se manifestarem no incidente, em nome do contraditório, da ampla defesa (art. 5º, LV, CF) e do devido processo legal, porque são ou serão partes na relação jurídica processual estadual. Afinal, no que diz respeito ao Ministério Público Estadual, que até então era o dominus litis, ter-se-á a supressão da atribuição constitucional para a persecução (art. 129, I, CF), razão pela qual deverá ser ouvido para exercer a defesa de seu espaço de atuação (18). E, no que se refere ao suposto autor do delito, deve-se assegurar em todos os eventos processuais a oportunidade de manifestação e contra-argumentação, já que está em jogo o seu jus libertatis. Não seria demasiado permitir oportunidade para que as vítimas ou seus representantes legais se fizessem ouvir no incidente, nos mesmos moldes em que se admite a assistência de acusação nas ações penais públicas (19).

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Em síntese, o IDC pode ser conceituado como:

  • a) incidente processual penal objetivo, de base constitucional, para modificação horizontal (20) da competência criminal em causas relativas a direitos humanos (ratione materiae);

  • b) garantia individual de efetividade da Justiça Criminal e de razoável duração do processo penal;

  • c) mecanismo de sucessão ou substituição da atividade da Justiça dos Estados ou do Distrito Federal pela Justiça da União, dentro do esquema de federalismo cooperativo (21), nos casos de violação a direitos humanos;

  • d) instrumento político destinado a resguardar a responsabilidade do Estado soberano perante a comunidade internacional, em função de tratados de proteção à pessoa humana firmados pela União (22);

  • e) incidente processual que tem em mira a redução da impunidade e a concreta proteção dos direitos humanos.


3. O IDC, a ação interventiva e outros "deslocamentos"

Não é nova no sistema constitucional brasileiro a possibilidade de intervenção federal nos Estados e no Distrito Federal para a garantia dos direitos humanos.

Em situação similar à autorizada pelo IDC, o artigo 34, inciso VII, alínea ‘b’, da Constituição Federal permite à União intervir nos Estados e no Distrito Federal para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana. Conforme o artigo 36, inciso III, a decretação da intervenção dependerá de provimento pelo STF de representação do Procurador-Geral da República.

Como se percebe, o incidente de deslocamento é uma forma alternativa, mais sutil e menos traumática, de intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal, para atender aos mesmos objetivos já consagrados no artigo 34 da Constituição. Na verdade, não se tem propriamente uma intervenção. Trata-se de atuação complementar da Justiça Federal, em virtude de negativa ou retardo de prestação jurisdicional pelos entes subnacionais. Da mesma forma que na intervenção federal, o legitimado para provocar o incidente é o Procurador-Geral da República, que deve dirigir-se, todavia, ao Superior Tribunal de Justiça para a fixação final da competência. Esta sempre será federal em potência. Vale dizer: doravante todos os crimes contra os direitos humanos previstos em tratados internacionais são virtualmente de competência federal. Basta que estejam presentes os pressupostos do deslocamento, para que se dê a substituição da jurisdição estadual/distrital pela federal. Cuida-se então de uma assunção de competência condicionada ao atendimento de certos requisitos, ordenada pelo Superior Tribunal de Justiça.

A opção do constituinte derivado pelo STJ (e não pelo STF) no julgamento do IDC deve-se ao próprio regime de distribuição de competências dos tribunais superiores na Constituição de 1988. Pois o STJ, tribunal encarregado da uniformização da interpretação da lei federal em todo o País, é a corte competente para decidir conflitos de competência entre juízes vinculados a tribunais diversos (artigo 105, inciso I, alínea ‘d’, da CF). E é exatamente uma espécie de "conflito" de competência que o STJ decide quando julga o incidente de deslocamento, pois, nos casos de grave violação a direitos humanos previstos em tratados internacionais, há uma competência virtual ou potencial da Justiça Federal que se pospõe à competência tradicional da Justiça Estadual, para esses mesmos delitos, caso esta se revele ineficiente.

Verificada a similitude do IDC com o sistema de intervenção federal, é válido realçar que o novo incidente tem outros precursores constitucionais. De fato, por força do artigo 144, §1º, inciso I, da Constituição, a Polícia Federal, que é a polícia judiciária da União, pode apurar "infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme " (23). O texto deste dispositivo atende ao dever internacional de persecução (24) dos crimes previstos em tratados internacionais, dado o evidente interesse da União na preservação de sua responsabilidade perante a comunidade das nações.

A Lei n. 10.446/02, no seu artigo 1º, inciso III, regulamentou essa atribuição da Polícia Federal, concorrente com a da Polícia Civil, de investigar infrações penais "relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte ". Note-se que aqui não se trata de substituição da atuação da Polícia Civil pela investigação da Polícia Federal, mas de persecução conjunta por ambas as corporações policiais em dois inquéritos simultâneos. Coisa bem diferente se dá no incidente de deslocamento de competência, em que o Ministério Público Federal e a Justiça Federal efetivamente substituem os órgãos estaduais respectivos, já que não faria sentido permitir duas ações penais com o mesmo objeto (bis in idem).

Pode-se ainda argumentar, em favor do IDC, que há no sistema jurídico brasileiro outros instrumentos processuais que acarretam modificações, seja de atribuição seja de competência.

É o caso da ação penal privada subsidiária, garantia individual que se coaduna com o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional (artigo 5º, XXXV, CF) (25), e está prevista no artigo 29 do Código de Processo Penal. Assim, em caso de inércia absoluta do Ministério Público, faculta-se ao particular ofendido ou a seu representante legal, manejar queixa-crime para a persecução criminal de delitos originariamente de ação penal pública. O caso é, pois, de substituição de legitimado. Como aqui estamos diante de um direito fundamental talhado para garantir o acesso à Justiça e à prestação jurisdicional, ninguém ousa inquiná-lo de violador do princípio do promotor natural ou do princípio acusatório. Nesta medida, a ação privada subsidiária da pública é um dos meios que se presta a garantir a célere tramitação dos feitos criminais, diante da demora injustificada ou da inércia do Ministério Público em promover a ação penal.

Situação de claro deslocamento de competência da justiça estadual para a federal ocorre nos casos de conexão entre crimes de competência federal e crimes de competência estadual. A questão está hoje sumulada pelo Superior Tribunal de Justiça no enunciado n. 122:

"Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual , não se aplicando a regra do art. 78, II, ‘a’, do Código de Processo Penal".

Com isso, o STJ pacificou o entendimento de que, no concurso de "jurisdições" (26) de igual categoria (juiz de Direito vs. juiz federal), a competência federal prepondera sobre a competência estadual. A primeira é expressa na Constituição, ao passo que a segunda é residual, embora mais ampla.

Ainda no que concerne à competência, as corriqueiras exceções e os conflitos entre juízos diversos são defesas processuais tradicionais, que ocorrem no curso de ações penais e cíveis. Tais instrumentos processuais jamais foram contestados ao argumento de que ofendem o princípio do juiz natural (art. 5º, LVIII, CF). Quantas são as exceções de incompetência (em razão da função, material (27) e territorial), de suspeição e de impedimento que alteram o juízo ou afastam juízes antes acreditados como "naturais"? Evidentemente, essas ferramentas de processo, como também o IDC, não afetam a segurança jurídica na atividade jurisdicional, pelo simples fato de alteraram o juízo tido como competente. E isto é óbvio, porque todos os órgãos jurisdicionais envolvidos, tanto nas velhas excções como no novo incidente de deslocamento, são pré-existentes e pré-estabelecidos, não existindo qualquer juízo ex post factum (28) ou tribunal de exceção. Como antes se disse, o juiz federal que receberá a causa deslocada é também juiz natural porque, desde o início, segundo a própria Constituição brasileira, aquele juízo era virtualmente ou condicionalmente competente para os processos relativos a graves violações a direitos humanos. Trata-se então de juiz natural potencial.

Ainda pode-se argumentar mais. Do mesmo modo que nas exceções processuais e nos conflitos de competência, também não há violação aos princípios da segurança jurídica e do juiz natural nos casos de remoção ex officio de magistrados. Tais remoções, como é óbvio, atendem ao interesse público, e nenhum réu dirá que a substituição de um determinado magistrado, por razões de ordem pública, ofende qualquer garantia individual. Neste passo, não se pode esquecer que a EC 45/04 conferiu ao Conselho Nacional de Justiça a faculdade de remover magistrados (artigo 103-B, §4º, inciso III, da CF), em decisão administrativa, sempre que presentes graves razões de ordem pública. Logo, não há porque temer a mera substituição de um juiz estadual por juiz federal, presentes determinados requisitos, e em situações excepcionais, também motivadas pelo interesse público e estribadas em princípios fundamentais do Estado brasileiro, como são a dignidade da pessoa humana e a proteção dos direitos humanos.

Mais oposição e mobilização deveria haver contra a instituição de listas precárias de juízes substitutos e de juízes eleitorais, elaboradas sem qualquer parâmetro objetivo, numa prática que enseja fixações indevidas e alterações arbitrárias e imotivadas de juiz natural em determinados Estados. Trata-se, aí sim, de praxe deletéria e claramente inconstitucional que permite a alguns Tribunais literalmente escolher a dedo certos magistrados, fora da lista regular de substituição ou abandonando a premissa territorial, em regra para atender a critérios pouco ou nada republicanos.

Por fim, ainda no que se refere ao princípio do juiz natural, há que se considerar que o objetivo do incidente de deslocamento é proteger direitos fundamentais das vítimas e assegurar o interesse público da persecução criminal, para redução da impunidade. O instituto presta-se também, como antes mencionado, à proteção de autores de delitos, já condenados ou não, e que venham a ter seus direitos individuais gravemente violados pelo Estado. Neste sentido, ainda que se pudesse falar em afastamento do princípio do juiz natural (o que não é efetivamente o caso), a adequada ponderação dos interesses contrapostos permitiria perfeita harmonização do aparente conflito, em favor do reconhecimento da constitucionalidade do deslocamento da competência, já que tudo é feito de forma a ampliar a efetividade da Justiça, reduzir a impunidade e garantir direitos da pessoa humana. Em síntese, o constituinte derivado não reduziu a esfera de proteção dos direitos do cidadão, mas sim a ampliou por meio de um novo instrumento garantista, o incidente de deslocamento de competência.

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Sobre o autor
Vladimir Aras

Professor Assistente de Processo Penal da UFBA. Mestre em Direito Público (UFPE). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Procurador da República na Bahia (MPF). Membro Fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 691, 23 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6762. Acesso em: 8 nov. 2024.

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