Com a entrada em vigor da Emenda Constitucional 45, de 08.12.04 dando nova a redação ao art. 114 do Texto Maior, foi atribuída à Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar "as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios" (inciso I), inclusive aquelas "de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de emprego" (inciso VI).
A partir da entrada em vigor da referida Emenda uma grande celeuma foi estabelecida a respeito do seu verdadeiro alcance, especialmente após o julgamento do Recurso Extraordinário 438639 pelo Excelso Supremo Tribunal Federal que entendeu, por maioria, em obséquio ao princípio da unidade da cognição, que as ações de reparação de danos morais ou patrimoniais decorrentes de acidente do trabalho devem ser julgadas pela Justiça Comum, nos termos da previsão constante do art. 109 do Texto Supremo a fim de evitar decisões dispares a respeito do mesmo fato (acidente).
Entretanto, referida decisão emitida em sede de Recurso Extraordinário, portanto, no controle difuso de constitucionalidade vincula apenas as partes integrantes da relação processual na qual foi proferida.
De outro lado, e sem quebra da relevância devida aos pronunciamentos dos tribunais superiores, especialmente quando originários da Suprema Corte não me parece sustentável que omissões ou ações do empregador relativamente às normas preventivas do acidente e da doença profissional sejam tratadas pela Justiça do Trabalho e, ao mesmo tempo, os efeitos danosos concretos que tais ações ou omissões provoquem, mas o acidente de trabalho, ou ainda a doença ocupacional, possam ou continuem a ter apreciação fora da esfera competencial da Justiça do Trabalho. Aliás, o próprio Col. STF através da Súmula 736 enuncia que:
"Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores".
Data maxima venia parece ilógica e desarrazoada interpretação que afirma poder o juiz do trabalho apreciar todas as demandas originárias da relação de trabalho e/ou emprego decidindo a respeito da violação das normas de proteção do trabalho e suas conseqüências, como a questão do trabalho perigoso e insalubre e o pagamento dos adicionais respectivos que representa indenização pelos danos causados ao trabalhador que labore em tais condições, bem como a da estabilidade do empregado vítima de acidente (art. 118 da Lei 8.213/91) e esteja, ao mesmo tempo, impedido de apreciar e julgar as ações de indenização dos danos morais e patrimoniais que este mesmo fato histórico – o acidente – venha causar à vítima (1).
Sustenta Manoel Antônio Teixeira Filho:
"Quer nos parecer que, agora, a competência se define em prol da Justiça do Trabalho, em virtude da redação do inciso VI, do art. 114, da Constituição. Poder-se-ia objetar esta nossa conclusão com argumento de que tendo permanecido com a Justiça Comum a competência para apreciar e julgar ações acidentárias do trabalho, a competência para apreciar e julgar pedidos de indenização por dano moral seria, por motivo de ordem lógica, dessa mesma Justiça. Diante disso, devemos redargüir, em caráter proléptico, que o entendimento de que a competência em questão seria da Justiça Comum conduziria a uma situação algo surrealista, qual seja, a de que a norma constitucional em estudo dar à Justiça do Trabalho competência para julgar ações de danos morais. Desde que emanantes de uma relação de trabalho (que, como se disse, é gênero), mas não possuir competência para apreciar pedidos de indenização por dano moral, tendo como origem um acidente de trabalho, ou seja, sofrido por um empregado (relação de emprego). Para clarificar: a prevalecer a opinião contrária à nossa, veríamos a Justiça do Trabalho julgando ações por danos morais promovidas por trabalhadores autônomos, mas impedida de julgar ações por danos morais postas por empregado, que sofreu acidente do trabalho.
Nossa opinião, portanto, é de que, a contar da EC não 45/2004, compete à Justiça do Trabalho julgar as ações contendo pedido de indenização por dano moral (ou material) proveniente de acidente do trabalho. Em rigor, aliás, o inciso VI, em exame, não faz nenhuma distinção entre o dano moral (ou patrimonial) haver emanado de acidente do trabalho, ou não. O critério exclusivo, fixado pelo texto constitucional, é estar, esse dano, vinculado a uma relação de trabalho – na qual, como se disse, está compreendida a relação de emprego". (2)
De outro ângulo, quer me parecer que o princípio invocado pela Augusta Corte na decisão antes mencionada – unidade da cognição – serve exatamente para justificar e reafirmar a competência da Justiça do Trabalho para julgar toda e qualquer demanda contra o empregador que tenha por fundamento a relação de emprego – causa de pedir remota – inclusive aquelas que visem a reparação de danos morais e patrimoniais decorrentes do acidente de trabalho – causa de pedir próxima.
O fracionamento do poder de julgar entre a Justiça do Trabalho que disporia da competência para apreciar todas as demandas que tenham origem na relação de trabalho ou emprego, inclusive a questão do acidente e algumas das suas conseqüências, como por exemplo o reconhecimento do direito a manutenção do emprego pelo trabalhador acidentado, o pagamento de adicionais por labor em condições perigosas ou insalubres causadoras do acidente; à Justiça Comum Estadual, quando o acionado não for o instituto de seguridade social; e à Justiça Federal, quando figurar no polo passivo da ação a autarquia previdenciária, levaria à violação não apenas do princípio da unidade da cognição, mas também e especialmente, do princípio da unidade da jurisdição o que poderá motivar decisões díspares sobre o mesmo fato possibilitando exatamente aquilo que se visou impedir, qual seja, a insegurança jurídica.
Vale registrar, ainda, por oportuno, que não se pode, em homenagem ao princípio de hermenêutica constitucional, da concordância prática, interpretar o disposto no art.109 e seu § 3o do Texto Maior de forma isolada, mas, em harmonia com o que estabelecido nos incisos I e VI do art. 114 ponderando-se os valores que ambos objetivam proteger.
Lembra-nos a boa doutrina:
"Todas as normas constitucionais devem ser interpretadas de tal maneira que se evitem contradições com outras normas constitucionais. A única solução do problema coerente com este princípio é a de que se encontre em consonância com as decisões básicas da Constituição e evite limitação unilateral a aspectos parciais" (3).
Deve-se, pois, interpretar o disposto no art. 109 e seu § 3o do Texto Maior em harmonia com o que previsto no art. 114, inciso VI de modo que se preserve a unidade da Constituição.
Assim, a interpretação que se deve emprestar ao novo preceito constitucional não pode ser outra se não no sentido de que, se o constituinte reformador outorgou à Justiça Especial a competência para apreciar e julgar as ações decorrentes da relação de trabalho, é porque pretendeu retirar da Justiça Comum o poder para apreciar tais demandas quando ajuizadas contra o empregador e tenham como causa pedir a relação de emprego, deixando a cargo da Justiça Comum apenas aquelas ações que forem promovidas contra o instituto de seguridade social.
Neste sentido, aliás, o Col. TST acaba de decidir por sua 1a Turma no RR 2295/2002.
Sustentou com acerto o Relator do aludido recurso, o Ministro João Dalazen:
"Parece-me hoje todavia que se inscrevem e devem continuar na competência da justiça comum estadual apenas as lides por ações acidentárias, isto é, as ações previdenciárias derivantes de acidentes do trabalho promovidas em desfavor do INSS. Contudo, cuidando-se de dissídio entre empregado e empregador, por indenização por danos materiais ou morais decorrentes de acidente de trabalho penso que emerge a competência material da Justiça do Trabalho, por força do art. 114, incisos I e VI, da Constituição Federal".
E continua o i. Magistrado:
"A meu juízo, a circunstância de o infortúnio consumar-se na execução da relação de emprego, que é espécie de relação de trabalho, notoriamente justifica o reconhecimento da competência da Justiça do Trabalho" (4).
Ademais, como ensina Vicente Ráo, citando Pacifici-Mancini, que quando a lei (em sentido genérico) regular por inteiro a mesma matéria contemplada por lei ou leis anteriores, gerais ou particulares, visando substituir um sistema pelo outro, uma disciplina total por outra, então todas as leis anteriores sobre a mesma matéria devem ser consideradas revogadas (5).
Ora, se o inciso I, do art. 114 do Texto Supremo, na redação da Emenda 45 atribuiu à Justiça do Trabalho a competência para julgar todas as ações decorrentes da relação de trabalho, e no inciso VI estabelece que esta competência se estende também para as ações de reparação de danos materiais e morais originários de acidente de trabalho movidas contra o empregador, não há dúvida que de acordo com o que disposto § 1o, do art. 2o, do Decreto-Lei 4.657, de 04.09.42, o contido § 3o do art. 109 do Texto Supremo no mínimo foi derrogado quanto as ações movidas com fundamento no inciso XXVIII, do art. 7o.
Do acaba de ser exposto só se pode retirar uma conclusão: a exceção prevista no art. 109 e seu § 3o da Constituição refere-se as ações decorrentes de acidente de trabalho dirigidas contra o órgão previdenciário, não havendo possibilidade de tal ressalva ser estendida às ações decorrentes do acidente quando ajuizada contra o empregador, para obrigá-lo a satisfazer indenização decorrente de culpa ou dolo (responsabilidade subjetiva). Até porque referido preceito constitucional trata da competência firmada em razão da pessoa, ou mais especificamente da autarquia previdenciária, e não de conflito envolvendo empregado e empregador. Não haveria, por óbvio, razão para excluir da competência da Justiça Federal conflito cuja solução em tese, não lhe incumbiria. Nas ações acidentárias contra o órgão previdenciário, cuja competência, em princípio, seria da Justiça Federal, aí sim, sem sombra de dúvida, fazia-se necessária a exceção para atribuí-la, residualmente, como se pretendeu, à Justiça Estadual. Todavia, no tocando as ações de reparação de danos decorrentes do acidente de trabalho, em que se contrapõem as partes da relação de emprego – empregado e empregador – e que têm por objetivo a reparação de dano material ou moral, ainda que decorrente do acidente, e por isso mesmo da competência da Justiça do Trabalho, era de fato não havia necessidade de qualquer tipo de exceção.
Data venia não se pode chegar a outra conclusão que não seja a de que a exclusão a que refere o dispositivo constitucional (art. 109) não se refere as ações de reparação de danos ajuizadas contra o empregador, mas aquelas envolvendo o Instituto de Seguridade Social. Logo, somente estas estão fora do alcance competencial da Justiça do Trabalho.
Por derradeiro, vale registrar que o Col. TST recentemente, em 20.04.05, portanto, após a promulgação da EC 45/2004, através da Resolução n. 129/2005 converteu na Súmula 392 a OJ n. 327 da Seção de Dissídios Individuais prevendo que:
"Nos termos do art. 114 da CF/1988, a Justiça do Trabalho é competente para dirimir controvérsias referentes à indenização por dano moral, quando decorrente da relação de trabalho".
Assim, e quando a demanda oriunda da relação de emprego – causa de pedir remota – tiver por objeto a reparação de danos originários de acidente de trabalho – causa de pedir próxima – ajuizada contra o empregador, é inequivocamente o Judiciário Trabalhista competente para o julgamento de acordo com a previsão inserta nos incisos I e VI, do art. 114 da Lex Major.
Referências bibliográficas
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BEZERRA LEITE, Carlos Henrique. Curso de Direito Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.
HESSE, Konrad. La Interpretación Constitucional. In: Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1983.
RIBEIRO DE VILHENA, Paulo Emílio. Ação de indenização decorrente de acidente do trabalho. Competência. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Brasília: Síntese, Ano 67- no 2- abr. a jun./2001, p. 54-62
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. A Justiça do Trabalho e a Emenda Constitucional 45/2004. In: Revista LTr. São Paulo: Ano 69, no 01, jan./2005, p. 19-20.
RAO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 1991.
Notas
1
A própria situação do acidente do trabalho gera reflexos tipicamente trabalhistas, como no caso da estabilidade no emprego prevista no art. 118 da Lei 8.213/91. Dificilmente, se poderia objetar a competência da Justiça do Trabalho para os conflitos envolvendo essa estabilidade, que se revela impositiva ao empregador, cumprindo notar, ainda, que a tipificação do acidente nesses casos tem sido apreciada com tranqüilidade como questão prejudicial pelos órgãos da Justiça do Trabalho (art. 469, III, do CPC), o que levando-se em consideração a possibilidade de ajuizamento de outra ação perante a Justiça Comum, pelo trabalhador em face do Instituto de Seguridade Social, poderia levar ao risco de soluções distintas sobre a mesma situação acidentária (fato histórico ou causa de pedir remota). Todavia, ainda assim, essa situação não tem o condão de desnaturar ou comprometer o conteúdo lógico e sistemático do modelo de partição de competências de seus vários órgãos. Como lembra a boa doutrina, o que parece relevante verificar e observar, em situações como essa, é se foi respeitado de modo integral o devido processo legal com a garantia do amplo direito de defesa, de modo que o julgamento seja levado a efeito com todas as garantias processuais às partes. ALENCAR RODRIGUES, Douglas. O dano moral acidentário e a Justiça do Trabalho após a EC n. 45/2004. In: Justiça do Trabalho: competência ampliada. Grijalbo Fernandes Coutinho et at. (Coord.). São Paulo: LTr, 2005, p. 55-69.2
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. A Justiça do Trabalho e a Emenda Constitucional 45/2004. In: Revista LTr. São Paulo: Ano 69, no 01, jan./2005, p. 19-20.3
HESSE, Konrad. La Interpretación Constitucional. In: Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1983, p. 48.4
TST- 1a T. RR 2295/2002.5
RAO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 1991, p. 303.