Os contratos celebrados na seara administrativa, seguem um regime jurídico próprio, notadamente tendo em vista a presença das denominadas cláusulas exorbitantes, previstas no art. 58 da Lei 8.666/93, que admitem, entre outras hipóteses, a possibilidade de alteração unilateral do ajuste, com vistas ao atendimento do interesse público colimado.
Com efeito, se por um lado nos contratos privados a regra seja a imutabilidade de seus termos, de outra banda, em se tratando de contratos administrativos, temos que estes podem ser legitimamente alterados unilateralmente pela Administração, quando dita providência for necessária à consecução do interesse público perseguido.
Sobre esta prerrogativa da Administração-contratante, é pacífica a orientação da doutrina pátrea.
Nessa seara, pondera Caio Tácito:
" O contrato é eminentemente uma relação de direito privado dominada pelo princípio da igualdade entre as partes contratantes que torna inviável a alteração unilateral de direitos e obrigações. Do acordo de vontades emana a recíproca observância do pacto tal como concebido ( pacta sunt servanda). Bilateral em sua origem e formação, somente outro ajuste de igual categoria poderá inovar o sinalagma constituído. Sobrepaira, soberanamente, como princípio geral, a regra da imutabilidade do contrato privado.
A presença da Administração Pública traz, contudo, às relações bilaterais das quais participe um regime jurídico especial que se distingue do regime de direito comum: o contrato de direito privado transfigura-se no contrato administrativo.
De logo se destaca, no contrato administrativo, o fim de interesse público, de tal modo que a tônica do contrato se desloca da simples harmonia de interesses privados para a satisfação de uma finalidade coletiva, no pressuposto da utilidade pública do objeto do contrato.
O princípio da igualdade entre as partes cede passo ao da desigualdade no sentido da prerrogativa atribuída ao Poder Público de fazer variar a obrigação da outra parte na medida necessária à consecução do fim de interesse público, que é o alvo da atividade estatal" (BLC nº 3/97, p. 116).
Nesta esteira, Yara Darcy Police Monteiro assim se pronunciou:
" o contrato, como acordo de vontades para criar obrigações e direito recíprocos, com base na autonomia da vontade e igualdade jurídica entre as partes, é instituto típico de direito privado. Todavia, quando uma das partes é o Poder Público, agindo nessa qualidade, ou seja, com supremacia de poder, em face das prerrogativas que lhe são conferidas para a satisfação do interesse público, as regras de direito privado cedem espaço para aquelas que compõem o regime de direito público" (BLC 10/2001, p. 603).
Cite-se, ainda, Adilson Abreu Dalari, que consigna a seguinte exegese:
" Em síntese, o contrato administrativo celebrado em decorrência de uma licitação está por ela condicionado, mas tem vida própria. Ele pode ser alterado, sim, por razões de interesse público, até o ponto em que esse vínculo ou esse condicionamento não se rompa". ( cf. Limites à alterabilidade do contrato de obra pública, RDA n. 201, p. 61).
O que se exige, como limite à prerrogativa da mutabilidade do ajuste administrativo, é o correlato preceito da imutabilidade da essência do objeto.
Especificamente quanto à alteração unilateral do contrato, a teor dos comandos do art. 65 da Lei Federal, temos duas hipóteses a considerar.
Frise-se as manifestações de Jessé Torres Pereira Júnior, que corroboram tal assertiva:
"O primeiro bloco de alterações reúne aquelas que a Administração pode introduzir no contrato sem consultar o contratado, isto é, alterações que a este obrigam porque decorrentes do poder de disposição unilateral que a lei outorga à Administração quanto às cláusulas de serviço ou regulamentares.
Duas são as possibilidades: (a) alteração que, no contrato, corresponda a modificação de projeto ou de especificações; (b) alteração que ajuste valores contratados a reduções ou acréscimos quantitativos do objeto a ser executado" . (Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública, Renovar, 6ª ed., 2003, p. 650) (grifo nosso).
Destaque-se os comandos prescritos no art. 65, do Estatuto Licitatório, para arrimo desta tese.
"Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
I – unilateralmente pela Administração:
a) quando houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos;
b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por essa lei".
(...)
§1º O contratado fica obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato, e, no caso particular de reforma de edifício ou de equipamento, até o limite de 50% (cinquenta por cento) para os seus acréscimos" (grifo nosso).
Pois bem, a primeira interpretação que se deve dar ao dispositivo é a de que, na melhor regra de hermenêutica, sendo o inciso dividido em duas alíneas, pressupõe-se, por certo, que estas tratam de duas hipóteses distintas, já que, se assim não fosse, não haveria razão para a divisão.
Ademais, veja que a alínea b, que trata especificamente da hipótese de acréscimo ou diminuição quantitativa do objeto, estabelece, expressamente, que este deve ocorrer "nos limites permitidos pela lei". Assim, resta clara a intenção do legislador em restringir estes acréscimos e supressões a limites percentuais.
No entanto, a referida alínea "a", que, consoante já verificamos, não trata de alteração quantitativa (acréscimos e supressões), mas sim, da modificação dos projetos e especificações para melhor adequação técnica, não contempla a expressão "nos limites permitidos pela lei", o que significa inferir que não se estendeu esta restrição à hipótese contemplada nesta alínea.
Em abono desta matiz, mais adiante, no §1º do dispositivo, a lei estabelece, expressamente, que os acréscimos e supressões se limitam aos percentuais ali indicados. Não alude o parágrafo à alteração do projeto e de suas especificações, mas sim, à hipótese prevista na alínea "b", do inciso I do art. 65 da Lei Federal.
Destarte, uma vez que a Lei 8.666/93 não restringiu a hipótese avençada na alínea "a" do inciso I do seu art. 65 à observância de limites percentuais, não nos cabe assim proceder.
Com efeito, utilizando-se as regras de hermenêutica, constitui uma das premissas básicas das regras de interpretação do direito positivo, aquela segundo a qual onde a lei não restringe, tampouco deve o exegeta restringir.
Inúmeras são as manifestações doutrinárias nesse sentido, constituindo tal entendimento majoritário – senão até mesmo pacífico - na doutrina brasileira, consoante adiante se verá.
A respeito, menciona Yara Darcy Police Monteiro:
" De sorte que a lei autoriza duas espécies distintas de alterações contratuais, uma de natureza qualitativa e outra quantitativa.
A primeira hipótese cogita das modificações voltadas ao aprimoramento técnico e operacional do objeto contratado. Como a necessidade de adequação surge durante a execução do ajuste, sendo, de regra, imprevisível, não está atrelada a limites legais, salvo o respeito à essência do objeto.
Já no caso das alterações de quantidades, estabelece o §1º do art. 65 os limites dentro dos quais a variação de quantidade propicia a necessária elasticidade do objeto sem comprometer a sua essência" ( BLC, 10/2001, p. 606) (grifamos).
Proferindo igual exegese, averbou Leon Frejda Szklarowsky:
" A lei não impõe qualquer limitação qualitativa. Trata-se de alteração qualitativa, ditada por razão diversa, em homenagem ao interesse público. O intérprete não pode restringir onde a lei não restringe. São duas normas com endereçamento distinto e natureza profundamente desigual" (BLC 10/2001, p. 607).
Acerca do tema, pondera o Mestre Diogenes Gasparini:
" Os incisos I e II do art. 65 da Lei federal das Licitações e Contratos da Administração Pública prevêem quando é possível a alteração unilateral e a consensual. Cabe a alteração unilateral nos seguintes casos: ‘a) quando houver modificação do projeto ou das especificações, para a melhor adequação técnica a seus objetivos; b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por essa Lei."
Mais adiante ainda ressalta o Mestre:
" Não observam o limite de 25% as alterações qualitativas que o objeto do contrato pode sofrer. Alterações qualitativas são as decorrentes da modificação do projeto ou de suas especificações" (Direito Administrativo, 8ª ed., Saraiva, pp. 585 e 586) (sem grifo no original).
No mesmo sentido, afirma Marçal Justen Filho que:
"A lei não estabelece limites qualitativos para essa modificação contratual. Não se pode presumir, no entanto, existir liberdade ilimitada. Não se caracteriza a hipótese quando a modificação tiver tamanha dimensão que altere radicalmente o objeto contratado. Não se alude a uma modificação quantitativa, mas a alteração qualitativa. No entanto, a modificação unilateral introduzida pela Administração não pode transfigurar o objeto licitado em outro, qualitativamente distinto.
Reputa-se que a alteração fundada no inc. I, al. "a", não se sujeita à limitação do §2º" (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 5ª ed., Dialética, p. 514) (grifamos).
O mesmo autor, em outra passagem, interpretando a norma em pauta, resume:
" Na situação da alínea a, não há uma simples variação de quantidades. Podem variar quantidades, mas tal situação é o acessório derivado de uma modificação mais profunda. Não se cogita propriamente de elevação ou redução de quantitativos, mas de alteração do objeto a ser executado. Mudam-se quantidades porque não se executa mais o objeto tal como inicialmente definido. Na alínea b, não há modificação de qualidade, de especificação ou de projeto – apenas o objeto do contrato é acrescido ou diminuído em termos de quantidades" (BLC 01/2003, p. 14).
Excelentes são as ponderações de Caio Tácito, em matéria publicada no Boletim de Licitações e Contratos, 03/97, pp. 115 a 121, da Editora NDJ, em que destacamos e negritamos os seguintes trechos:
" As alterações quantitativas do contrato, objeto do capítulo anterior, são manifestações unilaterais da Administração, por motivo de conveniência do serviço, que se podem processar, dentro dos limites permitidos, sem que se modifiquem as especificações do contrato e os critérios definidos nas planilhas que o integram. A ordem a ser emitida, de obrigatório acatamento pelo contrato, pressupõe, nos explícitos termos da lei, o atendimento das ‘mesmas condições contratuais’.
Diversamente, as modificações qualitativas não têm proporção prefixada, mas devem respeitar a essência do objeto do contrato, do qual é expressão objetiva sua finalidade, caracterizada no projeto básico, a que se reporta o edital"
" As alterações qualitativas, precisamente porque são, de regra, imprevisíveis, senão mesmo inevitáveis, não têm limite preestabelecido, sujeitando-se a critérios de razoabilidade, de modo a não se desvirtuar a integridade do objeto do contrato".
"Na eventualidade de alterações quantitativas em que o contratado passa a servir mais, poderá ocorrer que venha a receber mais na proporção do acrescido, respeitado o preço contratado. O parâmetro unitário continuará a ser o mesmo. O contrário importaria em alterar a álea ordinária pactuada, em detrimento do motivo determinante do julgamento, atributivo da adjudicação da melhor oferta, ou seja, conforme terminologia constitucional, ‘mantidas as condições efetivas da proposta’ (Constituição de 1988, art. 37, nº XXI)".
"Quando apenas se altere a quantidade da obrigação, está o contratado obrigado a aceitar o acréscimo que, a importar em modificação do valor contratual, não poderá ultrapassar, conforme o caso, a 25% ou a 50% do valor inicial atualizado do contrato. A estes limites não poderá exceder a determinação administrativa (§§1º e 2º do citado art. 65)"
"Se, no entanto, situação imprevista, que se imbrique com o objeto do contrato, impuser alteração na qualidade do serviço, com modificação nas especificações contratuais, não se terá de cogitar de limitação da despesa superveniente e necessária à plena consecução da finalidade do contrato, podendo ser ultrapassado, na medida exigida, o preço global originalmente pactuado".
Acerca do tema, interpretando o art. 65, I, a e b da Lei 8.666/93, Antonio Marcello da Silva diz que o dispositivo é claro "de modo a não deixar dúvida de que são institutos distintos, e que o primeiro – alteração do projeto ou especificações – não se sujeita, absolutamente, aos limites previstos nos §§1º e 2º do referido art. 65 (cf. RDA, vol. 198:51-67, pp. 65 e ss.) (sem grifo no original).
O próprio Tribunal de Contas da União, na Decisão 215/99, publicada no DOU de 21/5/p. 41, já se manifestou pela possibilidade de a alteração qualitativa ultrapassar o limite percentual de 25%, observados, por certo, como foi o caso, os princípios da finalidade, razoabilidade, proporcionalidade, e desde que satisfeitos, cumulativamente, os seguintes pressupostos:
"I – não acarretar para a Administração encargos contratuais superiores aos oriundos de uma eventual rescisão contratual por razões de interesse público, acrescidos aos custos da elaboração de um novo procedimento licitatório;
II – não possibilitar a inexecução contratual, à vista do nível de capacidade técnica e econômico-financeira do contratado;
III – decorrer de fatos supervenientes que impliquem em dificuldades não previstas ou imprevisíveis por ocasião da contratação inicial;
IV- não ocasionar a transfiguração do objeto originalmente contratado em outro de natureza e propósito diverso;
V – ser necessárias à completa execução do objeto original do contrato, à otimização do cronograma de execução e à antecipação dos benefícios sociais e econômicos decorrentes;
VI – demonstrar-se – na motivação do ato que autorizar o aditamento contratual que extrapole os limites legais mencionados (...) que as consequências da outra alternativa (a rescisão contratual seguida de nova licitação e contratação) importam sacrifício insuportável ao interesse público primário (interesse coletivo) a ser atendido pela obra ou serviço, ou seja, gravíssimas a esse interesse; inclusive quanto à sua urgência e emergência".
A decisão da Corte de Contas acima citada, por certo, é cautelosa e admite que as alterações qualitativas ultrapassem os limites legais apenas excepcionalmente, com as cautelas acima mencionadas, sendo contestada pela doutrina.
Em análise à referida decisão, salienta Yara Darcy Police Monteiro:
"Dos termos da decisão transcrita observa-se que a Corte admite a extrapolação dos limites legais na hipótese de alterações contratuais ‘consensuais, qualitativas e excepcionalíssimas’, devendo ser observados os princípios da finalidade, razoabilidade e proporcionalidade.
Com todo o respeito e venia devida, não nos parece a exegese mais adequada, nem a melhor solução conferida à matéria, pois, conforme exposto, imobiliza a Administração, negando-lhe, por vezes, o direito-dever de satisfazer plenamente e com eficiência o interesse público sob sua cura.
Vale notar que a Emenda Constitucional nº 19/98 elevou a eficiência à categoria de princípio constitucional regente da Administração Pública". (BLC 10/2001, p. 609).
Assim, entendemos que as alterações qualitativas nos contratos administrativo, ao reverso das modificações quantitativas, não se sujeitam a limites legais, estando, contudo, circunscritas à essência do objeto contratado.
Portanto, concluímos que, mesmo que determinado contrato tenha sido alterado quantitativamente dentro do limite legal permitido (25% do valor atualizado do contrato), nada impede a que a Administração Pública altere qualitativamente o objeto contratual, para melhor atendimento do interesse público almejado, tendo em vista que o limite porcentual imposto pela lei não se aplica às modificações dessa natureza.
Mas veja, a alteração unilateral somente pode prosperar se ficar amplamente demonstrado que este é o melhor caminho para o atendimento do interesse público, do qual o administrador não pode descurar, a par do princípio da eficiência, que deve esgueirar a prática de seus atos.