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Legalidade do procedimento executório extrajudicial da alienação fiduciária de imóveis face aos princípios constitucionais de proteção do devedor

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21/05/2019 às 15:15
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4 A EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Conforme já comentado na introdução, certa cizânia tem surgido por conta das interpretações divergentes acerca das regras insculpidas na Lei da Alienação Fiduciária.

A exemplo disto, tem-se a dúvida sobre a incidência ou não do artigo 53 da Lei 8.078/1990 e neste sentido, mister esclarecer que tal regra não se aplica no que diz respeito à alienação fiduciária de imóveis, a uma, porque as leis especiais prevalecem sobre as gerais, e, neste caso, a Lei da Alienação Fiduciária de imóveis prevalece sobre o Código de Defesa do Consumidor. Ademais, é evidente que as parcelas pagas pelo devedor fiduciante são mera amortização daquilo que recebeu previamente do credor fiduciário para aquisição do imóvel, mais encargos e taxas contratuais inerentes a qualquer contrato de empréstimo.

   O doutrinador Antonio Carlos Camargo Dantzger (2007, p.86), leciona que: “Sendo certo que as leis especiais prevalecem sobre as gerais, em caso de antinomias, e sendo certo também que a lei que regula a alienação fiduciária de bem imóvel é lei especial em relação ao Código de Defesa do Consumidor, então, parece-nos inaplicável o art. 53 do mesmo, havendo de prevalecerem os ditames da Lei 9.514/1997.”.

  De acordo com os ensinamentos de Afranio Carlos Camargo Dantzger (2007, p. 89), “Admitir-se a devolução das parcelas pagas seria o mesmo que se admitir que, num contrato de empréstimo bancário comum,fosse o credor obrigado a devolver, na hipótese de inadimplemento do devedor, as quantias recebidas a título de amortização da dívida. Ora, o dinheiro é do próprio credor que o adiantou ao devedor, não havendo, assim, como se admitir seja o credor obrigado a devolver aquilo que recebeu em pagamento.”

Outra polêmica questão acerca do caso em comento,refere-se sobre a aplicabilidade ou não da Teoria do adimplemento substancial do contrato na alienação fiduciária de imóveis. Neste sentido, em que pese inúmeros entendimentos contrários, poder-se-ia dizer que é o caso de se aplicar a decisão análoga do Superior Tribunal de Justiça, que pacificou entendimento de que tal teoria não se aplica nos casos previstos pelo Dec. Lei 911/69.

De outra sorte, a questão acima mencionada não é unânime perante os tribunais, especialmente a respeito do percentual mínimo a ser exigido nos casos de contrato de alienação fiduciária de imóveis, a ponto de se aplicar a teoria do adimplemento substancial do contrato e sobretudo por fazer valer os princípios constitucionais da proteção ao devedor, a boa-fé objetiva e a função social do contrato.

Não bastassem as polêmicas supramencionadas, convém mencionar sobre o entendimento de alguns estudiosos que alegam vício da inconstitucionalidade do procedimento executório extrajudicial para retomada dos imóveis decorrentes de alienação fiduciária, ao argumento de que a execução extrajudicial fere determinados preceitos constitucionais.

Segundo esta linha de pensamento, o procedimento de execução extrajudicial afronta o princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrada pelo artigo 5º XXXV da Constituição Federal, que assim prescreve: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O princípio constitucional referido acima está estreitamente ligado à garantia constitucional de acesso à justiça e por ele se garante a todos que o Poder Judiciário não deixará de aplicar o direito de forma a atender os anseios do cidadão na solução de seus problemas.

Esta mesma corrente contrária ao procedimento extrajudicial, alega ainda afronta a outros princípios constitucionais, tais como o artigo 5º LIV da Constituição Federal, que prevê que “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, ao argumento de que os mutuários executados por tal procedimento têm o direito constitucional de não serem privados de seus bens ou de sua casa onde residem com sua família, sem o devido processo legal.

Acrescente-se ainda, outros preceitos invocados pelos adeptos da corrente contrária, tais como inciso XXIII (a propriedade atenderá sua função social), inciso XXXVII (não haverá juízo ou tribunal de exceção),inciso LV (aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes), todos do artigo 5º da Carta Magna.

4.1 Entendimento contrário ao procedimento executório

Uma vez traçadas as considerações do item quatro, é relevante expor e analisar o entendimento daqueles que são contrários ao procedimento executório extrajudicial.

Neste sentido, é apropriado esclarecer que este tipo de procedimento foi regulado pelo Dec. Lei 70/1966, que instituiu a cédula hipotecária e disciplinou a forma de execução do crédito representando no título hipotecário e, por meio do artigo 31 do aludido decreto, atribui-se ao agente fiduciário a condução do processo executivo.Por consequência, subtrai-se do Poder Judiciário sua função indelegável e própria como detentor do monopólio da jurisdição. Além disto, não se assegura possibilidade de defesa ao executado, ferindo a garantia da ampla defesa. Portanto, em face de Constituição Federal, é indubitável a inconstitucionalidade deste tipo de procedimento extrajudicial, eis que o mesmo entendimento se estende a cobrança extrajudicial prevista na Lei 9.514/1997

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4.2 Entendimento favorável ao procedimento executório

Por outro lado, a corrente favorável ao procedimento executório, defende que a execução extrajudicial somente tem início após a devida ciência do devedor fiduciante. Desta forma, uma vez intimado da execução extrajudicial, o devedor poderá opor resistência extrajudicial ou judicial, podendo inclusive purgar a mora até o segundo leilão, nos termos do §2º, item da L 9.514/1997.

Além do mais, o ordenamento jurídico atual prevê a possibilidade da antecipação parcial ou total dos efeitos da tutela, oportunizando pleno acesso ao Judiciário, desde que haja, por óbvio, a iniciativa do interessado, no caso, do devedor fiduciante. É o que preconiza o artigo 356 inciso I do Código de Processo Civil vigente.

Importante salientar também que se o devedor fiduciante sentir-se ameaçado por qualquer lesão ou ameaça a seu direito, tem ele à sua inteira disposição inúmeras ações judiciais cabíveis com o escopo de atacar o ato ou fato lesivo ou ameaçador, oportunidade em que o livre contraditório e ampla defesa poderão ser exercidos e garantidos pela Lei Maior. Cita-se como exemplo a possibilidade de se propor as seguintes ações: ação cautelar com pedido de liminar, ação ordinária com pedido de tutela antecipada, ação de consignação em pagamento, ação anulatória de ato jurídico, ação revisional de cláusulas contratuais cumulada com repetição do indébito, ação de prestação de contas, dentre outras.

Diante da exposição acima, conclui-se que o procedimento executório previsto no Dec.Lei 70/1966 nada tem de inconstitucional e, por conseguinte, de modo análogo, a consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor fiduciário na forma prevista pela Lei 9.514/1997, ainda que se dê extrajudicialmente, também não deve ser considerada inconstitucional.

4.3 Legislação correlata

 É cediço que o surgimento da alienação fiduciária em garantia ocorreu da real necessidade de se estimular a economia brasileira por meio do aumento de crédito aos consumidores, fomentando o acesso de parte da população ao crédito e possibilitando o acesso ao consumo de bens. De acordo com os ensinamentos dos doutrinadores Paulo Restiffe Neto e Paulo Sergio Restiffe (2000, p. 161), a alienação fiduciária em garantia surgiu com a legislação de mercado de capitais, consoante artigo 66 da Lei 4,728/65 e ganhou autonomia com o Decreto-Lei 911/69, atingindo seu ápice com a aprovação da Lei 9.514/97, que definiu no artigo 22 o conceito legal deste instituto, além de prever toda a sistemática para execução extrajudicial de retomada do imóvel em caso de inadimplemento pelo devedor fiduciário.

A referida lei já sofreu alterações por meio das leis 10.931/2004, 11.481/2007, 12.810/2013 e 13.097/2015, que aperfeiçoaram alguns procedimentos e recentemente, a Lei 13.465/2017 também trouxe significativas alterações à Lei 9.514/1997, como adiante se constatará.

  • Inclusão do  § 3º-A e § 3º-B ao artigo 26 que adequou o procedimento de intimação do devedor fiduciante à sistemática da lei processual civil vigente, em especial com a possibilidade de intimação do devedor através de citação por hora certa.
  • Inclusão do  § 2º-A do artigo 27 que estabeleceu a obrigatoriedade de que o devedor fiduciante seja comunicado sobre a realização dos dois leilões públicos, mediante envio de correspondência para os endereços do contrato, inclusive endereço eletrônico. Tal inclusão traz maior transparência ao procedimento e pode evitar eventual contestação judicial acerca da ciência do devedor, além de sistematizar o exercício do direito de preferência do fiduciante à aquisição do imóvel.
  • Inclusão do parágrago único ao artigo 24 e alteração da redação do § 1º do artigo 27 da Lei 9.514/1997, através dos quais, para fins de vnda do imóvel no primeiro leilão, observar-se-á o valor mínimo utilizado como base de cálculo do ITBI, exigível qando da consolidação da propriedade do imóvel. Entenda-se aqui o valor mínimo como sendo o valor venal, consoante o disposto no artigo 38 do Código Tributário Nacional. Tais medidas visam eliminar a alegação de preço vil pelo devedor fiduciante, porém, tais alterações  também restringem a liberdade das partes e diminuem as probabilidades de arrematação do imóvel no primeiro leilão.
  • Inclusão do § 2º-B ao artigo 27 que introduziu o direito de preferência do devedor fiduciante na aquisição o imóvel, desde que o exerça até a data da realização do segundo leilão e pague todas as despesas, inclusive o valor do ITBI e eventualmente laudêmio, arcados pela credora fiduciária. Esta inclusão é uma forma de nova aquisição do imóvel, com preferência ao devedor fiduciante que poderá quitar a dívida e não perdeu o imóvel.
  • Alteração da redação do artigo 37-A, que fixou a data que incidirá a taxa de ocupação do imóvel, passando o marco inicial a ser aquele da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e não mais a data da alienação do imóvel em leilão. Tal alteração objetivou desencorajar o devedor fiduciante a permanecer no imóvel em caso de não purgação da mora e respectiva execução extrajudicial da dívida, o que poderá refletir, inclusive, num aumento significativo nos acordos para que os devedores desocupem os imóveis.

Em virtude das considerações acima explanadas, diz-se que a recente Lei 13.465/2017, de forma geral, visa desburocratizar procedimentos, o que é bem visto por entidades do setor produtivo, porém, as críticas também são vistas por entidades da sociedade civil que temem o fato de esta desburocratização resultar em maior desequilíbrio entre as partes envolvidas. O que não se pode olvidar, porém, é que de fato, o objetivo do conjunto destas regras surgiu da vivência dos problemas e discussões mais comuns na execução fiduciária de bens imóveis e visa salvaguardar os dois polos da relação, evitando abusos de ambas as partes e reduzindo incertezas e, por derradeiro, fortalecendo ainda mais o instituto da alienação fiduciária, que foi um dos propulsores do boom imobiliário vivenciado no Brasil, viabilizando investimentos crescentes e possibilitando melhor acesso para aquisição de imóveis pela população em geral.

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Sobre a autora
Salma Elias Eid Serigato

Advogada atuante e inscrita na OAB, Subseção Paraná desde 2001, pós-graduada em Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Civil, Processual Civil e Consumidor e pós-graduanda em Direito Negocial e Imobiliário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SERIGATO, Salma Elias Eid. Legalidade do procedimento executório extrajudicial da alienação fiduciária de imóveis face aos princípios constitucionais de proteção do devedor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5802, 21 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67848. Acesso em: 2 nov. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado para o curso de especialização: “PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIREITO CIVIL, DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL” no IDCC - Instituto de Direito Constitucional e Cidadania - Londrina, PR, como requisito para a obtenção do título de especialista.

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