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As sociedades de propósito específico (SPE) no âmbito das parcerias público-privadas (PPP).

Algumas observações de Direito Comercial sobre o art. 9º da Lei nº 11.079/2004

30/05/2005 às 00:00
Leia nesta página:

Sumário: 1. Introdução: a situação das SPE no âmbito das PPP; 2. Natureza e conceito das SPE; 3. Regime jurídico das SPE; 4. Breves conclusões finais.


1. Introdução: a situação das SPE no âmbito das PPP

No dia 31 de dezembro de 2004, publicou-se no Diário Oficial da União, além da Emenda Constitucional n° 45, referente à Reforma do Judiciário, a aguardada Lei nº 11.079, de 30 de dezembro, que institui normas gerais para licitação e contratação de parcerias público-privadas no âmbito da administração pública.

Com efeito, a intensidade do século que vem de terminar acarretou profundas transformações sociais e, como conseqüência, fez com que o papel do Estado fosse repensado. A dialética diuturna entre público e privado, tese e antítese, revela diversas sínteses, às vezes contraditórias entre si. Desses embates, nascem novas instituições, das quais, sem dúvida alguma, as PPP são emblemáticas.

O crescimento demográfico, as novas qualidades de tempo e espaço do mundo globalizado e o surgimento de gigantescas empresas multinacionais ensejaram a formação de parcerias entre agentes do cenário econômico, a fim de que se rompessem certos obstáculos inerentes a esse contexto. De início, elas se deram no âmbito relacional dos sujeitos particulares. Desenvolveram-se negócios de colaboração, como, a título ilustrativo, a representação comercial, os contratos de agência e de distribuição, os consórcios, as joint ventures, cada qual com suas peculiaridades. Hoje, no entanto, o Estado brasileiro, pela nova Lei das PPP, manifesta sua opção por arregimentar os esforços e os recursos dos particulares ao lado dos seus, objetivando a consecução do interesse público. A propósito, na exposição de motivos constante do Decreto-Lei n. 86/2003, relativo à sistemática das PPP em Portugal, colhe-se o trecho abaixo transcrito:

"(...) A similitude entre determinadas actividades prosseguidas por entidades privadas e as subjacentes à prestação de certos serviços públicos, tem levado à conclusão de que também nos serviços públicos é possível tirar proveito da tradicional melhor capacidade de gestão do sector privado, melhorando a qualidade do serviço prestado e gerando poupanças consideráveis na utilização de recursos públicos.

Uma das formas, internacionalmente consagrada e testada, de obtenção pelo Estado de tais competências de gestão, consiste no estabelecimento de relacionamentos duradouros com privados, em regime de parceria público-privada, no âmbito dos quais lhes são transferidos os riscos, nomeadamente tecnológicos e operacionais, com os quais se encontram mais familiarizados e para cujo manuseamento se encontram mais habilitados."

Nesse ambiente, o art. 9º da Lei n. 11.079/2004 disciplina a sociedade de propósito específico, que, antes da celebração do respectivo contrato de parceria público-privada com o Estado, deverá ser constituída para implantar e gerir seu objeto. Como assinala o item 55 da versão portuguesa do Livro Verde sobre as PPP na União Européia,

"A cooperação directa entre o parceiro público e o parceiro privado no quadro de uma entidade dotada de personalidade jurídica permite ao parceiro público manter um nível de controlo relativamente elevado sobre o desenrolar das operações, que pode adaptar ao longo do tempo, em função das circunstâncias, através da sua presença entre os accionistas e nos órgãos de decisão da entidade comum. Permite igualmente ao parceiro público desenvolver a sua experiência própria da exploração do serviço em causa, com recurso ao apoio de um parceiro privado."

De fato, induzem-se algumas reflexões históricas, cujo registro se faz necessário. Lembre-se de que as primeiras sociedades anônimas surgiram no início do século XVII, como instrumento utilizado pelos Estados absolutistas para captação de recursos, de modo a incrementar suas atividades de exploração do comércio marítimo. Desde então, as companhias continuaram sendo empregadas pelos Estados, apresentando-se, mais recentemente, sob a feição de sociedades de economia mista. O atual quadro das SPE, nas quais o Estado se coloca, em regra, como não controlador, revela a opção do Brasil pela busca ostensiva de recursos particulares. É a saída paulatina do Estado do cenário econômico, não somente das atividades de mercado, mas, sobremaneira, daquelas que se reputavam a ele inerentes ou mesmo justificadoras de sua existência. Iniciou-se com as desestatizações de algumas empresas e, agora, surge a previsão legal das PPP, tudo refletindo uma opção neoliberal.

A SPE congrega, assim, aspectos do Direito Administrativo, do Econômico e do Comercial, sendo objeto do presente estudo a sua apreciação sob o enfoque deste terceiro ramo jurídico. Pretende-se investigar sua natureza e, a partir disso, chegar-se ao seu conceito; quer-se, ainda, analisar as diferenças específicas de seu regime societário e delinear algumas conclusões finais, tudo conforme se descortina nas linhas que se seguem.


2. Natureza e conceito das SPE

Embora a SPE tenha surgido, nominalmente, na legislação brasileira, apenas com a nova Lei de PPP, a sua noção já se encontrava subjacente a algumas normas. Leonardo Guimarães lembra que a

"primeira referência de uma norma cogente prevendo a criação de uma estrutura símile à SPE no Brasil se encontra consubstanciada na Portaria 107, emitida pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, a qual institui o chamado consórcio societário, determinando que a conjugação empresarial visando a venda, no exterior, das mercadorias ali elencadas se fizesse mediante a criação de um ente, dotado de ‘personalidade jurídica, revestindo a forma de sociedade comercial, organizada por instrumento público ou particular e com seus atos constitutivos arquivados na repartição ou órgão competente’ (art. 11)." 1

Ademais, o regime atual das licitações e o das permissões e concessões exigem que, para a celebração de contrato com a Administração Pública, eventual consórcio entre empresas deverá ser desfeito e, na seqüência, criada sociedade única contendo seus participantes, mas isso se dá entre particulares; não há, nessas hipóteses, o concurso do setor público. Esse quadro, entretanto, foi suficiente à disseminação da idéia da SPE.

A novidade da regulação específica das SPE no âmbito da Lei das PPP reside, portanto, em admitir a participação do Estado, ao lado dos particulares, em entidade única, cujo objeto é concretizar os interesses veiculados em contrato de parceria.

A propósito, a SPE não constitui um novo tipo societário na ordem jurídica brasileira. Ela se organiza, sempre, sob uma das formas previstas pela legislação. Pode ser, v. g., uma sociedade limitada, uma companhia fechada ou aberta, esta última autorizada expressamente pelo § 2º do art. 9º da Lei n. 11.079/2004.

Nesse mesmo sentido, Leonardo Guimarães, ao tecer considerações sobre as SPE estruturadas entre particulares, esclarece que

"à SPE, em si, não se pode conferir a qualidade de sociedade mercantil. Ela, na realidade, estará insculpida dentro de uma das formas societárias existentes no direito brasileiro." 2

Em verdade, a sociedade em exame, ao concretizar um ente para a consecução do objeto de parceria entabulada entre o Estado e o particular, assume nítida feição de uma joint venture. Conforme assevera Maristela Basso, do ponto de vista formal,

"as joint ventures podem ser:

  • a) corporate joint venture: associação de interesses que dá nascimento a uma pessoa jurídica (sociedade-empresa);

  • b) non corporate joint venture: associação de interesses que não dá nascimento a uma pessoa jurídica." 3

Nomeadamente, a SPE é uma corporate joint venture ou incoporated joint venture, em que se cria uma pessoa distinta das dos parceiros para a realização da finalidade comum.

Tal expediente facilita de modo significativo as relações que, na espécie, desenvolvem-se em caráter duradouro ou permanente entre os sujeitos. A afetação da parceria a uma nova entidade, criada especificamente para esse propósito, permite que o Estado melhor possa fiscalizá-la ou mesmo concorrer para eventualmente adequá-la às sucessivas realidades do palco social.

A Lei de PPP modela, dessa maneira, uma parceria institucionalizada, ou seja, demanda que uma instituição se forme para lhe ser adjudicado o objeto comum. No campo das PPP, as SPE serão personificadas, não podendo, assim, adotar o regime da sociedade em conta de participação, por exemplo. Por outro lado, a SPE pode organizar-se sob a forma da sociedade simples pura, que foi concebida pelo Código Civil de 2002 em oposição às sociedades de índole empresarial. Não há, no campo legal, qualquer norma que vede a eleição desse tipo.

Com essas considerações, para efeitos da nova Lei de PPP, pode-se conceituar a SPE como aquela organizada sob um dos tipos societários personificáveis existentes na ordem jurídica, objetivando a criação de um ente, com o concurso dos setores público e privado, para a realização de um contrato de parceria, que lhe é concedido após licitação.


3. Regime jurídico das SPE

Não obstante a SPE se constitua sob uma das formas societárias existentes no ordenamento brasileiro e, por óbvio, oriente-se pelas normas correspondentes, o art. 9º da Lei n. 11.079/2004, sobremaneira em seus parágrafos, estabelece algumas restrições censitárias, qualitativas e quantitativas, ao quadro de sócios.

A SPE poderá revestir-se de qualquer tipo societário, desde que personificável, inclusive sociedade anônima aberta, com valores mobiliários admitidos a negociação no mercado (§ 2º do art. 9º da Lei de PPP). Entre seus membros, podem figurar particulares e a Administração Pública, sendo vedado a esta ser titular da maioria do capital votante (§ 4º do art. 9º da Lei de PPP), salvo sua eventual aquisição por instituição financeira controlada pelo Poder Público em caso de inadimplemento de contratos de financiamento.

O que interessa, pois, é que o controle da SPE reserve-se nas mãos daquele que saiu vitorioso ao final do processo da licitação, e sua transferência fica condicionada à autorização expressa da Administração Pública, nos termos do edital e do contrato, observado o parágrafo único do art. 27. da Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 (§ 2º do art. 9º da Lei de PPP). Se coubesse ao Estado o controle da sociedade, haveria, no caso, uma companhia de economia mista, e não uma SPE, o que dispensaria, a propósito, a prévia licitação para concessão da parceria. Logo, a SPE traduz um esquema negocial de subordinação – o Estado sujeita-se ao controle do particular.

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Os condicionamentos ou restrições para a cessão do controle da SPE sempre deverão estar presentes no edital do certame, sob pena de violação ao princípio da licitação. Nunca poderá ser licitada parceria cuja transferência do controle da respectiva SPE seja irrestrita, pois, na espécie, haveria flagrante burla ao mencionado princípio, substituindo-se facilmente o concorrente vitorioso.

Apesar de a doutrina inclinar-se em dizer que pessoas naturais não podem participar de joint ventures, não se pode assim entender na hipótese das SPE. Primeiro, porque são personificáveis e assumem regime societário que, de modo algum, impede o concurso de pessoas físicas. A par disso, lembre-se de que empresários singulares podem participar de licitações e, nesse contexto, suas firmas individuais podem concorrer com o Estado na seara das SPE.

Por óbvio, o objeto da SPE estará adstrito ao objeto da parceria, o que se mostra perfeitamente conforme o regime societário brasileiro. Consoante dispõe o parágrafo único do art. 981. do Código Civil de 2002, a atividade da sociedade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados. Assim, é viável, a título ilustrativo, a constituição de uma SPE para a construção e exploração de uma estrada.

De qualquer sorte, a gestão empresarial pauta-se pelos padrões da governança corporativa e adota contabilidade e demonstrações financeiras padronizadas, conforme regulamento (§ 3º do art. 9º da Lei de PPP). No site do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, encontra-se a seguinte explicação, in verbis:

"Na teoria econômica tradicional, a governança corporativa surge para procurar superar o chamado ‘conflito de agência’, presente a partir do fenômeno da separação entre a propriedade e a gestão empresarial. O ‘principal’, titular da propriedade, delega ao ‘agente’ o poder de decisão sobre essa propriedade. A partir daí surgem os chamados conflitos de agência, pois os interesses daquele que administra a propriedade nem sempre estão alinhados com os de seu titular. Sob a perspectiva da teoria da agência, a preocupação maior é criar mecanismos eficientes (sistemas de monitoramento e incentivos) para garantir que o comportamento dos executivos esteja alinhado com o interesse dos acionistas.

A boa governança corporativa proporciona aos proprietários (acionistas ou cotistas) a gestão estratégica de sua empresa e a efetiva monitoração da direção executiva. As principais ferramentas que asseguram o controle da propriedade sobre a gestão são o Conselho de Administração, a Auditoria Independente e o Conselho Fiscal." 4

Do ponto de vista jurídico, a exigência da governança corporativa baliza a conduta do sócio particular controlador. Trata-se de paradigma de gestão superior aos níveis normalmente delineados pela legislação nacional. Por seu intermédio, incrementa-se a transparência das relações dos sócios entre si, bem como entre eles e a sociedade, o que confere maior segurança ao negócio.

Não obstante as sociedades de propósito específico notabilizem-se no palco social pela sigla SPE, o seu nome empresarial, isso é, o signo que identifica singularmente cada pessoa jurídica, não se forma com a inclusão da mencionada sigla. Ele segue as normas de regência do tipo societário adotado para a constituição da SPE. Assim, em se tratando, por exemplo, de sociedade anônima, sua designação orienta-se pelo art. 1.160. do Código Civil de 2002.

Em suma, note-se, a SPE não trouxe grandes novidades à ordem jurídica, exceto a autorização para que o Estado nela concorra, subordinadamente, para a realização de um interesse por ele ditado no curso da antecedente licitação.


4. Breves conclusões finais

Pelo exposto, podem ser inferidas as seguintes conclusões acerca das SPE no âmbito das PPP:

  • a) a SPE constitui instrumento utilizado pelo Estado para orientar a alocação de recursos particulares na consecução de interesses públicos veiculados em contrato de parceria;

  • b) a SPE, em si, não constitui um novo tipo societário;

  • c) a SPE organiza-se sob uma forma societária personificável pré-existente e suas atividades sujeitam-se ao regime jurídico de direito privado, com os temperamentos da Lei de PPP;

  • d) a SPE tem natureza de uma corporate joint venture formada entre os setores privado e público, não estando o controle societário na mão deste;

Por fim, somente a utilização diuturna das SPE poderá dizer de sua eficiência ou não enquanto meio de realização de interesses públicos.


Notas

1 GUIMARÃES, Leonardo. A SPE – Sociedade de propósito específico. Revista de Direito Mercantil, 125, janeiro a março de 2002, p. 135.

2 GUIMARÃES, Leonardo. A SPE – Sociedade de propósito específico. Revista de Direito Mercantil, 125, janeiro a março de 2002, p. 134.

3 BASSO, Maristela. Joint ventures: manual prático das associações empresariais. São Paulo: Livraria do Advogado, 2002, p. 43.

4 Disponível em: www.ibgc.org.br/ibConteudo.asp?IDArea=2; Acesso em: 07/01/2005.

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Sobre o autor
Marcelo Andrade Féres

professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), doutorando e mestre em Direito pela UFMG, diretor do gabinete do Advogado-Geral da União, procurador federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÉRES, Marcelo Andrade. As sociedades de propósito específico (SPE) no âmbito das parcerias público-privadas (PPP).: Algumas observações de Direito Comercial sobre o art. 9º da Lei nº 11.079/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 698, 30 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6804. Acesso em: 24 nov. 2024.

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