1 INTRODUÇÃO
No contexto de uma pós-modernidade em que a economia brasileira já não mais observa um estado sólido de uma mera industrialização e investimento em infraestrutura, o país abraça novas políticas públicas de fomento à indústria criativa de videogames, sendo isso uma decorrência dos rumos traçados após o fenômeno denominado desindustrialização. O mercado de games no Brasil, hoje, busca ser capaz de gerar renda, impulsionar a economia do setor de audiovisual e possibilitar a inclusão digital. O Ministério da Cultura e o BNDES são instituições que viabilizam o desenvolvimento da economia criativa.
Considerando essa nova realidade, a era de redes sociais, de nativos digitais e de cultura criativa, passa-se a abordar a realidade dos jogos eletrônicos que veiculam publicidade – advergames – como uma forma rentável de trabalho para uma empresa. Afinal, existem várias espécies de jogos eletrônicos – enganam-se aqueles que acham que os games são utilizados apenas para fins de entretenimento. Hoje, são usados até mesmo na educação.
Porém, quando a temática diz respeito à comunicação mercadológica, surge a seguinte tensão existente entre advergames e a publicidade que veiculam: atingem um público considerado hipervulnerável ou de vulnerabilidade agravada, por serem as crianças seres humanos em fase especial de desenvolvimento, principalmente o cognitivo – trata-se da fase em que a neuroplasticidade cerebral humana, associada aos estímulos do ambiente, seria responsável por impactos comportamentais e afetivos no indivíduo (COSTA, 2014). São esses sujeitos de direitos que ficarão expostos, sobretudo, à publicidade infantil de alimentos, ficando comprometido o direito a um crescimento saudável e mediante pleno exercício das faculdades lúdicas inerentes à infância. Restará atacado o direito à saúde, nas dimensões física e psicológica.
O gravame é evidenciado, ainda, quando no país existe uma verdadeira lacuna legislativa sobre o assunto da publicidade infantil, pois o Código de Defesa do Consumidor disciplina o tema de forma genérica e o Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/16) menciona, mas não especifica em que termos se dará a política pública de proteção contra a exposição precoce à comunicação mercadológica.
Além disso, a própria regulamentação publicitária brasileira é realizada por uma ONG – o CONAR –, que não encontra força cogente em suas normas, uma vez que essa instituição não tem origem estatal – suas determinações não têm o peso de lei. Logo, as empresas empregam os preceitos éticos do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária de forma facultativa.
Assim, surge um despertar para uma investigação prática e acadêmica que é relevante: a publicidade infantil veiculada em advergames deve ser pautada numa ética publicitária por parte do fornecedor, quando este adota mascotes e personagens animados que convidam ao consumo, quando manipula dos signos do consumo.
Ainda: numa ponderação de interesses ética e constitucionalmente tutelados, deve haver uma restrição ou abolição da publicidade infantil no Brasil? E mais especificamente quanto ao tema dos alimentos: a veiculação de tal tipo de mensagem em advergames configuraria uma afronta ao princípio da proteção integral consubstanciado no Estatuto da Criança e do Adolescente? Esse será o tema a ser trabalhado no presente artigo.
2 O PÚBLICO-ALVO INTERESSADO E A JUSTIFICATIVA DO TEMA
É crescente o rol de públicos interessados na temática, a exemplo dos profissionais que atuam no ramo de entretenimento eletrônico, como os game designers, aqueles que são os responsáveis por produzir os jogos propriamente ditos, atuando no campo da tecnologia e da programação; ou ainda, os profissionais da comunicação social, seja no ramo da Publicidade e Propaganda, seja no campo do jornalismo de games.
Também podem ser mencionados como públicos-alvo: os historiadores de games, novo foco de estudo da História que se desenvolveu a partir da abordagem de jogos de guerra e eventos históricos, extrapolando o mero ludismo inerente ao mundo do combate online; aos servidores públicos do Ministério da Justiça que laboram com a classificação indicativa dos referidos produtos que chegarão ao consumidor final; os pedagogos que empregam a gamificação – serious games – na educação em escolas públicas e particulares; os advogados que militam na área de direito do entretenimento; dentre outros tantos.
O tema também faz parte dos estudos de direito da saúde, bioética e até mesmo psicologia, interessando aos profissionais em nível multidisciplinar na área da saúde.
A indústria criativa tem se desenvolvido no Brasil e a produção bibliográfica sobre advergames também. A questão é que muitos artigos científicos e livros abordam o tema desses jogos eletrônicos apenas sob o aspecto do game design, da publicidade em si mesma – quando não abusiva e como forma de manifestação da liberdade de expressão –, havendo pouca produção científica em termos de abordagens éticas e jurídicas no que tange à publicidade infantil de alimentos – até mesmo porque, somente no ano de 2016, o Superior Tribunal de Justiça proferiu a decisão paradigmática do caso “Shrek” de publicidade infantil de alimentos. No mesmo ano, veio o Marco Legal da Primeira Infância como iniciativa legislativa e a Nota Técnica nº 3/2016/CGEMM/DPDC/SENACON, atuação por parte do Poder Executivo.
Há razões para que o Poder Legislativo tome novas iniciativas, que atue especificando claramente em que limites deve ocorrer a restrição da publicidade infantil de alimentos, após devido debate democrático nas Casas do Congresso Nacional, de forma a se chegar a uma legislação que conduza a uma postura empresarial ética e responsável perante as crianças, conduta esta que esteja em consonância com a nova Lei 13.257/16 (Marco Legal da Primeira Infância), com o Código de Defesa do Consumidor, com o Estatuto da Criança e do Adolescente e, sobretudo, com a própria Constituição.
3 O ARGUMENTO
O fornecedor quer vender seu produto e, muitas vezes, busca fazê-lo sem observar que o capitalismo deve respeitar um viés solidário de proteção do consumidor – a face da fraternidade no âmbito privado, tomando por base os preceitos insculpidos nos artigos 5º, XXXII e 170, V da própria Constituição. Outros dispositivos que poderiam ser mencionados seriam o art. 37, §2º do Código de Defesa do Consumidor em diálogo de fontes com o art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, que versa sobre a doutrina da proteção integral dos pequeninos.
Os nativos digitais crescem envoltos a promessas de felicidade traduzidas em consumo, o que implicará em narcisismo, sedentarismo, descartabilidade dos objetos, manipulação, individualismo, contribuição para o endividamento dos pais e até mesmo a obesidade infantil (SANTOS, 2014). Esse consumo vai ser estimulado por meio da publicidade, que trabalha os signos, dotando-os de forte carga ideológica, e pessoas em desenvolvimento cognitivo como as crianças sequer conseguem identificar que o conteúdo que observam se constitui em publicidade – veja-se que o princípio da identificação da mensagem publicitária não é cumprido.
Costa (2014, p. 28) chama os nativos digitais de “geração multitarefa”:
A geração multitarefa “cresceu” mais rápido (“compressão etária”), estão mais conectados e são mais informados. Para Horgan (2012), a multitarefa facilita as interações! Esta propriedade é utilizada na publicidade: os jogos personalizados são um ótimo instrumento para marketing de seus produtos; os jogos realmente permitem uma divertida interação com a sua marca e mantêm a atenção por tempo maior que qualquer outro método de marketing; os jogos expõem os consumidores positivamente a sua marca e são um ótimo instrumento de geração de contatos qualificados, atraindo a autoidentificação e, portanto, fornecendo contatos para futuros esforços de marketing (Horgan, 2012). Os Advergames são jogos online nos quais os produtos da companhia ou marcas, a publicidade e os jogos estão juntos.
Santos (2014, p. 42-43) corrobora o pensamento do autor anteriormente citado:
Associar o consumo ao divertimento é uma estratégia certa de vendas. Há muito se observa a associação dos produtos com brindes, e a novidade no momento é a agregação dos produtos com jogos interativos online nos sites de indústrias, voltados ao entretenimento da garotada. Diferente das necessidades de compras dos filhos, aos pais incide a decisão de compra, a satisfação de proporcionar aos filhos saúde (Santos, 2009). Para também atendê-los, observa-se, nas prateleiras de supermercado, o crescimento de produtos acompanhados de afirmativas: “rico em ferro”, favorece o crescimento”, e, por último, a moda do “livre de gordura trans”, além das já tradicionais palavras fortes, como rico em ferro, proteínas, fonte de zinco e ferro, etc.
É preciso que se reconheça que o princípio da transparência encontrado no Código de Defesa do Consumidor tem uma dimensão ética, sendo a informação a principal forma de garantia da liberdade do consumidor, para que este busque um mínimo de igualdade material perante o fornecedor. Sem aptidão para identificar o conteúdo publicitário, as crianças não podem ser livres para fazer escolhas responsáveis no mercado de consumo, fato que lhes fere a condição de sujeitos de direitos, se expostos à publicidade infantil.
Diante dos impasses mencionados, passa-se à discussão de cunho jurídico: a investigação a respeito de o ordenamento jurídico brasileiro ter ou não a incumbência de abolir de vez a publicidade infantil, a exemplo do que ocorreu na Suécia – país que acabou com a publicidade para as crianças menores de 12 anos –, ou se conviria apenas realizar a restrição da mensagem publicitária.
Para toda decisão estatal, há um fundamento, mediante critérios teleológicos. Há interesses em jogo. Os interesses da economia versus interesses dos sujeitos de direitos fundamentais. A análise da repercussão de eventual abolição, seus efeitos positivos e negativos – a denominada ponderação de interesses. Diante da lacuna legislativa existente, evidencia-se verdadeiro ativismo jurídico por parte de outros Poderes, que tentam, de certa forma, “colmatar” o vazio deixado pelo Poder Legislativo. O Executivo expediu a Nota Técnica nº 3/2016/CGEMM/DPDC/SENACON e o Judiciário, por meio do julgamento do “caso Shrek” de venda de relógios associados a lanches – a denominada venda casada –, inovaram a fim de dar rumo ao tema da publicidade infantil de alimentos.
A decisão jurídica deverá observar que as economias do mundo globalizado submetem-se a um sistema global de funcionamento das sociedades e do trabalho. Chiavenato (2004, p. 13) menciona que a globalização gera uma verdadeira “lavagem cerebral” sobre as pessoas, acabando com a capacidade crítica e impedindo o indivíduo de acompanhar ou contestar o processo de produção.
Nessa realidade as mídias vão funcionar como verdadeiros instrumentos de poder, como diria Foucault (1996). São capazes de determinar os influxos no que diz respeito às perdas de identidade cultural e definição de subjetividades. O autor também trabalhou, ao longo de sua obra, os conceitos de biopolítica e biopoder, de forma que seria possível fazer uma associação entre as ideias de Foucault e os influxos sobre o corpo e mente da criança consumidora.
Na era da difusão em massa de informações, o que se poderia entender por “mídia”? Essa palavra designa qualquer meio ou plataforma capaz de transmitir mensagens. O mundo contemporâneo vivencia o aparecimento de novas mídias ou novos métodos de comunicação como os smartphones e seus aplicativos; as tecnologias de streaming; as mais diversas redes sociais, nas quais os anunciantes conseguem atingir os mais diferentes públicos.
Oliveira (2012, p. 44) menciona que os discursos que permeiam a sociedade de consumidores produzem desejos individuais. Uma sociedade de “subjetividade forjada no capitalismo neoliberal”. Os signos do consumo traduzidos em advergames são exatamente isso: exercício do poder, instrumento do capitalismo sobre pessoas em fase especial de desenvolvimento.
Nessa perspectiva, há de se buscar, necessariamente, segundo a própria ordem de valores definida pela Constituição e pela legislação, um capitalismo que seja solidário, que respeite uma ética empresarial e que tenha função social.
Mendes e Santos (2016, p. 120-121) dispõem que a empresa deve ter uma função social que se projeta para seu exterior. É dizer: deve observar leis trabalhistas, princípios da livre concorrência, a defesa do consumidor e a proteção ao meio ambiente. E o próprio legislador deveria adotar uma “técnica legislativa de conteúdo promocional” da empresa. O fornecedor deve estimular o comportamento ético, deve promover cultura, desporto, lazer, patrocínio, incentivo a atividades que possam trazer algum benefício à sociedade. A responsabilidade social se traduz, também, em conteúdo promocional ético.
Skura e Velho (2015) mencionam que o estilo de vida do tempo contemporâneo é evidenciado no conteúdo da publicidade e do consumo, sendo que as marcas carregam identidades próprias que definem os rumos das vidas das pessoas. “Os anúncios são portadores de representações, configurando uma realidade revestida em um mundo imaginário de situações sociais” (SKURA; VELHO, 2015, p. 57).
É para isso que servem as narrativas e o storytelling: construir representações que cativem as crianças. Criar mundos mágicos, felizes, animados: a Disneylândia, o Parque da Mônica, os jogos do Mario, tudo contendo verdadeiros roteiros bem construídos e duráveis ao longo do tempo, capazes de se disseminar em brinquedos, gibis, games, alimentos, roupas, cadernos, etc.
Pois bem. Trazendo as lições acerca da ética empresarial para a realidade dos advergames: o comportamento organizacional deve observar que a violência das cidades e a ausência dos pais têm aumentado a presença das crianças na frente de computadores e televisões.
Portanto, por que não trabalhar em prol de conteúdo educativo, algo que acrescente ao desenvolvimento dos pequenos numa sociedade em que seria bem-vindo um marketing humanizado? Eis aí a funcionalização da empesa em prol de valores substanciais, humanistas, fraternos e dentro de uma ideia de capitalismo fraternal.
Um exemplo: se a publicidade infantil de alimentos dá ensejo ao consumo de gordura, sal, açúcar e até mesmo corantes e conservantes, não seria ético por parte do fornecedor recusar atender a eventuais demandas por parte dos fornecedores?
Diante dessa pauta de discussões, os pressupostos teóricos que vão embasar propostas e soluções têm como ponto de partida, então, o tema da sociedade de consumo, que pode ser trabalhado em autores como Jean Baudrillard, Lívia Barbosa, Zygmunt Bauman e Guy Débord.
Além disso, a realidade eletrônica, a sociedade em rede, a galáxia vídeo e a cultura da convergência – todas essas designações desembocando naquilo que ficou consagrado como cibercultura – são pressupostos sociológicos encontrados em autores como Manuel Castells, Henry Jenkins e Pierre Lévy.
A temática da veiculação de publicidade como um instrumento de poder parte do pressuposto teórico do próprio discurso como dotado de carga ideológica. A construção de sentidos da linguagem, a interpretação das alegorias: como podem ser vistos os personagens, os mascotes, as figurinhas e as animações das publicidades? É o campo ética publicitária. Serão trabalhados autores como Lúcia Santaella, Michel Foucault, Maria do Rosário Gregolin, dentre outros que abordem a questão do discurso e da linguagem.
A técnica jurídica a de ser estudada em autores da área de Direito do Consumidor, a exemplo de Claudia Lima Marques, Bruno Miragem, Fabrício Bolzan, Flávio Tartuce e toda uma gama de autorizados doutrinadores.
Utilizando tais argumentos e tais fontes informativas é que se faz possível um eventual debate coerente sobre o tema.
4 CONCLUSÃO
O presente artigo buscou evidenciar que, através de estudos mais aprofundados e dentro do projeto de sociedade solidária previsto na Constituição, os debates a serem desenvolvidos na temática da publicidade infantil em advergames buscarão:
-Demonstrar de que há um novo mercado de trabalho que produz jogos eletrônicos que veiculam publicidade na sociedade de consumo;
-Demonstrar da importância da tutela da criança enquanto sujeito em especial fase de desenvolvimento, especialmente na era da cultura eletrônica;
-Mostrar que os videogames podem ser utilizados na educação, em terapias médicas, na arte e que a publicidade por meio de advergames é uma demonstração de uma economia criativa em ascensão no país;
-Evidenciar que o tema tem relevância teórica e prática que interessa a múltiplos setores de atuação profissional;
-Demonstrar que os advergames são instrumentos de exercício do poder, mais especificamente, do biopoder;
-Evidenciar a importância da educação para o consumo como forma de exercício da cidadania, desde a infância;
-Mostrar que o capitalismo deve assumir um caráter solidário e fraternal pautado na ética empresarial;
-Sugerir mecanismos jurídicos que eliminem a publicidade infantil do país.
REFERÊNCIAS
CHIAVENATO, Júlio José. Ética globalizada e sociedade de consumo. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2004.
COSTA, Jaderson Costa da. A publicidade e o cérebro da criança. In: ALVAREZ, Ana Maria Blanco Montiel; PASQUALOTTO, Adalberto. Publicidade e proteção da infância. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 17-34.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
MENDES, Eduardo Heitor; SANTOS, Deborah Pereira Pinto dos. Função, funcionalização e função social. In: KONDER, Carlos Nelson; SCHREIBER, Anderson. Direito civil constitucional. São Paulo: Atlas, 2016. p. 97-124.
OLIVEIRA, Adriano Machado. O conceito de sociedade de consumidores em Zygmunt Bauman: implicações para a compreensão da subjetividade do sujeito contemporâneo. Revista Cadernos Zygmunt Bauman, São Luís, v. 2, n. 4, p. 44-58, 2012.
SANTOS, Andréia Mendes dos. Uma relação que dá peso: propaganda de alimentos direcionada para crianças, uma questão de saúde, direitos e educação. In: ALVAREZ, Ana Maria Blanco Montiel; PASQUALOTTO, Adalberto. Publicidade e proteção da infância. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 35-52.
SKURA, Ivania; VELHO, Ana Paula Machado. “Criança, a alma do negócio”: reflexões sobre publicidade infantil e ética. Revista Uninter de Comunicação, v. 3, n. 4, jan./jun. p. 48-60, 2015.