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A função punitiva da responsabilidade civil e seu aspecto democratizador na jurisprudência brasileira

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A clássica função da reponsabilidade civil se mostra insuficiente para solucionar toda a problemática que envolve o tema, levando-se em consideração, inclusive, a evolução natural da concepção de dano.

RESUMO: O presente trabalho versa sobre a reformulação do instituto jurídico da responsabilidade civil sob a égide do processo de constitucionalização do direito privado no Estado brasileiro, com especial enfoque na função punitiva da responsabilidade civil e sua adoção pelo ordenamento e jurisprudência pátrio em favor da democratização do dano. Além disso, este projeto apresenta e introduz na legislação pátria a percepção do fenômeno estrangeiro intitulado de punitive damages (“danos punitivos”) e sua correlação para com a responsabilização civil. Estruturado em três fases, preliminarmente, o trabalho concentra-se em delimitar a responsabilidade civil, debatendo-se sobre suas peculiaridades e acepções, bem como, passando sobre cada uma de suas funções. Posteriormente, passa-se a analise acerca dos “danos punitivos” e sua relação com a função punitiva da responsabilidade civil em atenção a problematização da democratização do dano com o agente repressor e educativo de condutas lesivas. Por fim, é realizada a interpretação das informações acostadas ao processo informativo para determinar a eficácia da função punitiva como instrumento de reprimenda e democratização do dano, tanto quanto ao seu aspecto material como extrapatrimonial e a necessidade de uma legislação que positive essa possiblidade de indenização. A metodologia concentra-se na análise de documentos, textos e materiais relacionados ao tema, tendo especial atenção ao arcabouço bibliográfico disponível.

Palavras-chave: Responsabilidade; Civil; Indenização; Punitiva; Dano.


INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil surge com o propósito de garantir a reparação ou compensação dos danos decorrentes da ofensa a um direito alheio, viabilizando a oportunidade de a vítima retornar ao status em que se encontrava antes da ocorrência do dano, conforme delimitam os artigos 927 e 944 do vigente Código Civil.

Nesse diapasão, é cediço que o ordenamento pátrio vem passando por um período intenso de transformações em razão do processo de constitucionalização da legislação, que envolve uma sonora releitura de diversos institutos do direito privado em favor da ótica constitucional e da eficácia horizontal dos direitos fundamentais e do princípio da dignidade da pessoa humana.

Como resultado desse processo de constitucionalização, persistiram mudanças de entendimento de institutos há muito tempo consolidados e enraizados na legislação, como fora o caso da Responsabilidade Civil.

A partir dessa nova reflexão, fora suprimida a ideia de indenização apenas com fito reparatório, tendo em vista que a mera compensação financeira se mostraria insuficiente para responder aos problemas de uma sociedade multicultural, democrática e pluralista, que por ter na pessoa seu valor-fonte, estabelece um novo patamar para fins de apuração dos graus de responsabilidade e, assim, solucionar de forma eficaz os conflitos provenientes da sociedade contemporânea.

Nesse aspecto, a responsabilização passa a abrigar valores transindividuais, isto é, que não se concentram na extensão ou na natureza do dano, mas sim no propósito de usar a indenização sob a alcunha punitiva, preventiva e pedagógica, fazendo que o agente lesante possa ser responsabilizado para além da perda pecuniária e reflita verdadeiramente sobre suas atitudes, evidenciando o fim social que a responsabilidade civil se propõe.

A funcionalização dos institutos jurídicos significa, então, que o direito em particular e a sociedade em geral começam a interessar-se pela eficácia das normas e dos institutos vigentes, não só no tocante ao controle ou disciplina social, mas também no que diz respeito à organização e direção da sociedade, abandonando-se a costumeira função repressiva tradicionalmente atribuída ao direito, em favor de novas funções, de natureza distributiva, promocional e inovadora, principalmente na relação do direito com a economia.[1]

Nessa perspectiva, cerceado pelos elementos clássicos da responsabilidade civil e pelos novos paradigmas da sociedade moderna é que se deslumbra a atenção para a função punitiva da responsabilidade civil como relevante ferramenta da atividade jurisdicional para a manutenção harmoniosa do sistema jurídico brasileiro sob a ótica da responsabilização e indenização.

Introduzida pela atividade jurisdicional nos casos de indenização provenientes de danos morais, a função punitiva da responsabilidade civil vem sendo adaptada pela jurisprudência em casos que o pedido de indenização não se concentra na obrigação exclusiva de reparar ou compensar a vítima, mas sim em um pagamento composto de uma quantia extra, só que a título de punibilidade.

A importância da função punitiva da responsabilidade civil pode ser notada, ainda, na medida em que, ao contrário da reparação, a pena civil não foca no dano percebido pela pessoa da vítima e nem possui o objetivo de recompor o seu patrimônio. Seu fundamento é pedagógico, ou seja, cuida-se de desestimular o ofensor à pratica de condutas socialmente intoleráveis (prevenção especial) e, reflexamente, estaria a inibir atuações semelhantes por parte de todos os potenciais ofensores que se encontram em idêntica situação (prevenção geral).[2]

A admissibilidade da pena civil pelo ordenamento pátrio é perfeitamente possível, todavia os tribunais brasileiros ainda demonstram grande timidez na aplicação da função punitiva, enquanto a doutrina ainda resiste na aceitação desta, o que decorre, em grande parte, pelo fato de que o sistema jurídico tupiniquim ainda não permite a adoção positivada dessa função em parceria com a compensatória, em razão da separação entre direito civil e penal.[3]

Fato é que mesmo sem a prévia cominação legal, a presente função se faz muito atual na realidade do direito privado nacional, e a necessidade de se incorporar ao dano uma possibilidade ampla reparação é a principal questão que o presente projeto de pesquisa tem a pretensão de esclarecer.

Desta forma, o presente trabalho encontra-se dividido em dois capítulos. Num primeiro momento faz-se aprofundada da Responsabilidade Civil, com enfoque em cada uma de suas funções e, obviamente, especial atenção para o fenômeno das “punitive damages” e a função punitiva da responsabilidade civil. Enquanto o segundo capítulo fica por conta de atestar a presença da função punitiva na jurisprudência pátria e os aspectos fundamentais que envolvem a sua aplicabilidade e necessidade de positivação na estrutura legislativa brasileira.

A problemática que envolve o tema consiste em identificar as diretrizes fundamentais da função punitiva, bem como lançar um olhar crítico em relação as funções da responsabilidade civil pós-moderna, e identificar seus reflexos na legislação e jurisprudência pátria.

Destarte, a metodologia utilizada infere-se na análise de documentos e textos relacionados a temática, com o propósito de interpretar os dados colhidos para além da leitura simples, com uma abordagem baseada na construção bibliográfica disponível. A vantagem da pesquisa primordialmente bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que a pesquisa direta poderia vir a conquistar, tendo em vista a novidade legislativa que ainda permeia essa pesquisa.


Da Responsabilidade Civil

Contexto Histórico

É notório3 que qualquer atividade que acarretar prejuízo, seja ela na modalidade dolosa ou culposa, traz consigo a problematização da responsabilidade. Este instituto jurídico desenvolveu-se no propósito de restaurar o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor de um dano, cum fulcro a restabelecer a harmonização e o equilíbrio distorcidos através da responsabilidade civil.

A definição dessa figura jurídica tem origem na dialética romana, derivada da expressão latina spondeo, caracterizava solenemente o devedor vinculado a um contrato verbal, onde a responsabilização estava tutelada sob a égide de três pressupostos: dano, culpa do autor e nexo de causalidade entre o fato culposo e o mesmo dano.[4] Essa concepção clássica é fruto do desenvolvimento da vida do homem em sociedade, que não só deve obediência a regra jurídica imposta, como em caso de desobediência, sofrerá as consequências pelos seus atos.

Ao longo do tempo, a reponsabilidade civil procurou delimitar o grau dessa responsabilização, determinando as circunstancias em que um indivíduo pode vir a ser considerado ou não responsável pelo dano sofrido por outrem e em quais situações será obrigado a repará-lo, ou seja, a responsabilidade nasce quando uma obrigação deixa de ser cumprida.

Nessa concepção, a escola francesa passa também a compor um dos expoentes da responsabilidade civil, com a figura do Estado soberano outorgado na função de confecção e aplicação das leis, rompendo-se com a ideia de justiça com as próprias mãos e inserindo a noção de indenização como se vê nos dias atuais. O Código Civil napoleônico fora construído num complexo de regras direcionadas a limitação da liberdade individual, isto é, sendo determinado ao causador do dano, que em virtude de condutas que supostamente ultrapassassem os limites dessas prerrogativas, a obrigação legal de indenizar os prejuízos por ele causados a terceiros.

Qualquer atividade que acarretar prejuízo, seja ela na modalidade dolosa ou culposa, traz consigo a problematização da responsabilidade. Seguindo a mesma corrente, essa figura jurídica enraizou-se no ordenamento pátrio com fulcro a restaurar o status quo ante modificado pelo autor do dano.

Aspectos da Responsabilidade Civil

Em uma abordagem introdutória, a responsabilidade civil deve ser encarada como a obrigação de reparar ou compensar um dano patrimonial ou extrapatrimonial ocasionado por meio de uma ação ou omissão, objetivado o retorno do bem jurídico fragilizado ao seu estado anterior.

Nas palavras da professora Maria Helena Diniz:

A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesmo praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal.[5]

Por seu turno, Carlos Roberto Gonçalves e José de Aguiar Dias versam da seguinte forma:

Toda atividade que acarreta prejuízo traz em seu bojo, como fato social, o problema da responsabilidade. Destina-se ela a restaurar o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor do dano. Exatamente o interesse em restabelecer a harmonia e o equilíbrio violados pelo dano constitui a fonte geradora da responsabilidade civil. Pode-se afirmar, portanto, que responsabilidade exprime ideia de restauração de equilíbrio, de contraprestação, de reparação de dano.[6]

O instituto é essencialmente dinâmico, tem de adaptar-se, transformar-se na mesma proporção em que envolve a civilização, há de ser dotado de flexibilidade suficiente para oferecer, em qualquer época, o meio ou processo pelo qual, em face de nova técnica, de novas conquistas, de novos gêneros de atividade, assegure a finalidade de restabelecer o equilíbrio desfeito por ocasião do dano, considerado, em cada tempo, em função das condições sociais então vigentes. [7]

Desta forma deve-se interpretar que a responsabilidade civil parte do pressuposto de que todo agente que violar um dever jurídico por meio de um ato (omissivo ou comissivo) danoso, fica automaticamente obrigado a repará-lo. Essa reparação contempla tantos os danos aos bens materiais, como também, aqueles relacionados ao ânimo psíquico, intelectual e moral da vítima, os quais atingem sua integridade física, honra, intimidade, privacidade, imagem, etc.[8]

Cinge-se destacar que esta tendência em tutelar a pessoa humana contra agressões a direitos dessa natureza foi raramente aprendida pelo legislador, num processo que se deu com muita lentidão, cabendo então a jurisprudência a tarefa de tutelar os direitos fora da órbita patrimonial, relacionados a intimidade do ser humano, proporcionando-lhe meios adequados de defender tais valores eminentemente personalíssimos contra agressão de seus semelhantes.[9]

Sendo assim, a responsabilidade civil tem o condão não apenas de restaurar a ordem social modificada pelo agente transgressor, seja por meio da reparação integral ou compensação (função reparatória), mas também de sancionar e prevenir a reincidência de condutas do mesmo gênero (função punitivo-pedagógica).[10]

Observa-se mais uma vez as palavras de Carlos Roberto Gonçalves:

O caráter punitivo é meramente reflexo ou indireto: o autor do dano sofrerá um desfalque patrimonial que poderá desestimular a reiteração da conduta lesiva. Mas a finalidade precípua do ressarcimento dos danos não é punir o responsável, e sim recompor o patrimônio do lesado. [11]

Destarte, no Brasil, é nítida a presença da função punitiva e preventiva da responsabilidade civil, com especial enfoque adstrito ao dano moral e aos direitos da personalidade, sendo esta função uma espécie de consequência do prejuízo ocasionado pelo dano refutado. É nesse contexto, que inspirado pelos dogmas de proteção à dignidade da pessoa humana, como um dos fundamentos basilares da Constituição Federal (art. 1º, inciso III), o direito brasileiro procura esculpir valores além dos meramente compensatórios quando do ressarcimento dos danos extrapatrimoniais.[12]

Sendo assim, a problemática agora tem o escopo do estudo detalhado da responsabilidade civil, com fulcro a delimitar as funções a serem por ela exercidas para que se possa verificar e assegurar a existência e manutenção de uma sociedade pautada pelos princípios insculpidos em nossa Carta Magna.

Aspectos da Responsabilidade Civil

Inicialmente é forçoso que se reconheça que o diploma civilista nacional, assim como todo Direito privado, vem passando por um processo de “constitucionalização”, que a doutrina moderna intitula de Direito Civil-Constitucional.

Essa reformulação de pensamento culminou em uma nova intelectualização de diversos dogmas e institutos jurídicos já pacificados pela doutrina e a jurisprudência, como no caso da própria responsabilidade civil, que segundo observa-se nas palavras de Anderson Schreiber:

O fenômeno da constitucionalização do direito civil refletiu-se, portanto, também na responsabilidade civil, e de forma notável. Um novo universo de interesses merecedores de tutela veio dar margem, diante da sua violação, a danos que até então sequer eram considerados juridicamente como tais, tendo, de forma direta ou indireta, negada a sua ressarcibilidade.[13]

Desta feita, é nesse cenário de mudanças eminentemente significativas que se destaca o “renascimento” da responsabilidade civil, agora funcionando de acordo com a nova tutela de direitos personalíssimos e as premissas da Constituição Cidadã de 1988, tendo como referência direta o fenômeno da punitive damages (conforme adiante será delimitado), amplia seu rol de funções, enfatizando seu caráter punitivo e pedagógico.[14]

Nesse diapasão, fica cada vez mais claro que uma indenização fundada única e exclusivamente no aspecto reparatório não mais atende a todas as circunstâncias da vida do indivíduo, tendo em vista que a singela compensação do sujeito lesado, com base na teoria clássica da responsabilidade civil, é instrumento inábil para responder aos anseios da sociedade moderna. Assim, essa releitura da responsabilidade civil é bem-vinda para que se possa estabelecer nova fronteiras no limiar do seu alcance, demonstrado segurança jurídica e eficácia ao novo direito civilista pátrio.[15]

Corroborando com esse posicionamento, com a sutileza que lhe é peculiar, observa-se as palavras de Gustavo Tepedino:

[...] a perspectiva de interpretação civil-constitucional permite que sejam revigorados os institutos de direito civil, muitos deles defasados da realidade contemporânea e por isso mesmo relegados ao esquecimento e à ineficácia, repotencializando-os, de molde a torna-los compatíveis com as demandas sociais e econômicas da sociedade atual.[16]

Existe, portanto, uma ampliação nítida das funções punitiva e pedagógica da responsabilização civil, além de sua chamada terceira função, denominada de distributiva e refere-se aquilo que foi retirado da coletividade por meio de uma ação danosa ocasionada por grandes grupos econômicos, dever-se-á devolvido a ela.[17]

Por fim, deve-se compreender que cabe ao Direito Civil fomentar novos paradigmas e tutelar os direitos sempre em acordo com a evolução natural da sociedade, sem abandonar claro, os pilares da dignidade da pessoa humana e do Estado democrático de Direito, como aconteceu com a remodelação da responsabilidade civil.

Elementos da Responsabilidade Civil

Para se compreender estruturalmente a responsabilidade civil é necessário estudar o conjunto de elementos que viabiliza a experiência e reconhece o dever de reparar os prejuízos patrimoniais e extrapatrimoniais.

O instituto da responsabilidade civil possui quatro elementos indispensáveis para a sua caracterização, quais sejam: conduta (ação ou omissão), culpa do agente, nexo de causalidade (entre o dano e a conduta que o produziu) e respectivo dano sofrido. Tais elementos podem ser percebidos a partir da inteligência dos artigos 186 e 927 do Código Civil:

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Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.[18]

Destarte, a análise sincrética de cada um desses elementos tem o propósito de elucidar o surgimento da obrigação de indenizar a vítima pelos prejuízos que lhes foram causados. A conduta trata-se do elemento primário da responsabilidade civil, sendo derivada de um comportamento humano voluntário e imputável, onde também se integram os atos praticados por negligência, imperícia e imprudência, bem como as omissões do agente transgressor, se persistir o dever de agir.[19]

O dano atua como mecanismo para qualificar a responsabilidade civil. O dever de reparar só se emancipa caso o agente transgressor cometa ato ilícito e cause danos a outrem, todavia, quando a conduta é ilícita, porém, não infere dano a outra pessoa, não há como caracterizar a responsabilidade civil, tendo em vista que esta origina-se exclusivamente da obrigação de reparação, e não materializasse em situações em que não subsista o que ressarcir. Sendo assim, para que posa subsistir o dever de indenizar, resta cristalino que apenas o risco de dano e a conduta ilícita não são suficientes, sendo necessário um resultado concreto, logo prejudicial ao patrimônio (seja ele de cunho patrimonial ou extrapatrimonial).[20]

Cinge-se aqui destacar que o dano moral atingiu um novo patamar de reparabilidade, tendo em vista a evolução natural do ordenamento jurídico e da vida em sociedade. Mais uma vez, as palavras de José Aguiar Dias elucidam que “com os danos não patrimoniais todas as dificuldades se acumulam, dada a diversidade dos prejuízos que envolvem (...) e impõem a maior variedade nos meios de reparação, acontecendo, mesmo, que, às vezes, nem se apresente modo de fazê-lo”.[21]

Tão logo, é indispensável pensar a reponsabilidade civil sem a pré-existência de um nexo de causalidade interligando o dano e a ação que o ocasionou, sendo este atributo mais meticuloso e difícil de ser talhado, devendo, portanto, ser analisado com eximia cautela. O nexo de causalidade é base de qualquer relação jurídica e para fins de responsabilidade por elo capital entre o agente transgressor e o dano. Insta ressaltar que é prescindível que o dano decorra imediatamente após o ato lesivo que supostamente o originou, bastando que se verifique que este se sucedera se ato lesivo não tivesse ocorrido.

Por fim, observa-se a culpa também como um dos elementos da responsabilidade civil, que curiosamente trata-se de um conceito jurídico indeterminado tendo em vista a inexistência quanto uma definição legal desse instituto no ordenamento pátrio, sendo que na hermenêutica civil, compreende-se sob duas perspectivas, conforme nos apresenta, mais uma vez, a professora Maria Helena Diniz:

A culpa em sentido amplo, como violação de um dever jurídico, imputável a alguém, em decorrência de fato intencional ou de omissão de diligência ou cautela, compreende: o dolo, que é a violação intencional do dever jurídico, e a culpa em sentido estrito, caracterizada pela imperícia, imprudência ou negligência, sem qualquer deliberação de violar um dever. Portanto, não se reclama que o ato danoso tenha sido, realmente, querido pelo agente, pois ele não deixará de ser responsável pelo fato de não se ter apercebido do seu ato nem medido as suas consequências.[22]

Desta feita, não basta imputabilidade do agente para gerar o ato ilícito, sendo necessário que o ele atue com culpa, isto é, sua conduta deve estar provida de reprovabilidade. Na responsabilidade civil a culpa se desdobra em duas correstes: a) culpa lato sensu que se desdobra em dolo e culpa e b) e a culpa stricto sensu com fundamento num perfil psicológico do agente para com conduta lesiva, levando em conta o posicionamento a intenção do agente.[23]

Funções da Responsabilidade Civil

O instituto da responsabilidade civil passou por inúmeras modificações desde o seu surgimento, migrando de uma concepção clássica, totalmente direcionada a indenização de cunho exclusivamente patrimonial, para um expoente moderno da noção de responsabilização, com fulcro a restabelecer o status quo ocasionada pelo prejuízo. A evolução e transformação dos costumes em sociedade trataram por elevar o mecanismo da responsabilidade a fim de viabilizar o restabelecimento do equilíbrio social afetado pela magnitude dos danos sofridos, independentemente de sua natureza patrimonial ou extrapatrimonial, logicamente com o propósito exclusivo de compensar a vítima.

Essa ideologia decorre da ideia que toda a atividade que culmina em prejuízo, traz intrinsicamente, como fato social, o problema da responsabilidade, voltada a restabelecer o equilíbrio por meio de uma contraprestação, ou seja a reparação integral do dano. Coloca-se, assim, o eventual responsável na situação de quem, por ter transgredido determinada norma, vê-se exposto as consequências não desejadas derivadas da conduta danosa, podendo ser compelido a reparar o estado natural anterior.[24]

Nas palavras de Alessandra Rezende Varisco:

Em sua trajetória, a responsabilidade civil abrangeu funções, que apesar de autônomas, relacionavam-se umas às outras: tradicionalmente, regressando aos tempos medievais, tem-se a função de punir o culpado e vingar a vítima; já na concepção mais contemporânea, a de restabelecer a ordem social e prevenir comportamentos antissociais.[25]

Em meandros do XIX a concepção de responsabilidade fora alvo das primeiras transformações que modificaram densamente seu instituto e aplicabilidade de suas funções. Nesse momento, rompem-se os laços exclusivos com as funções clássicas da responsabilidade: a punição, a vingança e o restabelecimento da ordem social deixaram de ser o centro de seus dogmas. [26]

Nesse momento histórico da responsabilidade, o Estado assume o papel de interventor nos conflitos relacionados ao dano, forçando o lesado a aceitar a composição e esquecer a força “sedutora” da vingança. Fenômenos modernos como a Revolução Industrial culminaram em um processo natural de humanização da responsabilidade civil.[27]  Esse fato está colacionado a ideia de que os danos causados acidentalmente, sem a presença de culpa, não se faz sentido a punição direta ao autor do prejuízo, muito menos o restabelecimento da ordem social, sendo a prioridade o cuidado com a indenização em favor da vítima. [28]

Nesse diapasão, a responsabilidade civil alinhou-se no desenvolvimento dos serviços de seguro. O contrato securitário oferece uma forma de reparação coletiva, realocando todo ônus adstrito aos prejuízos causados, repartindo-se os prejuízos coletivamente, dando-se total assistência ao lesado, pois havendo o seguro, o causador do dano não é quem o indeniza.

 Desta feita, com a adoção dessa concepção maximalista de responsabilidade, dividindo-se a tutela obrigacional, culminou um enfraquecimento da função punitiva e preventiva da responsabilidade civil, pois a figura do agente infrator deixa de ser pautada como o principal alicerce da responsabilização, transmitindo-se para a sociedade a “responsabilidade” por gerenciar os prejuízos.[29]

Atualmente, com o advento do novo código civilista e processo de constitucionalização da legislação, existem três funções relacionadas com a responsabilidade civil: a função reparatória/compensatória aos prejuízos da vítima; a função de prevenção a comportamentos ofensivos, prejudiciais e antissociais e por fim, a mais significativa para este projeto, a função punitiva da responsabilidade civil.[30]

Nesse sentido, observa-se as palavras do ilustríssimo professor Serpa Lopes:

Em atenção aos fenômenos narrados, vê-se que, para assegurar a tutela mais eficiente possível àqueles interesses considerados como especialmente relevantes, a responsabilidade civil deve se mostrar efetivamente “poli-funcional”. Nos casos em que assim se exigir, a responsabilidade civil deverá exercer, ao lado de sua tradicional função reparatória, e com igual relevância, uma função punitiva (também denominada de sancionatória) e uma função preventiva (também denominada de dissuasória). Não se está aqui a pensar em funções a serem desempenhadas de maneira subordinada àquela ressarcitória, mas sim de uma atuação efetivamente parelha, em que as três funções da responsabilidade civil atuem de conjuntamente para garantir a mais eficiente dosimetria do quantum indenizatório, em um patamar que sirva para, ao mesmo tempo e de maneira integral, compensar o ofendido pelo prejuízo suportado (em atenção a função ressarcitória), punir o ofensor pela conduta altamente reprovável por ele cometida (por força da função punitiva) e, ainda, desestimular o ofensor em geral de cometer, no futuro, atos semelhantes (o que se faz a luz da função preventiva).[31]

Sendo assim, a priori, é necessário que se compreenda que a adequação desse instituto para atender essas premissas pode variar de acordo com o caso concreto, pois nem sempre sua imputação de responsabilização é a melhor saída para determinadas situações.[32] Justamente por isso, o ordenamento jurídico pátrio apresenta as noções de responsabilidade em dois níveis: a) a responsabilidade oriunda do Direito Penal quando o ordenamento objetiva à prevenção/repreensão do agente transgressor ou b) a responsabilidade civil, que tem por finalidade a tentativa de reparação ao status quo da vítima.[33]

Essa noção de vitimização passa a estruturar essa figura jurídica sob a égide de duas teorias básicas: de um lado a culpa, baseada na teoria subjetiva e, em oposição, a teoria objetiva que independe da existência da culpabilidade para fins de responsabilização. A reponsabilidade subjetiva surge a partir do momento em que o agente transgressor pratica um ato ilícito afrontando à lei por conduta dolosa ou culposa, haja vista que a culpa passa a ser pressuposto necessário para viabilizar a indenização, e caso ela não subsista, inexiste o dever da reparação. Se faz necessário, portanto, que se demonstre à vontade do sujeito de forma concreta, ou seja o dolo, ou a culpa em sentido estrito, resultado direto de negligência, imperícia ou imprudência. Em contrapartida, a teoria objetiva independe da culpa do agente, bastando ao autor demonstrar o dano e o nexo causal para surgir o dever indenizar.[34]

Por fim, pode depreender que o fenômeno da responsabilidade civil moderna tem o condão de unir a tutela reparatória a interesses essencialmente importantes para o sujeito como pessoa, isto é, independentemente da natureza ou extensão do prejuízo. Resta claro, portanto, que as funções reparatória, preventiva e punitiva subsistem de forma independente, entretanto, para que possa ser autossuficiente, a responsabilidade civil necessita de uma atuação conjunta de todas elas, servindo para, simultaneamente e de forma efetiva, compensar a vítima pelos prejuízos sofridos e ceifar o comportamento lesante do causador do dano.[35]

Função Reparatória

A função básica da responsabilidade civil é a reparação, tendo em vista o propósito de se reparar ao status quo ante determinado bem jurídico, seja de forma direta ou indireta, não pela gravidade do comportamento do autor do fato danoso, ou seja, o lesante, mas sim pela extensão e projeção do dano causado.[36]

De forma direta, o bem jurídico lesionado e perdido será reposto na sua integralidade, como se o lesionado jamais tivesse sido atingido pela força coercitiva do agente lesante. Em contrapartida, a forma indireta índica que a reposição do bem ao seu estado natural anterior é impossível, o que por corolário lógico, implica em uma indenização pecuniária em correspondência ao valor do bem jurídico afetado ou direito não redutível pecuniariamente.[37]

Quanto aos bens de caráter extrapatrimonial, é fundamental que a indenização seja fixada a fim de atender prerrogativas que tenham o condão de reduzir potencialmente os efeitos degradantes da conduta lesiva, e possam, tanto o quanto for possível, restabelecer a ordem natural por ora afetada.

Em acordo com o art. 944 do vigente Código Civil determina que “a indenização se mede pela extensão do dano”. [38] Esse dispositivo evidencia aquilo que a doutrina de caráter mais conversadora caracteriza como princípio da restituição, que se trata do núcleo essencial da responsabilidade civil clássica, e estabelece que o valor da indenização seria estipulado tão somente pelo alcance do dano, sem fazer sem fazer qualquer consideração ao juízo de descrédito a conduta do lesador.[39]

Cumpre aqui transcrever as palavras do professor Cavalieri Filho:

O anseio de obrigar o agente, causador do dano, a repará-lo inspira-se no mais elementar sentimento de justiça. O dano causado pelo ato ilícito rompe o equilíbrio jurídico-econômico anteriormente existente entre o agente e a vítima. Há uma necessidade fundamental de se restabelecer esse equilíbrio, o que se procura fazer recolocando o prejudicado no status quo ante. Impera neste campo o principio da restitutio in integrum, isto é, tanto quanto possível, repõe-se a vítima à situação anterior à lesão. Isso se faz através de uma indenização fixada em proporção ao dano. Indenizar pela metade é responsabilizar a vítima pelo resto (Daniel Pizzaro, in Daños, 1991). Limitar a reparação é impor à vítima que suporte o resto dos prejuízos não indenizados.[40]

Desta feita, é importante que se diga que o princípio destacado está relacionado com a ideia de que a reparação se extingue com a recondução da coisa afetada ao seu estado originário, de modo que o juízo cível permanece isolado e atrelado apenas ao dano, não podendo considerar aspectos antecedentes, reprovabilidade do fato, etc., a exemplo dos pressupostos que se verificam no juízo criminal. Sendo assim, persiste o engessamento da responsabilidade civil a uma interpretação endêmica dos enunciados do código, onde somente a presença do dano assegura a sansão, logo a obrigação de ressarcimento.[41]

Função Preventiva

A função preventiva surge com o propósito de expandir o princípio do dano para além do limite da indenização, influenciando a atividade da responsabilidade civil enquanto mecanismo dissuasor de condutas, obrigando o quantum indenizatório a ser suficiente a ponto de evitar que a causação do dano compense face ao comportamento lícito que se deve adotar.

Nas palavras de David Emanuel Chiquita Saraiva:

A ressarcibilidade dos danos visa em primeira instância colocar o lesado na posição em que estaria sem a verificação do evento danoso. Contudo, no que concerne à prevenção dos danos tem-se adotado uma posição diferente: tão importante como reparar o dano é criarem-se incentivos dissuasores da reiteração de condutas danosas. A doutrina refere a este propósito a possibilidade da inclusão do lucro por intervenção para efeitos de cálculo da indemnização, surgindo como exemplo primordial as soluções abraçadas em matéria de violação de direitos de propriedade intelectual.[42]

Também denomina de socioeducativa, essa função da reponsabilidade tem por objetivo a prevenção em caráter geral e especial. A prevenção tem o propósito de impedir que o agente transgressor realize condutas lesivas congêneres, isto é, valendo-se de uma sansão pecuniária não direcionada ao alcance do dano, mas com a finalidade de prevenir a prática de novos ilícitos pelo agente transgressor. Enquanto que a prevenção especial não se limita a figura do ofensor, pois vem a público com o propósito de enfatizar que determinadas condutas sequer serão aceitas ou toleradas pela sociedade. Desta feita, essa função tem o propósito de ceifar determinados comportamentos em sociedade, restringindo ações dúbias, restabelecendo o equilíbrio e a segurança almejados pelo direito.[43]

Insta ressaltar que a sociedade moderna se encontra fragilizada pela ubiquidade do medo e dos riscos, e isso tem reflexos estrondosos na responsabilidade civil. Tendo em vista que incerteza a respeito da ocorrência de novos danos, sejam eles conhecidos ou não, faz com que a função preventiva seja o principal expoente na responsabilização contemporânea.[44]

Nesse diapasão, resta cristalino que o ordenamento jurídico pátrio não tem o condão de absorver todas as possibilidades de prejuízo que envolvem as relações em sociedade, entretanto, se faz perfeitamente possível que receba seus riscos de forma plenamente eficaz, tendo em vista que determinados prejuízos não podem ser desfeitos ou recuperados pela responsabilidade civil.[45]

Destarte, a natureza dessa função encontra respaldo nos enunciados constitucionais, solidificando ainda mais sua aplicabilidade, relacionando-se intimamente com os princípios da segurança jurídica (art. 5º, caput), da solidariedade social (art. 3º, inciso I) e sobretudo aos danos de natureza ambiental, na obrigação da preservação do meio ambiente para as futuras gerações (art. 225, caput).[46]

É importante destacar que a funcionalidade preventiva da responsabilidade civil passou absorver valores de outros ramos do direito a fim de reforçar sua importância e aplicabilidade no cotidiano forense, como, por exemplo, o princípio da precaução oriundo do direito ambiental, brilhantemente delimitado por Teresa Ancona Lopez:

Princípio da precaução é aquele que trata das diretrizes e valores do sistema de antecipação de riscos hipotéticos coletivos ou individuais, que estão a ameaçar a sociedade ou seus membros com danos graves e irreversíveis e sobre os quais não há certeza científica; esse princípio exige a tomada de medidas drásticas e eficazes com o fito de antecipar o risco suposto e possível, mesmo diante da incerteza.[47]

Ademais, o desestímulo a determinados comportamentos não tem nenhuma relação com ideia de vingança privada, que busca apenas responder pelos prejuízos eventualmente causados com algo que martirize o agressor, enquanto que a ação de desestimular é ceifar o incentivo, isto é, enfraquecer a incitação ou propensão a condutas que causem danos a outrem por meio da força coercitiva da penalidade pecuniária.

Assim, é por meio dessa penalidade que a função preventiva alcança seus propósitos, sendo a sansão encarada exclusivamente sob a ótica da reparação, atuando como uma verdadeira resposta jurídica ao comportamento ofensivo do autor dano, de forma que o quantum indenizatório não tem o condão apenas de compensar, mas de intimidar o ofensor a não insistir pela conduta lesiva.[48]

Por conseguinte, conforme se observará no escopo da punitiva, o ato de punir é impor correção, reprimenda, castigo. Já o desestímulo fica por conta do o fim social preterido, e a punição é o mecanismo utilizado. Logo, pune-se o ofensor para coibir a prática do ato infracional.[49]

Função Punitiva

Resta cristalino que o Direito Civil vem sofrendo a reformulação de alguns valores, o que também se sucedeu com a responsabilidade civil, sendo que um de seus novos expoentes trata-se da função punitiva.

Existe o paradigma clássico e antigo da reparação integral o qual pugna pela indenização com base na extensão do dano sem qualquer acréscimo a título de punição do agente (função punitiva ou dissuasória). Entretanto, danos emergem na sociedade que são muito graves e que a necessidade de preveni-los é muito maior do que meramente indenizá-los posteriormente.[50]

 A função punitiva tem escopo também nos casos em que o agente causa um dano com culpa grave ou dolo, evidenciando o dever de repressão destas condutas pela sociedade. A viabilidade da função punitiva no direito civil brasileiro ainda não encontra previsão legal, o que gera inúmeras dúvidas e questionamentos quanto a sua efetividade no direito pátrio.

Tendo em vista as peculiaridades que permeiam a temática pelo direto privado contemporâneo, se faz necessária uma análise pormenorizada e individual desta ramificação da responsabilidade civil.

Constitucionalização da Responsabilidade Civil

Como já fora amplamente debatido, atualmente, é forçoso que se reconheça que o diploma civilista passou por um severo processo de constitucionalização, culminando em uma reanálise de diversos institutos jurídicos que há muito tempo se encontravam consolidados pela doutrina e pela jurisprudência.

Nesse cenário multifacetado, influenciado por uma miscigenação de novos valores e dogmas propostos pela Constituição Cidadã de 1988, observou-se a influência latente de outras estruturas legislativas no ordenamento brasileiro, com institutos oriundos, por exemplo, da escola do Common Law[51], como o fenômeno da punitive damages, que modifica os alicerces da responsabilidade civil e enfatiza do crivo punitivo-pedagógico da indenização reparatória.

A função punitiva vem sendo amplamente aplicada no sistema da Common Law, utilizando parâmetros como a culpa grave, dolo, capacidade econômica do agente transgressor e da própria vítima, além, obviamente da extensão do dano. Persistem várias críticas acerca da punitive damages no sentido de proporcionar um enriquecimento sem causa, tendo em vista que o montante indenizatório é destinado a própria vítima e não ao Estado, que em tese, seria o responsável por mediar a faceta da responsabilidade civil.[52]

Hoje, fica cada vez mais claro que a indenização estruturada exclusivamente sob a égide do aspecto reparatório não mais atende todas as necessidades da vida, haja vista que a simples compensação ao sujeito lesado, com alicerce único na teoria clássica da responsabilidade civil é circunstância inábil para responder aos anseios da sociedade contemporânea.

Desta feita, essa releitura da responsabilidade civil é mais do que bem-vinda para que se possa estabelecer novas fronteiras no limiar de seu alcance, trazendo equilíbrio, justiça e segurança jurídica ao Direito privado brasileiro, que exige uma atuação mais proativa do judiciário, especialmente no que tange aos danos de natureza extrapatrimonial.  [53]

Conceito

Destrinchar a função punitiva da responsabilidade civil é algo extremamente difícil, eis que se fala de um conceito jurídico indeterminado e sem correspondência legal no ordenamento, de modo a consolidar-se apenas pela força inovadora da jurisprudência e intelectualização pela doutrina.

  Preliminarmente, a função punitiva deve ser compreendida como instrumento jurídico dotado com a finalidade de impor ao agente transgressor uma indenização que extrapole o caráter compensatório do dano, ou seja, não se trata exclusivamente de restituir o ilícito causado pelo ofensor, mas sim de usar a reprimenda quanto aos seus feitos com a intenção de desestimular terceiros a prática de ações equivalentes e, consequentemente, ceifar a possibilidade do agente transgressor insistir na ação vergastada.[54]

Em mesmo sentido, não é errôneo considerar que o propósito punitivo da responsabilidade civil vai ao encontro de valores tutelados pela função preventiva. Mesmo assim, cabe salientar que a sansão punitiva está direcionada para o fim de remediar condutas particularmente reprováveis, destacáveis pela intencionalidade do agente lesante, podendo restringir-se exclusivamente a intenção de cometer determinado ato ilícito, ou ainda, estar valorada de outros interesses escusos como, por exemplo, o objetivo de obter lucro a partir de uma ilicitude anteriormente executada. [55]

Isto posto, as reflexões acerca do papel da responsabilidade civil são o produto latente das mudanças experimentada pela sociedade desde o século passado, quando as relações sociais deixaram de ser atinentes apenas à esfera individual e tornaram-se objetos “de massa”, sendo assim, fazendo-se verificar atributos da função punitiva no que tange a tutela sancionatória de bens e interesses de especial relevância, como os direitos de personalidade, os metaindividuais[56] e os de equilíbrio social.[57]

Destarte, se faz interessante transcrevermos os ensinamentos do ilustríssimo professor Clayton Reis sobre a função punitiva o juízo de reparação:

A questão da função punitiva dos danos extrapatrimoniais tem sido objeto de exacerbados debates doutrinários. É irrebatível, com o já amplamente observado que o quantum indenizatório tem um caráter compensatório ou satisfativo. Todavia, não há como negar que, a par dessa situação, é incontroverso que o sentido da pena encontra-se embutido no mens legislatori. 

(...)

O pagamento realizado pelo ofensor haverá de ensiná-lo a agir com maior cautela no cometimento de seus atos, bem como acarretará um grande efeito de persuasão no seu ânimo de lesionador. A diminuição de seu patrimônio, na maioria das vezes amealhado às custas de árduo trabalho, e aquinhoado como bem destinado à proteção e segurança pessoal e familiar, é circunstância que afeta de forma profunda os interesses de uma pessoa ou grupo de pessoas.[58]

Entendemos, no entanto, que se trata de uma melhor análise. É inegável que a pena acarreta um resultado educativo, no que concerne ao processo repreensivo imposto pelo ordenamento jurídico. A subtração de uma parcela do patrimônio do lesador exerce efeito traumático sobre este, conduzindo-o à elaboração de ideia de que será punido a cada dano que perpetrar.[59]

É salutar que se compreenda, mesmo que considerando-se a índole punitiva da indenização, autores como Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes apresentam cinco razões para se desconsiderar a existência de função punitiva da responsabilidade civil, quais sejam: a) inobservância ao princípio da legalidade; b) bis in idem, tendo em vista a responsabilidade criminal do lesador; c) a indenização, como penalidade, poderia vir a recair sobre outra pessoa que não o agente ofensor e terceiro, o que afasta a natureza jurídica do caráter punitivo; d)  caso fosse constatado  ilícito praticado no âmbito do serviço público, toda a sociedade poderia vir a ser punida e onerada naquela circunstância, e, por fim; e) hipótese de colisão com a responsabilidade civil objetiva, tendo em vista que nesta situação não verifica-se o grau de culpa.[60]

Contexto histórico do Punitive Damages

O fenômeno jurídico da punitive damages tem origem nos primórdios na sociedade, remontando a origem da hermenêutica do Direito Romano. Em acordo com essa escola, a responsabilidade civil possuía o intuito principal de reprimenda, isto é, de punir o agente transgressor por condutas lesivas a interesses privados de terceiro e somente num segundo momento a ideia de ressarcir o indivíduo lesado. Já no período do imperador Justiano (527 a 565 d.C) observou-se uma profunda alteração na estrutura consuetudinária e legislativa do lex romana, em que caráter punitivo fora parcialmente absorvido pelo juízo de reparação, pois o direito privado sofreu um processo de “despenalização”.[61]

Na era moderna, precisamente no século XVIII, o fenômeno acontece no Reino Unido com a introdução nesse ordenamento da indenização de múltiplos financeiros por meio do dano, especificamente quanto a doutrina dano moral, que obrigatoriamente estaria pautada em duas premissas básicas: a) o valor deverá sempre compensar a vítima; e b) o valor obrigatoriamente deverá sempre punir, de forma irremediável, o agente transgressor.[62]

Contemporaneamente, o instituto da punitive damages é consagrado em diversos países, em especial nos anglo-saxônicos, como os Estados Unidos. O ordenamento pátrio ainda enfrenta certa resistência para aceitar essa extensão da responsabilidade civil, visto que, tradicionalmente, a função desse instituto no Brasil é a reparação de dano, por meio do ressarcimento do prejuízo causado ou pela compensação do dano de forma pecuniária. Desta forma, o valor da indenização não deve ultrapassar a extensão do prejuízo ou do dano sofrido, conforme preceitua no art. 944 do Código Civil.

Destarte, com a emancipação da Constituição Federal e o processo de constitucionalização do direito privado brasileiro culminaram em uma expansão significativa dos paradigmas da responsabilidade civil. Como será exposto em momento oportuno, a indenização deve ir para além do caráter reparador e compensatório para que possa cumprir o seu fim social de ceifar a conduta do agente lesivo pelo agente transgressor.

Essa concepção social é fruto da modernização da teoria do dano aliada as garantias constitucionais emancipadas no art. 5º, incisos V e X da Constituição Federal, que tutelam os direitos relacionados à honra, à imagem e a à privacidade, expressões diretamente relacionadas aos direitos de personalidade e ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que em caso de eventual violação, ensejam indenização por dano material e moral.[63]

Nesse sentido, a aplicação do punitive damages surge exatamente para responder a essa nova finalidade da indenização, numa tentativa de romper com o tradicionalismo da norma tupiniquim, haja vista que uma indenização voltada apenas ao cunho reparatório não mais atende ao objetivo distributivo da responsabilização, dissuasão de comportamentos incorretos e danosos, bem como a função de prevenção.

Conceito de Punitive Damages ou Danos Punitivos

O fenômeno do punitive damages tem o propósito de punir o ofensor pelo ato ilícito cometido contra terceiro, mas com uma proposta que vai além da punição pelo ressarcimento ou compensação, com fito a desestimular a prática de atos similares, ressaltando assim a função social da responsabilidade civil.[64]

Resta claro que esse instituto se encontra alicerçado sob duas premissas principais, uma de caráter punitivo, que visa castigar o agente lesante pela prática de ato ilícito, bem como, paralelamente, o caráter preventivo-pedagógico, que pretende sucumbir a prática de novos atos ofensivos de mesma natureza.

Destarte, a indenização punitiva rompe as barreiras antigas do direito civil para elevar o núcleo indenizatório a um outro patamar, trazendo ao direito civil uma ideologia essencialmente punitivista, aos moldes do direito penal.

Salomão Resedá, com o brilhantismo que lhe é peculiar, apresenta como conceito de punitive damages:

Um acréscimo econômico na condenação imposta ao sujeito ativo do ato ilícito, em razão da sua gravidade e reiteração que vai além do que se estipula como necessário para satisfazer o ofendido, no intuito de desestimulá-lo à prática de novos atos, além de mitigar a prática de comportamentos semelhantes por parte de potenciais ofensores, assegurando a paz social e consequente função social da responsabilidade civil.[65]

A natureza dessa indenização consiste em uma gleba de uma quantia em valores somada a indenização compensatória que só poderá ser paga caso o ato lesivo esteja presente nas características subjetivas que se assemelham ao dolo, como malícia, fraude, negligência arbitrariedade, etc.

Nelson Rosenvald delimita as finalidades dos punitive damages:

Os punitive damages são deferidos com duas finalidades: retributiva (punishment) e desestímulo (deterrence). A retribuição reclama que a conduta revele extrema reprovação social – uma malícia, evidenciada pelo dolo ou grave negligência do agente -, cumulada ao desestímulo, no sentido de direcionar a pena e afligir o transgressor, induzindo-o a não reiterar comportamentos antissociais e ultrajantes análogos.[66]

Ressalta-se que a indenização punitiva tem um caráter educativo e elucidativo, pois reprime o ofensor perante toda a sociedade, já que esta é afetada pela conduta lesiva de forma indireta, e demonstra a importância de uma indenização dessa natureza para inibir qualquer tipo de pensamento de vingança em relação a vítima.

Da Função Punitiva versus Jurisprudência

Destarte, o STJ vem admitindo, com a devida vênia, a aplicação da pena civil em determinados casos, o que vem servindo como um importante instrumento para modificar o entendimento dos Tribunais pelo Brasil, apesar de acharem escassos os precedentes que que enfrentam a temática dos punitive damages.[67]

A título exemplificativo, observa-se o REsp 839.923/MG, no qual atuou como relator o ministro Raul Araújo, da quarta turma do Supremo Tribunal de justiça que assim delimita a função punitiva:

Há casos em que a conduta do agente é dirigida ao fim ilícito de causar dano à vítima, atuando com dolo, o que torna seu comportamento particularmente reprovável. Nessa perspectiva, o arbitramento do dano moral deve alicerçar-se também no caráter punitivo e pedagógico da compensação. Com efeito, a reparação punitiva do dano moral deve ser adotada "quando o comportamento do ofensor se revelar particularmente reprovável - dolo ou culpa grave - e, ainda, nos casos em que, independentemente de culpa, o agente obtiver lucro com o ato ilícito ou incorrer em reiteração da conduta ilícita" (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed., rev. e ampl., São Paulo: Atlas, 2010, p. 99). [...] Portanto, não obstante autorizado, em determinadas circunstâncias, o reconhecimento do caráter punitivo do dano moral, não se pode perder de vista, em seu arbitramento, a vedação do enriquecimento sem causa da vítima. (STJ - REsp: 839923 MG 2006/0038486-2, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 15/05/2012, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/05/2012)

No mesmo sentido, se faz necessário transcrever os apontamentos do e. Ministro Carlos Fernando Mathias, também desta turma, no REsp 210.101/PR, faz brilhantes apontamentos acerca da aplicabilidade dos punitive damages:

Deveras, é fato que se vive hoje um novo tempo no direito, quer com o reconhecimento (e mais do que isto, como garantia constitucional) da indenização por dano moral, quer - e aí com revelação de certa perplexidade - no concernente à sua fixação ou avaliação pecuniária, à míngua de indicadores concretos. Há, como bastante sabido, na ressarcibilidade do dano em destaque, de um lado, uma expiação do culpado e, de outro, uma satisfação à vítima. Como fixar a reparação?; quais os indicadores? Por certo, devido à influência do direito norte-americano muitas vezes invoca-se pedido na linha ou princípio dos 'punitive damages'. 'Punitive damages' (ao pé da letra, repita-se o óbvio, indenizações punitivas) diz-se da indenização por dano, em que é fixado valor com objetivo a um só tempo de desestimular o autor à prática de outros idênticos danos e a servir de exemplo para que outros também assim se conduzam. Ainda que não muito farta a doutrina pátria no particular, têm-se designado as 'punitive damages' como a 'teoria do valor do desestímulo' posto que, repita-se, com outras palavras, a informar a indenização, está a intenção punitiva ao causador do dano e de modo que ninguém queira se expor a receber idêntica sanção. No caso do dano moral, evidentemente, não é tão fácil apurá-lo. Ressalte-se, outrossim, que a aplicação irrestrita das 'punitive damages' encontra óbice regulador no ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada em vigor do Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a prescrevê-la expressamente, mais especificamente, no art. 884 do Código Civil de 2002. Assim, o critério que vem sendo utilizado por esta Corte na fixação do valor da indenização por danos morais, considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido e, também, de modo que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito. (REsp 210.101/PR, Rel. Min. Carlos Fernando Mathias (Juiz Federal convocado do TRF 1ª Região),4ª Turma, unânime, DJe de 09.12.2008 – grifo nosso).

Desta feita, a função punitiva aplicada paralelamente a compensatória e, em determinadas hipóteses, aplicação efetiva daquela tem como resultado o fim pretendido pela função punitiva da responsabilização civil. Em que pese a persistência da doutrina acerca da temática, a função punitiva tem o condão de impedir que o quantum indenizatório seja meramente simbólico, isto é, que o agente lesante se insurja na possibilidade real de reflexão quanto a complexidade e a extensão do dano que causar, bem como, atuando a responsabilidade sob o viés das três esferas possíveis:  compensar, punir e dissuadir.[68]

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Sobre os autores
Vinicius Pinheiro Marques

Doutor em Direito Privado (magna cum laude) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MINAS). Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor de Direito da Universidade Federal do Tocantins (UFT), do Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA) e da Faculdade Católica do Tocantins (FACTO).

Mateus Macedo Cortez Guimarães

Acadêmico de Direito na Faculdade Católica do Tocantins.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Vinicius Pinheiro ; GUIMARÃES, Mateus Macedo Cortez. A função punitiva da responsabilidade civil e seu aspecto democratizador na jurisprudência brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6043, 17 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68168. Acesso em: 22 dez. 2024.

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