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A reforma do Judiciário e o desafio de uma justiça célere

08/06/2005 às 00:00
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             Vencendo a etapa de acaloradas discussões, finalmente veio a lume a esperada Reforma do Judiciário que, embutida na Emenda Constitucional nº 45/2004, traz algumas novidades na relação travada entre o Poder e seus jurisdicionados.

            Ao lado do disciplinamento pedagógico da competência atribuída à Justiça do Trabalho e do status de emenda constitucional outorgado aos Tratados que se submeterem a rito próprio – mudanças que já apresentam alguma relevância prática - realçam no texto alterações que, em concreto, tendem a produzir efeito no mais famoso e grave mal que atinge o Judiciário: a morosidade.

            Abandonando-se a idéia de que o Direito se presta para fazer justiça (1), eis que na verdade, se serve da justiça – como mero critério regulador - para pacificar os conflitos e, assim, manter a coesão social, percebe-se que somente quando se debela o litígio com rapidez, sacia-se a vontade humana de se autotutelar. Não é errado afirmar, portanto, que uma decisão rápida e menos justa apresenta menor potencial de prejuízo ao tênue equilíbrio desse sistema, do que uma decisão reputada justa, mas que exige o esforço de vários anos para ser tomada.

            Afinal, "um julgamento tardio irá perdendo progressivamente seu sentido reparador, na medida que se postergue o momento do reconhecimento judicial dos direitos; e transcorrido o tempo razoável para resolver a causa, qualquer solução será, de modo inexorável, injusta, por maior que seja o mérito científico da decisão." (2)

            Com o advento da famigerada súmula vinculante, põe-se termo à oposição tenaz de vários magistrados que, mesmo diante da consagração de determinada tese jurídica pela Corte Suprema do País, mantinham-se fiéis a suas convicções pessoais e, em vez de defendê-las no profícuo campo acadêmico e doutrinário, preferiam vê-las ser debeladas no julgamento de recursos que poderiam ser evitados.

            Essa luta que parece alimentar um certo romantismo heróico na magistratura era fator determinante para a multiplicação de processos e irradiava duas conseqüências nefastas: alimentava a esperança vazia de quem era premiado com decisão contrária ao entendimento do STF ou, pior, quando prevalecia esse decisum, por ausência de recurso apropriado, produzia-se a iníqua situação de permitir que dois brasileiros recebessem do Poder Judiciário, para conflitos intrinsecamente iguais, soluções absolutamente distintas.

            Diante de um mecanismo rápido que impede a proliferação de decisões contrárias ao entendimento do Supremo, tende-se a ter mais certeza sobre a solução que será dada ao conflito, o que significa maior segurança jurídica, além de impedir que inúmeras pessoas se acorram ao Judiciário, na expectativa de encontrar algum juiz cujo pensamento esteja em desalinho com aquele da Corte Suprema.

            As vozes misoneístas que apontam a súmula como um inaceitável grilhão a tolher a independência dos magistrados devem, aos poucos, ceder à realidade de que esse instrumento não será utilizado para todos os temas e com o fim de disciplinar a totalidade das relações humanas, transformando o juiz em autômato e retirando dele a nobre função de adaptar o texto abstrato da lei ao caso concreto.

            Na verdade, a súmula servirá para por fim a resistências injustificadas em grandes temas jurídicos de repercussão nacional, como se tem visto ultimamente, v.g., em matérias relacionadas a aumentos salariais de servidores públicos.

            Portanto, seja para se resgatar a unicidade do direito aplicado no Brasil, seja ainda para diminuir a quantidade de processos que emperram a engrenagem da Justiça, notadamente nos Tribunais Superiores, a súmula vinculante parece assumir um relevante papel nesse sentido.

            Também com o intuito de reduzir a massa de trabalho, especificamente no Supremo Tribunal Federal, a EC 45 resolveu instituir o critério da transcendência para admissibilidade do Recurso Extraordinário, prevendo que o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso.

            Idéia semelhante motivou a edição da Medida Provisória n. 2.226/2001, dispondo que o TST, no recurso de revista, apreciará previamente se a causa oferece transcendência com relação a seus reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica.

            A novidade apresenta, porém, dois problemas.

            O primeiro é o excesso de subjetivismo que cercará a admissão dos recursos. Quando se institui critérios objetivos para a admissibilidade das impugnações, tais como o prequestionamento e a tempestividade, o próprio recorrente pode antever as chances de que o mérito da discussão será apreciado em recursos de índole extraordinária. Ao se impor, todavia, como requisito, "repercussão geral das questões constitucionais", entrega-se ao magistrado uma liberdade sem limites, calcada apenas no seu juízo pessoal sobre o tema.

            O segundo é que a inovação não impede que os recursos cheguem ao STF, apenas impondo um novo parâmetro para sua admissão, sendo que, ainda, para serem rejeitados, será necessária a decisão de dois terços dos membros.

            Logo, não se pode esperar que essa medida tenha efeito prático na redução do número de processos apreciados pela Corte Suprema ou que haja uma diminuição no tempo consumido para seu julgamento.

            Além de tratar da diminuição de processos, a Reforma pretendeu exortar os juízes a trabalhar com mais afinco e decidir com maior celeridade. Basta notar que ao dispor sobre a promoção dos magistrados, de entrância para entrância, no art. 93, II, a EC 45 elegeu, como critério de merecimento, além da presteza no exercício da jurisdição e a freqüência em cursos de aperfeiçoamento - que já estavam consagrados no texto anterior -, critérios objetivos de produtividade.

            Não fosse suficiente, deixou expresso na alínea e) do mesmo artigo, que não será promovido o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão.

            Essas medidas que, em princípio, parecem transformar o Judiciário em uma indústria de decisões, com metas e padrões pré-estabelecidos, infelizmente não deverão produzir os resultados esperados.

            É que a demora na prestação jurisdicional se explica mais pela enorme quantidade de processos em contraposição ao pequeno número de juízes, além da infindável miríade de recursos, do que em suposta indolência dos magistrados que, de regra, possuem grande carga de trabalho.

            Nesse cenário, a inovação descrita no inciso XII, do art. 93, prevendo que a atividade judiciária é ininterrupta e que, assim, são proibidas férias coletivas, promete conseguir muito mais êxito em aumentar a produtividade dos juízes e desembargadores.

            Mas a principal novidade instituída pela EC 45, que se constitui em poderosa arma colocada à disposição do jurisdicionado para exigir uma justiça mais célere, não está na famosa súmula vinculante nem na supressão das férias coletivas.

            Na verdade, a mudança mais importante é talvez a menos discutida. A Reforma do Judiciário fez inserir como último inciso do artigo 5º, da Carta Magna, o direito fundamental do indivíduo a uma justiça rápida. Assim é o texto do inciso LXXVIII:

            "LXXVIII- a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".

            Partindo-se de sua interpretação literal já se verifica que o direito ao processo em tempo razoável se refere tanto à esfera administrativa quanto judicial.

            A estipulação de prazos pela Lei n. 9.784/99, nesse contexto, antes do advento da emenda constitucional, já constituíra um importante mecanismo para a aceleração dos procedimentos administrativos, inclusive porque permitiu que seu descumprimento ensejasse a intervenção do Judiciário por intermédio de provimentos mandamentais.

            A recente instituição de lei (3) que instituiu aos idosos prioridade na tramitação dos processos lhes prometeu tutela jurisdicional mais célere.

            Na verdade, o direito à razoável duração do processo já se encontrava embutido na cláusula de garantia de acesso à justiça, a qual somente poderia ser efetiva por intermédio de uma tutela jurisdicional tempestiva.

            O Prof. J.J. Gomes Canotilho, lecionando sobre efetividade da tutela jurisdicional, ensina que:

            "A protecção jurídica através dos tribunais implica a garantia de uma protecção eficaz e temporalmente adequada. (...) O controlo judicial deve, pelo menos em sede de primeira instância, fixar as chamadas ‘matérias ou questões de facto’, não se devendo configurar como um ‘tribunal de revista’ limitado à apreciação das ‘questões’ e ‘vícios de direito’. Além disso, ao demandante de uma protecção jurídica deve ser reconhecida a possibilidade de, em tempo útil (‘adequação temporal’, ‘justiça temporalmente adequada’), obter uma sentença executória com força de caso julgado – ‘a justiça tardia equivale a uma denegação de justiça’ (Cfr. MARIA LUÍSA CASTAN, ‘La polemica cuestion de la determinacion del plazo razonable em la administracion de justicia’, in REDC, 10 (1984).)" (4)

            Em Portugal, aliás, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei 15/2002 de 15/2, alterada pela Lei 4-A/2003, de 19/2) contemplando o critério de prazo razoável do processo, define tutela jurisdicional efetiva como sendo o:

            "direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares antecipatórias ou conservatórias destinadas a assegurar o efeito útil da decisão" (5)

            Entre nós, o Prof. Marinoni também já lecionava que "o direito à defesa, assim como o direito à tempestividade da tutela jurisdicional, são direitos constitucionalmente tutelados. Todos sabem, de fato, que o direito de acesso à justiça, garantido pelo artigo 5º, XXXV, da Constituição da República, não quer dizer apenas que todos têm direito de ir a juízo, mas também quer significar que todos têm direito à adequada tutela jurisdicional ou à tutela jurisdicional efetiva, adequeada e tempestiva." (6)

            Teori Albino Zavascky, de igual modo, já entendia que "o direito fundamental à efetividade do processo – que se denomina também, genericamente, direito de acesso à justiça ou direito à ordem justa – compreende, em suma, não apenas o direito de provocar a atuação do Estado, mas também e principalmente o de obter, em prazo adequado, uma decisão justa e com potencial e atuar eficazmente no plano dos fatos". (7)

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            Se o direito à razoável duração do processo emanava do princípio de acesso à justiça, então, qual importante mudança teria advindo do inciso LXXVIII, no artigo 5º, da Lei Fundamental da República ?

            Primeiro, é de se perceber que, agora, existe enunciação taxativa de que o processo judicial ou administrativo não podem consumir tempo desarrazoado para sua conclusão e, segundo, porque o direito não veio desacompanhado de garantias, dispondo o referido inciso que é assegurado a todos "os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".

            Como os direitos fundamentais, consoante dispõe o § 1º, do art. 5º, CF, têm aplicação imediata, pode-se inferir que, a despeito de serem criados instrumentos processuais específicos para assegurar a celeridade, por interpretação direta do texto da Constituição, há de se proceder uma releitura das garantias constitucionais, principalmente do mandado de segurança e habeas corpus, além de instrumentos regimentais, como a Reclamação, para reconhecer neles legítimos mecanismos a serem utilizados para se emprestar eficácia ao direito constitucionalmente tutelado. (8)

            Assim, pode-se antever que diante da paralisação de um processo, v.g., no Tribunal Superior do Trabalho, por vários anos aguardando análise, a parte poderia impetrar mandado de segurança contra ato omissivo do responsável por sua apreciação, in casu, o Relator, para vê-lo compelido a levar o feito a julgamento.

            A partir desse exemplo, pode-se também inferir o manejo de Reclamação perante o Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que a demora desarrazoada no julgamento de processos que poderão, em tese, sujeitar-se a sua apreciação, inclusive nos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, acaba por significar obstáculo ao exercício pleno de sua competência constitucional, o que preenche a hipótese de incidência descrita no art. 156, de seu Regimento Interno.

            Também em matéria penal, pode-se imaginar que o réu, quando lhe for conveniente, utilize o habeas corpus para impor maior celeridade ao andamento do processo, quando tiver interesse em que seja logo reconhecida sua inocência ou quaisquer das causas excludentes de ilicitude ou extintiva da punibilidade.

            Note-se que essa nova interpretação proposta sobre a utilidade desses instrumentos decorre da promessa constitucional de que a parte disporá de meios que garantam a celeridade e, como se deve dar plena e imediata aplicabilidade à norma e não se vê, no ordenamento jurídico pátrio atual, mecanismos próprios capazes de fazê-lo, há de se lançar novo olhar sobre aqueles existentes, para que em uma metamorfose exegética passem a se prestar também a esse fim.

            Caberá à doutrina e jurisprudência ditar o que se deve entender como ‘prazo razoável’ até que reforma legislativa faça a devida adequação aos denominados ‘prazos impróprios’, tanto no Código de Processo Civil quanto nos Regimentos Internos dos Tribunais, para que esses lapsos temporais deixem de significar letra morta e constituam, na realidade, regra a ser observada, obrigatoriamente, pelos órgãos judicantes.

            Pelo que se constata, a Reforma do Judiciário, a par de produzir também algumas mudanças pouco expressivas, conseguiu instituir significativos avanços, sobretudo no que diz com a súmula vinculante e a erradicação das férias coletivas mas, principalmente, ao assegurar como direito fundamental do indivíduo o acesso a uma justiça em prazo razoável, com meios que assegurem essa celeridade.


BIBLIOGRAFIA

            BIELSA, Rafael A. GRAÑA, Eduardo R. El tiempo y el proceso, Revista del Colegio de Abogados de La Olata. La plata, 1994 apud CRUZ e TUTTI, José Rogério. Tempo e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

            CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2004.

            MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença, 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.

            MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2000.


NOTAS

            1

O Direito é mecanismo de pacificação dos conflitos para manter a coesão social. Sua vocação é a de regular, em caráter residual, as condutas humanas, impedindo que o descontrole sobre elas imponha ao indivíduo a necessidade de se autotutelar. O fim do processo não deve ser confundido, portanto, com a realização de justiça que, na verdade, é um juízo pessoal de cada um. Note-se que para o processo importa muito mais que as partes transijam e entabulem um acordo, ainda que injusto para uma delas, do que o prolongamento do litígio. Tanto no processo civil quanto penal busca-se um juízo de certeza possível, que seja extraído do conteúdo dos autos para a aplicação da lei. A justiça e a verdade são, assim, inatingíveis porque despidas de um conceito universal. Para a mãe do criminoso, é injusto vê-lo detido. Para a da vítima, a injustiça seria deixá-lo solto. Por isso, entre nós, realizar justiça é apenas cumprir a lei, ainda que em sua plena conformação ideológica.

            2

BIELSA, Rafael A. GRAÑA, Eduardo R. El tiempo y el proceso, in Revista del Colegio de Abogados de La Olata. La plata, 1994 apud CRUZ e TUTTI, José Rogério. Tempo e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 65.

            3

Lei n. 10.741/03 - Art. 71. É assegurada prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer instância.

            4

J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed. ALMEDINA, Coimbra. 2004, p. 499.

            5

Citado por Canotilho, in Direito Constitucional..., p. 495.

            6

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença, 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 18.

            7

ZAVASCKY, Teori Albino. Antecipação de Tutela. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 64.

            8

"Diversos doutrinadores diferenciam direito de garantias fundamentais. A distinção entre direitos e garantias fundamentais, no direito brasileiro, remonta a Rui Barbosa, ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a declaração do direito". Alexandre Moraes, in Direito Constitucional, 8ª ed., Atlas, São Paulo: 2000, p. 59.
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Sobre o autor
Wesley Ricardo Bento da Silva

advogado em Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Wesley Ricardo Bento. A reforma do Judiciário e o desafio de uma justiça célere. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 703, 8 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6817. Acesso em: 11 mai. 2024.

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