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Os partidos políticos e a crise da democracia representativa

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4.A génese programática do Liberalismo Clássico

            O elemento «liberal» no conceito de liberal democracy terá emergido antes dos Estados se poderem qualificar como democracias. Na verdade, muitos Estados europeus desenvolveram formas de governo constitucional no Século XIX, num tempo em que a capacidade eleitoral era restrita a terratenentes ou proprietários fundiários e a homens. (16)

            A doutrina do liberalismo está profundamente ligada ao conceito de democracia e é certamente muito difícil distinguir o que é liberal do que é democrático, nas nossas democracias. Por outro lado, ela assumiu formas históricas diferentes, na Revolução Gloriosa, em Inglaterra de 1688-1689, na maior parte dos países europeus no Século XIX, nos Estados Unidos, na sequência da revolução que conduziu à Declaração de Independência.

            O Estado Liberal foi baseado no princípio do «governo limitado», a ideia que os indivíduos devem gozar de uma efectiva forma de protecção contra os abusos do Estado. Como escreve António Paim (17) «em seus primórdios, a doutrina liberal não guardava compromissos com o ideal democrático. Seu propósito era criar freio e limites ao poder absoluto do monarca. A experiência inglesa comprovou que a reacção monárquica assumia formas de extrema violência. Somente a elite proprietária tinha condições de levar essa luta a bom termo (…) o sistema concebido por Locke reflectia o consenso da parcela significativa da elite. A prática do século XVIII configurou-o como modelo (18)».

            Em sentido confluente Roger Scruton (19) acentua que a história do liberalismo é contemporânea com a história do governo limitado, i.e., com a tentativa bem sucedida dos que se encontram subordinados a um governo de, com vista a restringir os poderes deste, obter em seu benefício constituições (constitutions), cartas (charters), estatutos (statues), instituições e formas de representação que garantam aos indivíduos direitos contra as invasões do poder soberano. Mas foi preciso esperar pelo boom do racionalismo trazido pela Revolução Francesa para que as crenças fundamentais defendidas pelo Estado monista da res publica christiana fossem contraditas pelas conquistas da ciência e da investigação e estas começassem a dar respostas aos problemas das pessoas, dando corpo à laicização do Estado que o movimento da Contra-Reforma será o húmus.

            Os princípios estruturantes do liberalismo consubstanciados num documento fundamental com a Magna Carta de 1215 são considerados como uma criação do Século XVIII ou do Século XIX, em razão das obras de filósofos políticos como Spinoza, Locke, Montesquieu, Kant, Bentham, J.S. Mill, Benjamin Constant, Jefferson ou Madison, conjuntamente com muitas figuras do Iluminismo. A ideia da liberdade e da preservação da liberdade, entendida esta na sua expressão económica, política, individualística é, portanto, uma das bandeiras justamente atribuídas ao liberalismo, a que outras doutrinas – de fusão – como a social-democracia, o socialismo democrático, o social-liberalismo, o socialismo "de rosto humano" - foram buscar pontos significativos de demarcação perante as formulações totalitárias do Século XX como o fascismo, o nacional-socialismo e o comunismo.

            Entendemos aqui liberdade no conceito epistemológico que vem de Max Weber (20), como a faculdade presente em todo o homem de agir segundo a sua própria determinação, sem ter de suportar outros limites, para além daqueles que são necessários para a liberdade dos outros. (21)

            Estamos portanto no campo da liberdade interpessoal ou social a que se refere às relações de interacção entre pessoas e grupos e dentro deste na mais importantes das liberdades sociais: a liberdade política entendida por Oppenheim (22) como a liberdade dos cidadãos ou das suas associações em relação ao Governo. Preenchida, numa primeira fase, pela liberdade de religião, de expressão, de imprensa, de associação e de participação, a ideia da liberdade política ganha novos contornos quando explodem os anseios de liberdade económica, de autodeterminação face ao Estado colonial.

            Como traço primeiro do pensamento liberal emerge a defesa de uma sociedade civil vigorosa e próspera, baseada no respeito dos direitos individuais e da propriedade, na crença da oportunidade do sucesso (23) e do progresso social, em que se coligam o governo democrático liberal e o sistema económico capitalista. Matriz desta concepção de sociedade, que é ao mesmo tempo uma forma nova de organização das relações económico-sociais e uma ideologia é, naturalmente, a crença num conjunto de direitos inalienáveis, que ficariam "a coberto" das arremetidas do poder absoluto do soberano.

            Locke trata-os de uma forma paradigmática no seu Two Essays on Civil Government (24) e que poderemos sumariar da seguinte forma: quando, por convenção unânime – o contrato social – os homens renunciam à sua liberdade primitiva absoluta – que herdaram do Estado de Natureza (25) – para fundar a autoridade pública, não abdicaram em benefício do poder senão a parcela da sua independência original incompatível com a existência de uma ordem social. O que conservam da sua liberdade primitiva constituem os direitos individuais. Esses direitos, resíduos da liberdade absoluta primitiva, nada devem ao Estado, nem na sua origem, nem na sua consistência. Porque anteriores podem ser-lhe opostos, e ao Estado cabe respeitá-los e garanti-los (26). Mas mais, os homens precisam de sair do estado de natureza porque eles esperam encontrar melhores condições numa ordem organizada, com leis positivas, juízes para as interpretar e um poder executivo para as aplicar. A acumulação de riqueza e a desigualdade na sua repartição precisam de ser considerados fora do estado de natureza, mas esta mudança não é negativa: o sucesso material dos indivíduos promete o bem-estar público.

            Destes direitos, a Declaração de 1789 conferiria a definição e o inventory que os perpetuaria. Já no caso inglês, tanto o Bill of Rights como a Act of Settlement de 1786 são consagrações de liberdades, mas de uma natureza diferente: são liberdades históricas e tradicionais da nação - não de um ser abstracto - ou seja promovem um individualismo de acordo com as exigências da vida social, moderado (27) e pragmático. É um pouco no casamento destas duas etho-visões do indivíduo que a experiência americana irá beber: a fé no homem como ponto de partida, mas a convicção profundamente ética e moral que não é ao seu título abstracto de homem racional que o homem deve a liberdade que reivindica, mas sim à convicção de que pertence a cada homem forjar o seu próprio destino – o the pursuit of happyness, na Constituição Americana.

            O traço segundo referenciador do liberalismo, enquanto doutrina política, é a ideia que a «eleição popular é a única fonte legítima de autoridade política». Eleições que devem respeitar o princípio da igualdade política e ser baseadas no sufrágio universal e na ideia «um homem, um voto». As eleições para serem democráticas devem ser regulares, abertas e acima de tudo competitivas. A pedra cúbica do processo democrático é, portanto, a capacidade indeclinável do povo fiscalizar e "julgar" os políticos que faz eleger. Daí que o pluralismo político, a concorrência aberta entre partidos, movimentos e organizações políticas seja a verdadeira essência da democracia representativa.

            Joseph Schumpeter sublinharia esta característica essencial da visão liberal em Capitalism, Socialism & Democracy (1942) (28), «aquele arranjo institucional para alcançar decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir através de uma competição aberta, pelo voto popular (…) os votos exercem o mesmo poder no mundo político que o consumidor desempenha no mundo económico».

            Esta accountability é reforçada pela capacidade dos cidadãos exercerem uma influência directa no governo através de grupos de pressão e de interesses. A questão da plasmagem da prossecução de interesses à representação política é tão antiga quanto a existência da democracia e ganhou novo alento com o fim do conflito Este-Oeste, roubando legitimidade aos partidos que se reivindicam duma estrita visão ideológica e programática no combate político. Na verdade, há medida que as velhas doutrinas: socialismo, liberalismo, comunismo ou fascismo, deixaram de responder às crenças e expectativas dos eleitores, a prossecução e representação dos interesses caldeados á sociedade substitui e substitui-se à competição ideológica, quebrando a velha matriz ordenadora que os arruma da esquerda à direita.

            Estreitamente relacionado com este ponto assinalámos anteriormente que a democracia liberal é baseada na ideia que os políticos agem como representantes do Povo. Mas o que é que isso significa? Que uma pessoa representa a outra? Que representa um certo grupo de pessoas – os eleitores – ou um certo grupo de interesses?


5. Governabilidade e Liberalismo

            A representação configura uma relação entre duas entidades jurídico-políticas separadas e distintas: os governantes e os governados. Pressupõe que através dessa ligação os interesses, os pontos de vista, dos representados são assegurados e prosseguidos. A natureza precisa dessa ligação e a sua mobilidade têm sido pontos intermináveis de desacordo na teoria política .

            Para começar, na origem não há um único e comummente aceite modelo de representação. Os representantes, «os eleitos», têm sido muitas vezes vistos como os que «sabem mais» e dessa forma podem servir de uma forma mais adequada e diligente os interesses dos representados. Mesmo nos sistemas de monarquia absoluta, considerava-se que os monarcas governavam com o conselho dos estamentos, designadamente os proprietários fundiários e o clero.

            Nessa perspectiva, os políticos não devem se entender vinculados como «delegados» em razão dos interesses dos eleitores, mas ter a capacidade de pensar por si próprios e utilizar de, per si, a sua capacidade de julgamento. No seu famoso Discurso aos Eleitores de Bristol em 1774, Edmund Burke (1729-1797) (29) refere:

            «

A felicidade e a glória de um representante devem consistir em viver na união mais estreita, na correspondência mais íntima e numa comunicação sem reservas com os seus eleitores. Os seus desejos devem ter, para ele, grande peso, a sua opinião, o máximo respeito, os seus assuntos uma atenção incessante(...) O vosso representante deve a vós não somente a sua indústria, senão o seu juízo, e atraiçoa-vos em vez de vos servir, se se sacrifica à vossa opinião»

            e acrescenta de forma significativa:

            «O Parlamento não é um congresso de embaixadores que defendem interesses distintos e hostis, interesses que cada um dos membros deve sustentar, como agente ou advogado, contra outros agentes ou advogado, ele é senão uma assembleia deliberante de uma Nação, com um interesse: o da totalidade; de onde devem prevalecer não os interesses e preconceitos locais mas o bem geral que resulta da razão geral do todo. Elegeste um Deputado mas quando o escolheste, não é ele o deputado por Bristol, mas um membro do Parlamento.»

            Na doutrina de Burke, que influenciou todo o pensamento político-constitucional inglês, o deputado não guarda obediência a instruções imperativas, mandatos explícitos dos seus eleitores (30), porque isso seria «desvirtuar a sua missão e a ordem e temor da nossa Constituição». A essência da representação é para ele o serviço dos seus constituintes através de um julgamento amadurecido de uma consciência esclarecida.

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            Este modelo de representação - o trustship - é o que confina o mandato através do qual uma pessoa é investida com a responsabilidade formal de representar e agir por conta da propriedade e negócios de outro. A representação assume aqui o papel de um dever moral.

            John Stuart Mill (1806-1873) confina o seu pensamento com a mesma natureza do mandato representativo em Considerações sobre o Governo Representativo (31):

            «Desde o princípio temos afirmado, e nunca perdemos de vista, a importância igual de dois requisitos do governo: 1)a responsabilidade perante os que em cujo proveito político o poder deve ser empregue; 2)o exercício dessa função por pessoas de inteligência superior, especialmente treinadas para essa tarefa por meio de uma longa meditação e uma disciplina prática(...)se o propósito for de obter representantes superiores em inteligência à média dos seus eleitores, deve-se esperar que o representante tenha por vezes opinião diferente da dos seus eleitores, e quando a tiver, a sua seja frequentemente a mais certa das duas. Decorre daí que não estando agindo sabiamente os eleitores se impuserem como condição para a manutenção do cargo, conformidade absoluta com suas opiniões por parte do representante».

            A perspectiva de Mill tem como fundamento que embora todos os indivíduos tenham o direito de ser representados, nem todas as ideias políticas têm o mesmo valor. Mill irá propor um sistema de voto plural em que quatro ou cinco votos serão destinados a eleitores com estudos académicos, dois ou três a operários especializados e supervisores e um a operários sem especialização. No mesmo sentido, ele argumentava que os eleitores "racionais" suportariam preferencialmente políticos que actuassem sabiamente em seu benefício, mais do que políticos que reflectissem os pontos de vista dos eleitores.

            Esta ideia hoje naturalmente controversa – mas ao tempo nem tanto – de limitação do poder eleitoral activo a certas classes de eleitores não é exclusivo do pensamento liberal tradicional, de matriz inglesa (32). A Constituição monárquica francesa de 1791 reservaria o direito de voto aos cidadãos activos, isto é àqueles que pagavam impostos, na perspectiva de uma clara estratificação social das élites dirigentes.

            Thomas Paine, o conhecido autor inglês e posteriormente exilado na América contraporia no seu famoso panfleto Common Sense (1776) que se os políticos, nessa lógica, fossem autorizados a exercer o seu julgamento, usariam essa margem de acção para prosseguir os seus próprios interesses pessoais e não quem representavam. Nesta perspectiva, a representação tornava-se um puro substituto da democracia.

            É contra a visão mitigada de soberania popular que se vão revoltar os enciclopedistas e os philosophes em geral com Voltaire, Diderot, Rousseau e o próprio Paine.

            Rousseau escreve no Contrato Social (33) que o contrato não é um contrato entre indivíduos (como em Hobbes) nem um contrato entre indivíduos e o soberano (como em Suarez). É um contrato em que cada indivíduo se une a todos. «Cada um de nós põe em comum a sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direcção de uma vontade geral, e nós recebemos em corpo cada membro como parte indivisível do todo. Cada associado se une a todos e a ninguém se une em particular; só obedece deste modo a ele próprio e fica tão livre como anteriormente». O soberano é para Rousseau essa vontade geral, que é a vontade da comunidade e não dos membros que constituem essa comunidade. É obedecendo às leis que o homem realiza a sua liberdade:

            «Um povo livre obedece, mas não serve; tem chefes, e não senhores; obedece às leis; e é por força das leis que não obedece aos homens».

            O governo apenas desempenha um papel subordinado. O soberano faz as leis, que têm um valor para-religioso, já que são o reflexo de uma ordem transcendental. O governo é um simples executante da lei, o depositário do poder. Foi contra a tentação totalitária implícita na doutrina da soberania popular e a limitada abertura concedida pela Reforma Eleitoral de 1832 que o liberalismo anglo-saxónico se rebelou no século XIX. Essa rebelião veio concretizar no movimento cartista a exigência de uma reforma substancial do sistema de sufrágio eleitoral e com ele o voto secreto, a anualidade das eleições, a supressão da exigência de renda como requisito da capacidade de ser eleito – o reconhecimento do direito do "homem" abstracto de aceder ao sufrágio patente na sua Carta de Liberdades do Povo.

            Foi em resposta ao movimento cartista que o Parlamento britânico empreendeu o caminho da reforma eleitoral patente na introdução do voto secreto (1872), na divisão do país em distritos eleitorais (constituencies) de idêntico peso, elegendo cada um deles um deputado. O movimento cartista seria responsável pela profunda democratização da ideia liberal, que fala António Paim (34) mas seria o movimento trade-unionista que está na origem do Labour, que lhe dará o impulso decisivo.

            É o povo dos cidadãos que passa a constituir a base do poder do Estado Liberal. Naturalmente, à medida que as instituições democráticas e o referido alargamento do sufrágio se tornam realidade, esse povo é cada vez mais numeroso, um povo que ignora classes. A Nação tem uma voz, a dos órgãos que ela cria para querer em seu nome.

            É nas assembleias parlamentares, periodicamente eleitas, que se estabelece a expressão concreta da representação política dos eleitores. A representação política será como noção um mecanismo político para a realização de uma relação de controle regular de checks & balances entre governantes e governados.

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Sobre o autor
Arnaldo Manuel Abrantes Gonçalves

mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela IEP-UCP, licenciado em Direito pela FD-UNL, professor convidado do Instituto Politécnico de Macau (China)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Arnaldo Manuel Abrantes. Os partidos políticos e a crise da democracia representativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 707, 12 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6818. Acesso em: 18 nov. 2024.

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