A centenária Araguari, no Triângulo Mineiro, foi cenário daquele que ficou conhecido como um dos mais graves erros judiciários do Brasil. Em 1937, no derradeiro mês de dezembro, dois irmãos (os Naves) começam a ser investigados pelo desaparecimento e morte de um comerciante local.
O rumoroso caso começa quando os irmãos Sebastião José Naves, à época com 32 anos, e Joaquim Naves Rosa, 25 anos, firmam sociedade com o primo, o mercador Benedito Pereira Caetano. Os três dividem o mesmo caminhão para executar a atividade diária de sustento : compram e revendem cereais.
Após algumas idas e vindas do mercado, o ambicioso Benedito, acreditando em possível alta das mercadorias, toma grandes empréstimos na praça. No entanto, repetidas quedas de preços começam a preocupar o comerciante, já então afundado em dívidas. Fazendo e refazendo contas, Benedito procura oferta e, em ato desesperado, vende o produto a valor baixo, inferior ao montante da dívida.
O apurado com a venda é insuficiente para fazer frente aos credores, conquanto somasse a polpuda quantia de 90 contos de réis.
Indeciso, com dívidas e com o bolso tilintando... Benedito se deslumbra com a possibilidade de livrar-se do poço sem fundo de cifras negativas em que se enfiou e delibera sua fuga na madrugada de 29 de novembro.
Os sócios, irmãos Naves, parceiros diários de labuta, dão conta do inesperado desaparecimento do amigo. Correm ao delegado, que imediatamente dá início às apurações.
As investigações corriam placidamente sob os cuidados do delegado Ismael Benedito do Nascimento, mas uma troca de comando altera o desfecho do caso. De fato, assume o cargo o tenente Francisco Vieira, que dá novos rumos ao inquérito.
Recém-empossado, Vieira convoca e reconvoca testemunhas, estuda, ouve boatos e conclui que os irmãos Naves eram os maiores interessados no sumiço e morte do primo Benedito.
Sem perder tempo, ordena a prisão de Joaquim e Sebastião. Os irmãos e demais familiares passam por sessões de tortura pelos beleguins do mão de ferro. O chefe de Polícia aponta os matadores e forma a opinião pública, certo da proximidade das confissões. Mas elas não surgem tão rapidamente.
De fato, só após 15 dias de tortura em um matagal afastado da cidade, a 12 de janeiro de 1938 o delegado afirma ter conseguido a "confissão particular" de Joaquim. A 3 de fevereiro é a vez do irmão assumir a culpa.
Pronunciados, os Naves têm como defensor o valente advogado João Alamy Filho, que ingressa com HC mostrando às autoridades o equívoco que era cometido. Baldadas as tentativas, a dupla tem prisão preventiva decretada.
Chega o dia do julgamento. O causídico ensaia o sibilante discurso. Com a palavra, sete dos seis jurados votam pela absolvição dos Naves. A promotoria não se dá por satisfeita e recorre, pedindo e conseguindo anular o julgamento.
Em nova plenária, confirma-se o placar favorável aos irmãos. O tribunal, no entanto, altera o veredito outra vez, com ajuda da polaca Constituição de 1937.
Nesse cenário adverso, os consanguíneos são condenados a 25 anos e 6 meses de reclusão, pena posteriormente reduzida para 16 anos.
Após 8 anos e 3 meses encarcerados, em agosto de 1946, Sebastião e Joaquim ganham liberdade condicional ante comportamento exemplar.
Mas já é tarde.
Joaquim foi acometido de longa e dolorosa doença e morre nos alvores da liberdade. O irmão sobrevivente, incansável, inicia sua busca para provar a inocência.
Boas notícias demoram a surgir, mas o Sol volta-lhe a brilhar no inverno de 1952, quando aparece, em lugar distante, vivinho da silva, o primo Benedito. Só então, 12 anos após acusações, é, enfim, reconhecida a inocência dos irmãos.
O processo, conhecido a partir daí como "O caso dos irmãos Naves", transforma-se em filme e livro.
O Caso dos irmãos Naves sem dúvidas foi um dos maiores, senão o maior caso de erro judiciário cometido pelo sistema jurisdicional brasileiro, o caso de maior precedente de violação de princípios e direitos processuais e constitucionais, que até hoje é lembrada pela história do sistema penal e processualista do Brasil.
É essencial em qualquer ordenamento jurídico de sociedades modernas, a rigorosa observância dos princípios processuais e constitucionais durante um inquérito policial, um processo judicial e durante a execução penal, princípios esses, que foram expressamente violados durante todas as fases acima citadas no caso dos irmãos Naves, o que provocou uma imensa injustiça cometida em face dos dois.
Vários são os princípios transgredidos no caso dos irmãos Naves, mas é importante destacar alguns com certa veemência, pelo valor que se pesa em tais princípios.
1. Presunção de inocência ou não culpabilidade
Princípio este, expresso no texto constitucional em seu art. 5º, inc. XVII, que diz” Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. É um dos princípios fundamentais do Estado de Direito como garantia processual penal, visando evitar indevidas ofensas à liberdade daqueles que estão submetidos ao poder corretivo do Estado.
Principio que fora violado no caso Naves, ao se imputar aos irmãos, culpa, sem qualquer tipo de provas que atestassem sua autoria no crime em questão.
2. Dignidade da pessoa humana
O Princípio talvez mais valoroso em um Estado Democrático de Direito, no qual se embasa todo o ordenamento jurídico, tido pela Carta Magna em seu art. 1º, inc. III, como fundamento da República.
Princípio base constitucional, foi violado veementemente neste caso, expondo os Naves à situações mais humilhante possíveis, como a tortura para obtenção de confissões fraudadas sob sofrimento e violência, pondo suas garantias fundamentais a submissão da força arbitral do Estado.
3. Devido processo legal
Versado como o mais importante principio processual, pois dele derivam-se todos os demais. É o princípio que garante o direito processual diante de todas as garantias legais e constitucionais ao cidadão, sendo no âmbito material ou formal, de forma que o individuo tenha igualdades perante o Estado.
Os Naves tiveram seu direito ao devido processo legal violado, pois o caso apresenta incontáveis ilicitudes processuais. Logo no primeiro julgamento, as garantias de um julgamento público, medidas ilegais de busca e apreensão, direito a não condenação sob provas obtidas de maneira ilegal, direito de defesa dos réus, além do direito de permanecerem calados e de não produzirem provas contra si mesmo, foram expressamente violados. Além da ausência de provas e falta de conhecimento do caso pelo magistrado.
4. Vedação a penas de tortura ou degradantes
Princípio adstrito ao princípio da dignidade da pessoa humana. É neste contexto que se deve entender este tratado: a ampla necessidade de proteção ao cumprimento das leis, por um lado, e por outro, o respeito à dignidade humana, que não se compatibiliza com práticas vexatórias à cidadania e penas que extrapolam o limite tolerável e justo dentro de um sistema de leis que tenham sido elaboradas em um estado democrático de direito.
Este principio esta ligado diretamente ao Habeas Corpus, em outras palavras, a partir do momento em que o réu tem contra si um tratamento vexatório ou degradante, ou é exposto à tortura, tendo sua dignidade infringida, há que se apresentar o principio da vedação a penas degradantes. No caso em estudo, os irmão Naves foram torturados e humilhados na prisão, e quando o advogado da família impetrou um Habeas Corpus, e levou até a delegacia, os policiais disseram que os irmão já tinham sido soltos, entretanto estes ainda continuavam presos e sob tratamentos torturantes.
5. In Dubio Pro Reo
Principio jurídico da presunção da inocência, que diz que em casos de dúvidas (por exemplo do caso Naves, insuficiência ou até inexistência de provas) se favorecerá o réu. O principio in dubio pro reo, segundo René Ariel Dotti, aplica-se “sempre que se caracterizar uma situação de prova dúbia, pois a dúvida em relação à existência ou não de determinado fato deve ser resolvida em favor do imputado”.
O que não foi respeitado, pois este princípio declara favorecimento ao réu em caso de dúvidas no processo, como o tenente-delegado Xico Oliveira não sabia, não tinha provas, nem fatos concretos, absolutamente nada nos autos que deixassem claros a autoria e materialidade do crime, ao invés de ter dado o benefício da dúvida aos réus, não o fez, culpou-os de um crime não cometido, e pior, forçaram a confessar sob tortura, deveria tê-los deixado livres, até que se encontrassem provas contundentes da autoria e materialidade que os incriminassem.
6. Proibição de prova ilícita
Princípio amparado com destaque pela Carta Constitucional em seu art. 5º, inc LVI que prevê que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.
Este talvez seja o principio no Caso Naves violado com mais expressividade e notoriedade, uma vez que por meio de tortura aos réus e seus familiares, a polícia obtinha confissões totalmente fraudadas sob tratamentos inadmissíveis em um regime de Estado de Direito.
Verifica-se neste caso incontáveis condutas, as mais perversas por parte do tenente-delegado, para se obter provas ilícitas, violando explicitamente o princípio constitucional da proibição de prova ilícita.
Referências Bibliográficas
DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. 1 ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 1998. 550 p.
NACIONAL, Congresso. Constituição da republica federativa do brasil. 1 ed. Brasília: [s.n.], 1988. 72 p.
JUS BRASIL. O caso dos irmãos naves. Disponível em: <https://joaovitorleal.jusbrasil.com.br/artigos/377715559/o-caso-dos-irmaos-naves>. Acesso em: 05 mai. 2018.
CINTRA, Antônio Carlos De Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 25 ed. São Paulo: Malheiros editores, 2009. 385 p.
MIGALHAS. Os irmãos naves e um dos maiores erros judiciários do país. Disponível em:<http://www.migalhas.com.br/quentes/17,mi152842,51045-os irmaos naves e um dos maiores erros judiciarios do pais>. Acesso em: 22 mai. 2018.