Capa da publicação A vida tem a palavra: em defesa dos direitos humanos de existir, de nascer, de viver, de envelhecer e de morrer
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A vida tem a palavra: em defesa dos direitos humanos de existir, de nascer, de viver, de envelhecer e de morrer

Leia nesta página:

A crença segundo a qual todo ser humano, desde a sua concepção, tem o direito de vir a existir, de viver, de envelhecer e de morrer naturalmente, ou seja, sem a intervenção dolosa de terceiros, é um avanço civilizatório que nos diferencia de bestas selvagens.

“Age de tal maneira que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica; e não ponhas em perigo a continuidade indefinida da humanidade na Terra” (Hans Jonas). [1]

Senhoras e senhores,

1. Iniciei esta breve intervenção com uma citação extraída do livro “O Princípio Responsabilidade – ensaio de uma ética para a civilização tecnológica”, de autoria de Hans Jonas.

2. Esse referido autor, Hans Jonas, teve como principal objetivo intelectual criar uma teoria capaz de justificar o valor moral do ser humano diante de uma civilização cada vez mais avançada nos aspectos tecnológicos e científicos, e, paradoxalmente, aparentemente cada vez menos preocupada com retrocessos éticos.

3. Para Hans Jonas, cada avanço científico-tecnológico deveria ser acompanhado de um avanço ético.

4.  Se nesta mesa estamos discorrendo sobre os direitos humanos das pessoas com deficiência e das pessoas idosas é porque estamos, felizmente, diante de uma realidade incontestável: houve muitos avanços científicos e tecnológicos que melhoraram as condições de vida das pessoas com deficiência e das pessoas idosas, e esses avanços científicos e tecnológicos devem ser acompanhados dos avanços culturais (morais).

5.  Por isso que esta palestra tem o seguinte título: “A vida tem a palavra: em defesa dos direitos humanos de existir, de nascer, de viver, de envelhecer e de morrer”.

6.  Busquei inspiração em um livro publicado em 1980 intitulado “A defesa tem a palavra – o caso Doca Street e algumas lembranças”, de Evandro Lins e Silva.[2]

7.  Evandro Lins, que foi um dos maiores advogados do Brasil, e que também foi ministro de estado chefe da Casa Civil da Presidência da República, chanceler do Ministério das Relações Exteriores, procurador-geral da República e ministro do Supremo Tribunal Federal.

8. Nesse citado livro, Evandro Lins apresentou as suas razões na defesa que fez em favor de Raul Fernando do Amaral Street (mais conhecido como Doca Street), réu confesso do assassinato de Ângela Maria Fernandes Diniz. Esse caso é um dos mais emblemáticos do direito penal brasileiro e verdadeiro divisor de águas na tradição jurídica nacional.

9. Peço licença para recordar brevemente o caso “Doca Street” e depois explicarei o motivo de usar o citado livro “A defesa tem a palavra” como parâmetro desta intervenção intitulada “A vida tem a palavra”.

10.  O “caso Doca Street”.

11. Em 30 de dezembro de 1976, na cidade de Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro, Doca Street, então com 42 anos, pai de 2 filhos, assassinou sua então namorada/companheira Ângela Diniz, que tinha 32 anos de idade e era mãe de 3 crianças, com quatro tiros disparados contra a cabeça da vítima, sendo o último na sua boca. O autor do crime alegou ter agido em “legítima defesa da honra”, motivado por violenta e obsessiva paixão.

12.  Em 1979, o Tribunal do Júri popular acolheu a tese da defesa, magistralmente exposta por Evandro Lins, e absolveu Doca Street por excesso culposo.

13.   O veredicto do Júri foi muito mal recebido pela opinião pública nacional. A surrada tese da “legítima defesa da honra” e da “violenta paixão” não era mais admitida como aceitável, sem embargo da extraordinária defesa de Evandro Lins.

14. Nada obstante, houve uma colossal mobilização das entidades ligadas aos direitos das mulheres contra essa tese. Paralelamente, houve recurso para o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que veio a anular o resultado daquele Júri e determinou que novo julgamento viesse a ocorrer.

15. Em 1981 houve novo julgamento e Doca Street restou condenado a cumprir 15 anos de prisão. Com apenas 7 anos de execução da pena, o homicida foi posto em liberdade. E tem vivido “normalmente”. Já Ângela continuará eternamente presa em sua cova.

16.  Mas dessa triste história quero utilizar o mote que foi usado pelo movimento em defesa das mulheres: “Quem ama, não mata”.

17. Senhoras e senhores, prezados alunos, “quem ama, não mata”. A rigor, quem ama, vive. Quem ama, quer viver e quer que os outros vivam. Quem ama, protege e cuida. Quem ama, é responsável, cuidadoso e preocupado. Amor é Vida. Amar é Viver. Onde há amor não há espaço para a morte e para o sofrimento causado dolosamente.

18. Esse é o fio condutor desta breve intervenção. Se Evandro Lins e Silva pediu a palavra à defesa para justificar as suas razões em favor de Doca Street, para justificar a Morte, peço a palavra para justificar a Vida e os direitos humanos dos naturalmente vulneráveis: o feto, a criança, a pessoa com enfermidade, a pessoa com deficiência e a pessoa idosa.

19. Induvidosamente, em qualquer agrupamento humano e em qualquer período de tempo ou espaço geográfico ou territorial, esses aludidos seres vivos (o feto, a criança, o enfermo, o deficiente e o idoso) são os mais vulneráveis fisicamente e, por consequência, são aqueles que mais necessitam de um projeto civilizatório de reconhecimento de que são dignos, ou seja, que são merecedores de respeito e consideração.

20.  Neste Seminário estamos celebrando importantes avanços civilizatórios e que nos diferenciam de bestas selvagens: a crença segundo a qual todo ser humano, desde a sua concepção, tem o direito de vir a existir, de viver, de envelhecer e de morrer naturalmente, ou seja, sem a intervenção dolosa de terceiros. Na longa história da humanidade, essa crença é revolucionária. Talvez a mais revolucionária de todas as crenças humanas.

21.  Eis um “tabu civilizatório”: a proteção simbólica e normativa dos mais frágeis ante a possível e fática força e violência dos mais fortes. Age com covardia todo aquele que usa arbitrariamente, sem justo e convincente motivo, de sua força física superior, de sua capacidade de ser violento,  para causar o mal ou para matar quem lhe seja fisicamente inferior ou quem está indefeso. É imoral e indecente usar da força e da violência contra quem não tem as mesmas condições físicas de se defender: os fetos, as crianças, as mulheres, os enfermos, os deficientes e os idosos.

22.  Reitero. Estamos diante de uma crença intersubjetivamente compartilhada. Estamos diante de uma ideia vencedora. Mas todos sabemos que, infelizmente, essa crença, que essa ideia, ainda não pode ser vista como fato objetivo inquestionável.  Mas, nada obstante ainda não seja essa crença revolucionária, essa ideia vencedora, um fato objetivo inquestionável, essa crença, essa ideia, esse direito já tem força suficiente para influenciar a realidade.

23.   Com efeito, senhoras e senhores, prezados alunos, como todos sabemos há muito de “mitologia” e de “magia” no Direito.

24.   Compartilho do entendimento que vê o Direito, o Ordenamento Jurídico, como um “mito”, ou seja, como como um conjunto de crenças intersubjetivamente compartilhadas e tidas por verdadeiras e merecedoras de reverência, capazes de influenciar as ideias, concepções, declarações, ações e comportamento individuais e coletivos.

25.  Nessa perspectiva, também reconheço a força mágica do Ordenamento Jurídico. Magia entendida como a capacidade de os preceitos jurídico-normativos moldar e conformar as realidades sociais, econômicas, culturais, tecnológicas e científicas do indivíduo e de uma comunidade, e de influenciar concepções, declarações, ações e comportamentos das pessoas.

26.  Nessa linha, acolho o entendimento segundo o qual o Direito consiste em uma criação da mente humana, que o Direito é uma “ordem imaginada” e que a sua força normativa decorre da crença em seus poderes mágicos. O Direito só existe e só vale para quem nele acredita ou para aqueles que sentem os efeitos das crenças alheias.

27. Logo, podemos entender o Direito, ou seja, o Ordenamento Jurídico como o conjunto de prescrições normativas que visa influenciar e regular as declarações e as condutas das pessoas e das instituições, atribuindo consequências jurídicas aos fatos, acontecimentos e situações.

28.  Evidentemente que essas prescrições normativas, para serem reconhecidas como lícitas e legítimas, devem regular o compatível, o aceitável, o necessário, o adequado, o razoável e o proporcional. Esses são os atributos qualificadores das normas jurídicas de um Estado de Direito.  E este, o Estado de Direito, se distingue do Estado do Poder ou da Força.

29.  O Estado do Poder ou da Força pode ser compreendido como o conjunto de homens e mulheres, de carne e osso, com vícios e virtudes, que, em determinado espaço territorial e por um determinado período temporal, criam e manipulam “símbolos”, “leis” e “armas” sobre outros homens e mulheres, também de carne e osso, também com vícios e virtudes, e podem viabilizar uma convivência “parasitária”, se visam o Caos e a Injustiça.

30. Já o Estado de Direito pode ser compreendido como o conjunto de homens e mulheres, de carne e osso, com vícios e virtudes, que, em determinado espaço territorial e por um determinado período temporal, criam e manipulam “símbolos”, “leis” e “armas” sobre outros homens e mulheres, também de carne e osso, também com vícios e virtudes, e podem viabilizar uma convivência “simbiótica”, se visam a Paz e a Justiça.

31. Eis as diferenças fundamentais entre o Estado do Poder e o Estado de Direito: a) a convivência “parasitária” ou “simbiótica”; e b) a busca pela Paz e Justiça ou pelo Caos e Injustiça.

32.  Como diferenciar o Estado do Poder do Estado de Direito? Observando se os homens e as mulheres convivem “parasitariamente” ou “simbioticamente”, se as pessoas vivem com medo ou se vivem em paz, e se as pessoas vivenciam sentimentos de justiça ou de injustiça, se elas desfrutam de uma boa qualidade de vida e se têm oportunidade de acesso aos avanços científicos, tecnológicos e éticos disponíveis na sociedade. Mas tanto o Estado de Direito quanto o Estado do Poder trabalham com “mitos” e “armas”, a diferença está no modo como são utilizados e na finalidade dessa utilização, conforme aludimos.

33.  Senhoras e senhores, prezados alunos, creio que podemos cuidar diretamente do tema a que me propus: os direitos humanos daqueles que são os naturalmente mais vulneráveis, quais sejam, os fetos, as crianças, as pessoas enfermas, as pessoas com deficiência e as pessoas idosas.

34.  É bem verdade que não podemos esquecer daqueles que são social ou culturalmente mais vulneráveis, a partir de nossas experiência histórica, quais sejam: os indígenas, os negros e os ciganos. Além das mulheres, dos homossexuais, dos imigrantes e dos crentes em confissões religiosas minoritárias ou mesmo dos descrentes em Deus.

35.  Esses referidos grupos sociais, à luz de nosso contexto cultural e histórico, são compreendidos como vulneráveis e, por essa razão, também merecedores de um tratamento normativo diferenciado visando reequilibrar as desequilibradas relações sociais.

36.  Com efeito, um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos termos do inciso IV do art. 3º, Constituição Federal, é a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Esse comando normativo deve ser lido em conjunto com o disposto no art. 19, inciso III, CF, que proíbe à República criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

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37.   Qual o sentido desses mencionados preceitos constitucionais? Respondo: proibir que o indivíduo, que qualquer pessoa, em qualquer estágio de sua existência, seja prejudicado ou seja sacrificado. Ninguém deve ser prejudicado ou sacrificado pelo fato de ser um feto ou uma criança ou mulher ou por ser negro ou homossexual ou deficiente ou idoso ou indígena ou pertencente a qualquer grupo natural ou socialmente vulnerável.

38.  A mensagem simbólica é civilizatória: ninguém que seja pertencente a um grupo vulnerável (seja no aspecto natural seja no aspecto social) pode ser prejudicado ou sacrificado. E, a depender das circunstâncias, pode, excepcionalmente, vir a ser favorecido, mediante um tratamento normativo diferenciado, que se justifique e que seja razoável e proporcional, ou seja, moralmente correto, politicamente conveniente, economicamente viável, culturalmente aceitável, socialmente adequado e juridicamente válido, como sucede, por exemplo, com a cota em concursos públicos para pessoas portadoras de deficiência (art. 37, inciso VIII, CF).

39. Com efeito, é fato incontornável e insuperável da realidade (natureza) que todo o indivíduo, que toda pessoa humana, em qualquer estágio de sua existência, consiste em uma experiência histórica irrepetível e inimitável no tempo e no espaço. Que todos são naturalmente (aqui natureza entendida como realidade) distintos, desiguais, diferentes, únicos e insubstituíveis.  Logo, a igualdade normativa tem profundo senso de moralidade, ou seja, todos os seres humanos, seja em qual estágio for de sua existência (desde fetal até a senil) são moralmente iguais, porquanto todos são dotadas de uma essencial dignidade que lhes confere o direito de serem tratados com respeito e consideração.

42.  E, também, há um elemento de pragmatismo tributário. Explico. Há um velho ditado de raízes romanas no seguinte sentido: “pecunia non olet” (o dinheiro não cheira). Vou mais longe. O dinheiro não tem cheiro, não tem cor, não tem sexo, orientação sexual, crença religiosa e não faz qualquer tipo de discriminação.

43. Isso quer dizer que na hora de cobrar tributos, o Estado (o Fisco) não discrimina o contribuinte em face de seus atributos físicos ou naturais nem em face do pertencimento a qualquer grupo social. O tributo não discrimina nem leva em consideração aspectos que não sejam os de caráter econômico. Para arrecadar, o Estado não pratica preconceitos discriminatórios de conteúdo moral ou natural. Logo, se para arrecadar o Estado não discrimina, também não deve diferenciar para gastar ou investir. Portanto, o Estado deve promover o bem de todos. Eis a razão dos comandos constitucionais estampados nos arts. 3º, inciso IV, e 19, inciso III. Ninguém deve ser prejudicado (sacrificado) ou favorecido (beneficiado) se não houver um justo e convincente motivo. Se o Estado é por todos financiado, de modo indiscriminado, não deve a ninguém discriminar (prejudicar ou favorecer).

44. A igualdade normativa (isonomia) foi uma genial criação da mente humana capaz de viabilizar relações simbióticas, ao invés das relações parasitárias decorrentes das relações moralmente desiguais e, por consequência, injustas.

45. Este Seminário, que celebra os Direitos Humanos nos 30 anos da Constituição Federal e nos 70 anos das Declarações Americana e Universal, simboliza a vitória moral dessa genial ideia humana.

46. Com efeito, se no passado houve quem defendesse e acreditasse na superioridade de alguns grupos humanos sobre os outros ou que defendesse ou acreditasse na inferioridade de algumas pessoas em relação a outras, inclusive e sobretudo no plano moral, hoje ninguém ousa assim pensar. Se assim pensar, não manifesta. E se acaso se manifestar, se envergonha ou será envergonhado. E se não se envergonhar, sofrerá prejuízos econômicos e jurídicos. Uma milenar história de uma crença errada (a de que há pessoas superiores às outras) foi felizmente sepultada. A crença vencedora consiste na igualdade moral entre todos os seres humanos.

47. A partir dessa crença vencedora e correta, a da igualdade moral entre todos os indivíduos pertencentes à espécie humana, independentemente de seus atributos naturais ou do pertencimento a determinados grupos sociais, surgiu outra crença revolucionária: a de que todo ser humano, desde a sua concepção, é merecedor de respeito e de consideração.

48. Cuide-se que o sistema jurídico brasileiro protege o cadáver e a sepultura (arts. 209 a 212, Código Penal), logo, por uma questão de coerência sistemática do ordenamento jurídico, deve, com maior razão, proteger os fetos e úteros. Se o ordenamento jurídico protege os direitos patrimoniais e civis dos fetos nascituros (art. 2º, Código Civil), como não poderia proteger o seu direito de existir e de nascer? Ou um feto vale menos que um cadáver, tanto no plano patrimonial (direito sucessório) ou existencial (direito penal)? Um criminoso não deve ser condenado à pena de morte (art. 5º, inciso XLVII, alínea “a”, CF), mas querem matar um feto inocente, via feticídio legal (ADPF 442 e ADI 5.581, STF)? As respostas só podem ser negativas.

49. No caso do aborto ou feticídio, há um argumento que relembra os piores pesadelos da humanidade. É que os defensores do aborto sempre apelam para um argumento de revanchismo social ou racial, no sentido de que somente as mulheres pobres e negras seriam alcançadas pela proibição penal. Esse tipo de argumento, a depender dos contextos, pode ser entendido como uma proposta de “higienização social” ou de “holocausto de pobres e negros”, pois a legalização do aborto poderia ser entendida como um estímulo jurídico e moral para que mais mulheres pobres e negras cometam o aborto, e, com isso, nasceriam menos crianças pobres e negras. Em vez de se melhorar as condições sociais e econômicas, a opção mais fácil seria autorizar o abortamento, preferencialmente de pobres e negros, na linha dos defensores dessa prática. Por trás das boas intenções de proteger as mulheres pobres e negras pode se esconder uma consequência sinistra: a diminuição de crianças pobres e negras, via abortamento ou feticídio.

50. Nada obstante, professo o credo de que todo ser humano é digno e aceito como verdade o dogma segundo o qual todo ser humano, desde a sua concepção em útero materno, é proprietário moral de sua vida, de seu corpo, de suas liberdades e de seus bens. E dessa propriedade ele somente pode ser privado se houver um justo e lícito motivo. Nas sociedades civilizadas, a vida humana deve ser preservada, não há espaço para o sacrifício imposto por terceiros, aqui incluído o sacrifício legalmente autorizado. Nas sociedades humanizadas, os vulneráveis são protegidos, em vez de sacrificados. E não se ouse falar em “desacordo moral razoável”, pois é dever, moral e jurídico, dos pais criar os filhos e destes cuidar daqueles na velhice (art. 229, CF).

51. Com efeito, os fetos devem ser protegidos, em vez de abortados. As crianças devem ser protegidas, em vez de abandonadas. Os idosos devem ser protegidos, em vez de descartados. As pessoas com deficiência devem ser protegidas, em vez de largadas à própria sorte.  Essa é a mensagem simbólica. O que diferencia a civilização humana da bestialidade selvagem consiste na proteção aos mais vulneráveis, e não o sacrifício deles. O tropo argumentativo “desacordo moral razoável” não se presta para defender o mais forte em desfavor do mais fraco. Pois o feto é mais fraco que a gestante, a criança é mais fraca que o adulto, o enfermo é mais fraco que o são, o idoso é mais fraco que o jovem, a mulher é mais fraca, fisicamente, que o homem, enfim, nunca o mais forte deve ser visto como se fosse naturalmente igual ao mais fraco.

52.  Nada obstante, temos visto que muitos dos avanços científicos e tecnológicos estão sendo utilizados para a prática do mal, para a eliminação ou o sacrifício dos considerados indesejáveis, infelizmente.  Tenha-se que foi recentemente noticiado que em alguns países não nascerão crianças portadoras de algumas síndromes ou deficiências, isso porque graças aos avanços científicos e tecnológicos é possível detectá-las ainda no útero materno e, assim, abortar. Feticídio justificado pela ciência e autorizado pelos “desacordos morais razoáveis”. Ao invés de se utilizar a ciência e a tecnologia para a prática do bem, utiliza-se para a prática do mal, do sacrifício, e de uma imoralidade existencial. O indesejado deve ser eliminado, essa é lógica macabra por trás dessas razões.

53. Indaga-se: quem nos deu o direito moral de utilizarmos o nosso poder para sacrificar os fetos ou quaisquer seres humanos tidos como indesejados? Quem nos deu o direito moral de utilizarmos o nosso poder para discriminar, para prejudicar os diferentes julgados inferiores? Quem nos deu o direito moral de utilizarmos o nosso poder para sacrificar quem não quer nem merece ser sacrificado ou eliminado?  Daí a judiciosa advertência de Hans Jonas: o avanço científico deve ser acompanhado de um avanço moral.

54.  Ainda que a ciência seja considerada como neutra, a moral não é nem pode ser neutra. Ela deve ter um lado: o dos seres humanos vulneráveis, dos mais frágeis, daqueles que não conseguem se defender dos terceiros. Daí que a ciência e a tecnologia não devem estar a serviço do sacrifício ou da eliminação dos indesejados. Em uma sociedade pautada pela ética das responsabilidades, as escolhas individuais e sociais não devem ter como critérios o “desejo”, mas os “deveres”, e como bússola moral a proteção dos mais vulneráveis, dos mais frágeis, daqueles que nada têm e nada possuem, exceto a sua essencial e humana dignidade.

55. Pela ética da responsabilidade, não há “desacordo moral razoável”, tampouco “escolhas trágicas” ou de “opções aceitáveis”, diante de certas circunstâncias: os enfermos devem ser cuidados pelos sãos, os deficientes não podem ser prejudicados pelos não deficientes; os fetos não devem ser assassinados e expulsos dos sagrados úteros de suas mães; os pais devem se sacrificar pelos filhos etc. Não há dúvidas, não há opções, não há escolhas. Há deveres, há decência, há honra e correta moralidade. Há dogma: ponto de partida inquestionável e tido como verdadeiro.

56. Sobre esse tema vale recordar a seguinte passagem de Hans Jonas sobre o que é o homem e sobre o que ele deve ser:

“O reconhecimento daquela primazia, e com isso de um dever em favor do Ser, não significa evidentemente, em termos éticos, que o indivíduo singular deve se decidir sempre, em quaisquer circunstâncias, pelo prolongamento da sua vida contra uma morte possível e certa, isto é, que deva agarrar-se à sua vida. O sacrifício da própria vida para salvar outros, pela pátria ou por uma causa da humanidade é uma opção para o Ser, não para o não-ser. Também o suicídio premeditado visando a preservar sua própria dignidade humana diante de uma humilhação extrema (como o suicídio estóico que sempre é também uma ação ‘pública’) ocorre em última análise em função da sobrevivência da dignidade humana como tal. O que vale para ambos os casos é que ‘a vida não é o bem supremo’. Mesmo o direito de escolher o auto-aniquilamento em virtude do desespero individual, embora eticamente contestável, mas concedido pela compaixão, não nega o primado do Ser como tal: é uma concessão à fraqueza no caso individual, uma exceção à regra universal. Ao contrário, a possibilidade de escolher o desaparecimento da humanidade implica a questão do dever-ser ‘do homem’, e esta necessariamente nos conduz de volta à questão sobre se algo efetivamente deve existir em vez de nada”.

57. Vejam, senhoras e senhores, prezados alunos, que não se cuida da absolutização da vida ou do direito à vida, mas dos limites dos sacrifícios à vida e à existência. E segue, segundo Hans Jonas, o alcance da responsabilidade humana:

O Princípio Responsabilidade: conservar incólume para o homem, na persistente dubiedade de sua liberdade que nenhuma mudança das circunstâncias poderá suprimir seu mundo e sua existência contra os abusos de seu poder.

58. Hora de finalizar.  Vivemos um tempo extraordinário de oportunidades, de avanços científicos, de inovações tecnológicas, de melhorias econômicas e sociais e de inquestionáveis progressos morais. Mas esses tempos extraordinários e de fantásticas oportunidades, também podem vir a se tornar sombrios se não formos entusiasmados pelo espírito que animou, há 70 anos, as Declarações Americana e Universal, e há 30 anos a Constituição brasileira: a de que todos nós, independentemente de nossos atributos físicos ou de nossas qualificações sociais, somos membros de um só corpo, de uma só realidade. Todos somos humanos e membros da humanidade, gostemos ou não deste fato ou desta crença.

59.  Este Seminário, promovido pelo Centro Universitário de Brasília e pelo Ministério dos Direitos Humanos, celebra e recorda esse fato no qual acredito piamente: ninguém tem o direito moral de utilizar o seu poder e a sua força para sacrificar a vida alheia, seja em que estágio for ou circunstâncias estiver essa vida, salvo se houver legítimo e lícito motivos.

60.  Muito obrigado!


Notas

[1] JONAS, Hans. O princípio responsabilidade – ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Marijane Lisboa e de Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-RIO, 2006.

[2] LINS E SILVA, Evandro Cavalcanti. A defesa tem a palavra – o caso Doca Street e algumas lembranças Rio de Janeiro: AIDE, 1980.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. A vida tem a palavra: em defesa dos direitos humanos de existir, de nascer, de viver, de envelhecer e de morrer. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5530, 22 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68219. Acesso em: 21 nov. 2024.

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