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Assédio sexual:

questões conceituais

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09/06/2005 às 00:00
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06.Espécies.

A doutrina especializada tem classificado o assédio sexual em duas espécies, com características diferenciais bem marcantes, que são o "assédio sexual por chantagem" e o "assédio sexual por intimidação" [16].

A primeira forma tem como pressuposto necessário o abuso de autoridade, referindo-se à exigência feita por superior hierárquico (ou qualquer outra pessoa que exerça poder sobre a vítima), da prestação de "favores sexuais", sob a ameaça de perda de benefícios ou, no caso da relação de emprego, do próprio posto de trabalho.

Já a segunda espécie, também chamada de "assédio sexual ambiental", é aquela que se caracteriza por incitações sexuais inoportunas, solicitações sexuais ou outras manifestações da mesma índole, verbais ou físicas, com o efeito de prejudicar a atuação de uma pessoa ou de criar uma situação ofensiva, hostil, de intimidação ou abuso no ambiente em que é intentado.

Vale destacar que esta é uma classificação geral para todos os tipos de assédio sexual, e não exclusivamente o laboral. Todavia, como o assédio sexual ocorre com muito maior freqüência no ambiente de trabalho, até mesmo pela circunstância da necessidade de convivência entre os colegas de serviço, é comum ser apresentada também uma outra classificação em dois grupos: assédio sexual laboral e assédio sexual extralaboral.

Analisemos, agora, portanto, estas duas espécies mencionadas.

06.01Assédio sexual por chantagem ("assédio sexual quid pro quo").

Esta é a espécie que, de forma mais comum, se visualiza o problema do assédio sexual, sendo a única a ser tratada de forma expressa no Direito Brasileiro, para efeito de tipificação penal, ainda que limitada às relações de trabalho.

De fato, é até mesmo sintomático que algumas legislações alienígenas somente considerem esta espécie de assédio sexual, tratando-a como uma questão de abuso de poder.

E é disso mesmo que se trata o abuso sexual por chantagem, pois, por ele, o agente exige da vítima a prática (e/ou a aceitação) de uma determinada conduta de natureza sexual, não desejada, sob a ameaça da perda de um determinado benefício.

Da mesma forma, enquadra-se também nesta espécie a aplicação do raciocínio a contrario sensu, ou seja, a hipótese em que o assediador pretende que a vítima pratique determinado ato de natureza sexual, não com a ameaça, mas sim com a promessa de ganho de algum benefício, cuja concessão dependa da anuência ou recomendação do agente.

Justamente em função desta "barganha" de natureza sexual, é que esta forma de instigamento é conhecida como assédio sexual quid pro quo, que quer dizer, literalmente, "isto por aquilo".

O assédio sexual quid pro quo é, portanto, uma conseqüência direta de um abuso de uma posição de poder, de que o agente é detentor. Por isto mesmo, a sua verificação se dá, potencialmente, em todas as formas de relações sociais em que há uma discrepância de poder, como, por exemplo, o campo educacional (professores X discípulos), esportivo (dirigentes de clubes e treinadores X atletas), hospitalar (médicos e auxiliares X pacientes) e religioso (sacerdotes X fiéis).

O certo é que esta forma de assédio sexual potencialmente ocorre com muito maior freqüência nas relações de trabalho – tanto que esta é a única forma tipificada no Brasil - em que o empregado é dependente hierárquico do empregador, motivo pelo qual este último é tradicionalmente o sujeito ativo do assédio sexual. Todavia, não se pode descartar a hipótese de que outros trabalhadores que, por delegação sua, exerçam funções de confiança na empresa também possam ser caracterizados como assediadores.

Um dado relevante a ser destacado, porém, é que, nesta forma de assédio, nem sempre é para si que pretende o superior hierárquico os favores sexuais ou condutas afins, pois pode acontecer que o faça para clientes ou credores da empresa.

06.02Assédio sexual por intimidação ("assédio sexual ambiental").

O "assédio sexual ambiental" é aquele que se caracteriza por incitações sexuais inoportunas, solicitações sexuais ou outras manifestações da mesma índole, verbais ou físicas, com o efeito de prejudicar a atuação de uma pessoa ou de criar uma situação ofensiva, hostil, de intimidação ou abuso no ambiente em que é intentado.

Trata-se, em verdade, de uma forma de intimidação, muitas vezes difusa, que viola o direito a um meio ambiente de trabalho sexualmente sadio (daí, a expressão "assédio sexual ambiental").

Nesta espécie, o elemento "poder" é irrelevante, sendo o caso típico de assédio sexual praticado por companheiro de trabalho da vítima, ambos na mesma posição hierárquica na empresa.

O aspecto fundamental, portanto, não é a existência de ameaças, mas sim a violação ao seu "direito de dizer não", através da submissão – notadamente de mulheres - a avanços repetidos, múltiplas blagues ou gestos sexistas (mesmo que sua recusa não seja seguida de represálias).

A casuística desta segunda modalidade de assédio sexual (também conhecida, na área laboral, como assédio sexual "clima de trabalho" ou "clima de trabalho envenenado") é a mais ampla possível. Apontam-se, como caracterizadores, os seguintes atos: abuso verbal ou comentários sexistas sobre a aparência física do empregado; frases ofensivas ou de duplo sentido e alusões grosseiras, humilhantes ou embaraçosas; perguntas indiscretas sobre a vida privada do trabalhador; separá-lo dos âmbitos próprios de trabalho para maior intimidade das conversas; condutas "sexistas" generalizadas, destacando persistentemente a sexualidade em todos os contextos; insinuações sexuais inconvenientes e ofensivas; solicitação de relações íntimas, mesmo sem exigência do coito, ou outro tipo de conduta de natureza sexual, mediante promessas de benefícios ou recompensas; exibição de material pornográfico, como revistas, fotografias ou outros objetos, assim como colocar nas paredes do local de trabalho imagens de tal natureza; apalpadelas, fricções ou beliscões deliberados e ofensivos; qualquer exercício de violência física ou verbal.

Como observa o Mestre Pinho Pedreira, no "famoso aresto Vinson, de 1986, a Suprema Corte norte-americana, através do Juiz Rhenquist, reconheceu como assédio sexual também aquele que cria ‘um ambiente de trabalho ameaçador, hostil e ofensivo’. Depois de recordar que o princípio do ‘ambiente hostil’ tem sido aplicado às causas de molestamento racial, Rhenquist cita o acórdão Vinson, que estabelecera analogia com o assédio sexual nestes termos: ‘O assédio sexual que cria um ambiente de trabalho hostil e ofensivo constitui um obstáculo arbitrário à igualdade dos sexos, no local de trabalho, na mesma medida em que o molestamento racial constitui um obstáculo à igualdade das raças. Certamente, forçar um homem ou uma mulher a sofrer todas as espécies de comportamentos sexuais abusivos para ter o privilégio de trabalhar e ganhar sua vida pode ser tão humilhante e desconcertante quanto lhe infligir os epítetos raciais mais duros’. No também célebre aresto Janzen, da Corte Suprema do Canadá, o Juiz Dickson salientou que o assédio ‘clima de trabalho’ é proibido ao mesmo título que o assédio ‘chantagem no trabalho’. Lembrou em seguida que os tribunais americanos e canadenses reconhecem duas categorias de assédio sexual: tanto o ‘ambiente de trabalho hostil’ quanto o ‘donnant-donnant’ [17]".

É importante destacar, contudo, que embora esta espécie de assédio sexual não esteja tipificada como crime no ordenamento jurídico brasileiro, sua ilicitude – enquanto forma de violação à liberdade sexual – é evidente, devendo ser combatida e reparada na esfera civil e trabalhista.


07.A questão da culpa concorrente.

Um ponto que nos parece importante em matéria de assédio sexual - que não é tratada com freqüência pela doutrina autorizada - é a questão da culpa concorrente nos atos que levaram à caracterização do assédio sexual.

De fato, a questão da culpa concorrente, embora praticamente irrelevante para o direito penal [18], deve ser levada em consideração pelo juiz quando estiver enfrentando um litígio de natureza civil que trate do instigamento sexual.

É certo que ninguém pode ser forçado a praticar ato que viole a liberdade sexual de qualquer um. Todavia, a provocação da "vítima" será, no mínimo, uma atenuante ou uma explicação para o comportamento do "ofensor", ainda que não o justifique [19].

Nas palavras de Maria Helena Diniz, se "lesado e lesante concorreram com uma parcela de culpa, produzindo um mesmo prejuízo, porém por atos independentes, cada um responderá pelo dano na proporção em que concorreu para o evento danoso. Não desaparece, portanto, o liame de causalidade; haverá tão-somente uma atenuação da responsabilidade, hipótese em que a indenização é, em regra, devida por metade (RT, 221:220, 226:181, 216:308, 222:187, 156:163, 163:669, 439:112; RF, 109:672, 102:575) ou diminuída proporcionalmente (RT, 231:513). Haverá uma bipartição de prejuízos, e a vítima, sob uma forma negativa, deixará de receber a indenização na parte relativa à sua responsabilidade. Logo, a culpa concorrente existe quando ambas as partes agem com qualquer das três clássicas modalidades culposas" [20].

07.01Culpa Concorrente stricto sensu.

Existem certos ambientes que exigem um determinado tipo de conduta social, que deve ser observada, inclusive, como uma cláusula contratual, em alguns tipos de atividade. Ao termo "conduta" se aplica até mesmo a vestimenta com que se vai ao trabalho, o que pode soar como extremamente razoável.

De fato, ambientes como hospitais, universidades e santuários religiosos exigem determinadas indumentárias que não seriam exigíveis, por exemplo, em academias de ginástica ou em trabalhos ao ar livre.

Assim sendo, se a vítima tem o hábito de se vestir de forma provocadora ou se pactua livremente com certas intimidades em público, não há como deixar de reconhecer que, de certa forma, está assumindo algum risco de receber propostas de natureza sexual.

Não estamos aqui, de maneira alguma, defendendo a conduta de assediadores, mas consideramos importante "tocar nesta ferida" para mostrar que, muitas vezes, um ato que se taxa de agressivo sexualmente (ressalte-se, novamente, que não estamos falando de violência sexual direta), muitas vezes é apenas uma resposta a um "aparente convite" da suposta vítima.

Em conclusão, destacamos, por isso, que o comportamento da alegada vítima, no ambiente de trabalho, bem como sua "vida pregressa", devem ser levados em consideração na hora de se avaliar se um ato pode ser enquadrado ou não como assédio sexual.

Sobre o tema, vale a pena destacar a informação, noticiada nos principais jornais do mundo, de que enfermeiras inglesas foram proibidas de usar tangas debaixo de suas roupas brancas, no local de trabalho, em função de distúrbios comportamentais que estavam gerando nos pacientes [21].

07.02.O conluio entre vítima e assediante.

A questão do assédio sexual tem sido motivo para profundas reflexões sobre o tema da litigância de má fé.

Muitas vezes, por causa das vultuosas indenizações que se tem notícia no direito comparado, é fato que, ainda que jocosamente, tem-se falado em supostas "armações" entre a alegada vítima e o suposto assediador com o fito de lesionar terceiros (notadamente os responsáveis legais pelos atos do acusado lesionante).

Na área trabalhista, isto se mostra ainda mais "tentador", uma vez que o direito positivo brasileiro estabelece a responsabilidade civil do empregador com culpa presumida por ato de seus prepostos, conforme se verifica dos artigos 1521/1523 do vigente Código Civil brasileiro e a Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal [22].

Esta prática, obviamente, deve ser duramente rechaçada pelo Poder Judiciário brasileiro, seja buscando evitar, quando possível, a estipulação de quantias milionárias a título de indenização por dano moral (por não ser essa a essência do instituto), seja condenando duramente em litigância de má-fé, como medida repressiva e didática de combate a esta patologia jurídica.

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08.Poder e assédio sexual.

Como já se deve ter percebido, defendemos expressamente um ponto que diverge do "senso comum" sobre o assédio sexual, que é o fato do elemento "abuso de poder" não ser essencial para caracterizá-lo, do ponto de vista doutrinário (ainda que reconheçamos a sua imprescindibilidade para a persecução criminal).

De fato, o poder atua, sim, apenas como um elemento acidental para a caracterização do assédio sexual, que permite facilmente, quando presente, a sua configuração.

É possível, inclusive, fazer um paralelo, na espécie, com os elementos acidentais da relação de emprego, como, por exemplo, a continuidade e a exclusividade na prestação laboral.

Com efeito, para a caracterização de uma relação de emprego, não há necessidade que a prestação de serviços seja feita de forma exclusiva, podendo o empregado, caso tenha condições fáticas, manter mais de um vínculo contratual com diferentes empregadores.

Todavia, quando presente o elemento exclusividade, fica mais fácil caracterizar a presença de outros elementos essenciais da relação de emprego, como, por exemplo, a pessoalidade e a subordinação jurídica.

Da mesma forma, o trabalho não precisa ser prestado de forma contínua para caracterizar uma relação de emprego, bastando que existia a habitualidade (ou permanência) na prestação, esta sim um elemento essencial. Contudo, presente a continuidade, provada facilmente estará a não-eventualidade na prestação de trabalho.

A relação de poder, todavia, é sim um elemento essencial para a caracterização da espécie "assédio sexual por chantagem" – criminalizada no ordenamento jurídico brasileiro - uma vez que, nesta forma de assédio sexual, é imprescindível uma subordinação hierárquica que justifique o temor da vítima pela eventual retaliação, no caso de recusar a proposta de prática de conduta com natureza sexual.

Logo, se comumente há uma relação de poder entre assediante e assediado, esta relação não é um requisito essencial para sua configuração, pois o assédio sexual trabalhista poderá ocorrer também entre colegas de serviço, entre empregado e cliente da empresa e até mesmo entre empregado e empregador, figurando este último como vítima.

Como já afirmamos e aqui reiteramos, o assédio sexual deve ser encarado cientificamente como um efetivo problema de discriminação e de cerceio da liberdade sexual, e não simplesmente como uma mera questão de abuso de poder.

Não obstante a legislação brasileira (Art. 216-A do Código Penal) somente considerar crime o assédio sexual laboral por chantagem, a tutela civil (incluindo a trabalhista) pode ser invocada para as outras formas com, por exemplo, a responsabilidade patrimonial dos culpados, a despedida por justa causa do assediador, entre outras conseqüências.

08.01.Notoriedade pública e assédio sexual.

Não se sabe se por uma infeliz coincidência, o fato é que a notoriedade pública parece atrair acusações de assédio sexual

Assim é que o presidente norte-americano Bill Clinton foi acusado, duplamente, de assédio sexual, primeiro por Paula Jones, depois por Mônica Lewinsky. Da mesma forma, Wanderley Luxemburgo, quando ainda era técnico do time do Palmeiras, foi acusado por uma manicure de assediá-la sexualmente. Até mesmo o magistrado Clarence Thomas, quando indicado para juiz da Suprema Corte norte-americana, foi acusado por uma advogada, Anita Hill, de tê-la assediado.

O que há de tão especial com os exercentes de cargos públicos ou funções que dão uma notoriedade para que sejam objeto tantas denúncias?

Para nós, a questão é que as notoriedade pública é, indubitavelmente, uma "faca de dois gumes".

Isto porque a busca da preservação da imagem de "pessoas públicas" pode se constituir em uma "tentação" para aqueles que, de má-fé, pretendem deturpar a reputação alheia ou apenas chantagear tais ilustres cidadãos, numa espécie de assédio às avessas.

Por outro lado, não se pode negar que o exercício de funções com um "aparente poder" pode despertar prepotência até então desconhecida no indivíduo, causando lhe efetivas tendências assediadoras, como se as demais pessoas – em especial as que lhe servissem - fossem apenas mais alguns instrumentos da efetivação de seu poder.

Por tais circunstâncias, processos judiciais envolvendo figuras públicas devem exigir do julgador redobrada atenção, evitando-se julgamentos prévios e, principalmente, influências da chamada " imprensa marrom ", que parece se deliciar com este tipo de escândalo.

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Sobre o autor
Rodolfo Pamplona Filho

juiz do Trabalho na Bahia, professor titular de Direito Civil e Direito Processual do Trabalho da Universidade Salvador (UNIFACS), coordenador do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito Civil da UNIFACS, mestre e doutor em Direito do Trabalho pela PUC/SP, especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Assédio sexual:: questões conceituais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 704, 9 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6826. Acesso em: 26 abr. 2024.

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