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A propriedade privada nas ilhas costeiras brasileiras

10/06/2005 às 00:00

Resumo:


  • Propriedade imóvel privada no Brasil tem origem em desmembramento do patrimônio público.

  • Ordenações Filipinas estabeleciam que as ilhas "adjacentes mais chegadas ao Reino" eram propriedade do Patrimônio Real.

  • Decreto-Lei n° 710/38 e Decreto-Lei n° 9.740/46 mantiveram as ilhas marítimas no patrimônio público federal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

             Para a análise da dominialidade das ilhas costeiras brasileiras, faz-se necessário ter presente a história da propriedade pública e privada no Brasil. Confiro.

            Quando o Brasil foi descoberto, o Rei de Portugal, como descobridor, adquiriu sobre todo o território o título originário de propriedade. Investido deste senhorio, o descobridor, mediante cartas de sesmaria expedidas pelos donatários das capitanias hereditárias, capitães-mores e vice-reis, passou a doar terras, constituindo o domínio privado no território nacional.

            Esse regime de sesmarias vigeu da Descoberta até a Independência do Brasil em 1822, momento em que foi extinto e abriu-se um hiato na legislação sobre terras que se prolongou até 1850, desenvolvendo-se no intervalo a progressiva ocupação do solo sem qualquer título, mediante a simples tomada de posse.

            Em 18 de março de 1850, adveio a Lei n° 601, e, posteriormente, seu Regulamento n° 1.318, de 30 de janeiro de 1854, os quais legitimaram todas as aquisições pela posse efetivadas até então sobre terras de domínio público, desde que estivessem devidamente registradas no livro da Paróquia Católica, o chamado "registro do vigário". Outrossim, estabeleceram que, a partir de então, quaisquer terras públicas só poderiam ser adquiridas por particular através da compra.

            Analisando esse breve histórico, a primeira conclusão a que se chega é que não há propriedade imóvel privada no Brasil que não tenha origem em desmembramento do patrimônio público.

            Levando em conta uma tal afirmação, passo à análise do contexto legal em que as ilhas marítimas de nosso país estão inseridas.

            Partindo do pressuposto que todas as terras brasileiras eram públicas em sua origem, assim eram as ilhas do nosso território. A primeira norma que se tem conhecimento a viger no Brasil tratando especificamente sobre a propriedade das ilhas brasileiras são as Ordenações Filipinas (1603-1916). Estas trazem em seu Livro II, que trata "Dos Direitos Reaes", em seu Título XXVI, n° 10, que era propriedade do Patrimônio Real as ilhas "adjacentes mais chegadas ao Reino" (note-se que "Dos Direitos Reaes" não refere-se ao que se entende hoje por "direitos reais", como pode parecer a primeira vista, mas, sim, refere-se aos direitos imperiais, do rei).

            As Constituições Brasileiras foram inconstantes no tratamento do assunto. Enquanto a Carta Magna de 1824 silenciou sobre o assunto, este veio à tona, por via indireta, quando da promulgação da Lei Maior de 1891, que distava - Art 64. Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. Parágrafo único. Os próprios nacionais, que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estiverem situados.

            Ou seja, ao instituir uma república federativa no Brasil (em contraposição ao anterior Estado monárquico e unitário), a Carta Constitucional de 1981 estabeleceu que as terras nacionais que eram indispensáveis para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais seriam de domínio da União, restando todas as demais à dominialidade dos Estados recém-criados. Contudo, tal regra não foi nada clara quanto aos critérios para determinação da dispensabilidade das terras para os referidos fins. Dessa forma, surgiu grande divergência à época da promulgação da Carta acerca do domínio de certas terras, dentre elas, notadamente, as ilhas marítimas. A meu ver, por maior que pareça a importância e as conseqüências trazidas por tal regra, tem-se que, na sua aplicação, ela acabou se apresentando inócua, permanecendo indefinidos quais eram os bens de cada ente federativo. Contudo, havia uma certeza - como permaneciam em vigor as Ordenações Filipinas, as ilhas marítimas, que antes eram do Patrimônio Real, agora passavam a compor o patrimônio público, seja federal, seja estadual.

            Em 1916, com o advento do Código Civil, foram revogadas expressamente as Ordenação referidas, não havendo qualquer disposição nessa nova lei a substituir a ordem anterior acerca da propriedade das ilhas. Contudo, não há razão para se entender que, então, as ilhas marítimas deixaram de compor o patrimônio público.

            Pelo contrário, embora as Constituições de 1934, 1937 e 1946 tenham restado totalmente silentes acerca das ilhas marítimas, apenas tratando das ilhas fluviais e lacustres, advieram, em 17 de setembro de 1938, o Decreto-Lei n° 710, dispondo sobre a reorganização da Diretoria de Domínio da União, e em 5 de setembro de 1946, o Decreto-Lei n° 9.740, dispondo sobre os bens imóveis da União, os quais não só foram claros em manter no patrimônio público as ilhas marítimas que antes eram do Patrimônio Real, como ainda acabaram definitivamente com a celeuma de décadas acerca de à qual ente federativo caberia a sua dominialidade. Dista o artigo 1° do Decreto-Lei n° 9.740/46-

            Art. 1º Incluem-se entre os bens imóveis da União:

            ...................

            d) as ilhas situadas nos mares territoriais ou não, se por qualquer título legítimo não pertencerem aos Estados, Municípios ou particulares;

            ...................

            j) os que foram do domínio da Coroa;

            .........................................................................................................................

            (grifei)

            Seguindo, a Lei Maior de 1967 foi a primeira Constituição brasileira a tratar expressamente acerca das ilhas marítimas. Assim dispôs em seu artigo 4° -

            Art 4º - Incluem-se entre os bens da União:

            ...................

            II - os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, que sirvam de limite com outros países ou se estendam a território estrangeiro, as ilhas oceânicas, assim como as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países;

            ...................

            V - os que atualmente lhe pertencem.

            ......................................................................................................................

            (grifei)

            Note-se que a Carta Magna de 1967 referiu-se a "ilhas oceânicas", em vez de "ilhas marítimas". Por causa disso, instaurou-se, e ainda hoje há, uma forte discussão sobre se a expressão "ilha oceânica" encontrava-se no dispositivo supracitado no seu sentido técnico-geográfico, ou apenas numa alusão genérica a todas as ilhas marítimas, posto que sinônimos os termos "oceano" e "mar". Neste ponto, tem-se o entendimento do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal firmando posição por aquele primeiro sentido da expressão, conforme voto condutor do julgamento do RE 101.037/SP, de relatoria do Ministro FRANCISCO REZEK, acordado por unanimidade, em 06/03/1985, que segue -

            ...................

            A tese ora prevalente na espécie tem apoio na abordagem técnica de um dos mais conhecidos e respeitados geógrafos do Brasil neste século, Aroldo de Azevedo; a quem se reporta, concordante, não menos ilustre expoente do direito administrativo, Hely Lopes Meirelles, quando afirma:

            "As ilhas marítimas classificam-se em costeiras e oceânicas, Ilhas costeiras são as que resultam do relevo continental ou da plataforma submarina; ilhas oceânicas são as que se encontram afastadas da costa e nada têm a ver com o relevo continental ou com a plataforma submarina."

            (Direito Administrativo Brasileiro; S. Paulo, RT, 1983, p. 451).

            Observo que essa distinção, fundada em critérios geográficos, tem trânsito na literatura jurídica desde muito antes da promulgação da lei maior de 1967. Sérgio de Andréa Ferreira revela que, já em 1899, Carlos de Carvalho, no seu Direito Civil Recopilado, deixa ver a diferença entre ilhas costeiras e ilhas afastadas do litoral, agregando as duas espécies no conceito genérico de ilhas marítimas (S.A. Ferreira, O domínio das ilhas marítimas no direito brasileiro; 59-60, R.D.P. (1981), p. 82).

            .....................................................................................................................................

            Ou seja, no entendimento do voto condutor acima, a Constituição Federal de 1967 tratou o assunto em seus termos técnicos, sendo as ilhas marítimas gênero, do qual as ilhas costeiras (ou adjacentes) e as ilhas oceânicas (ou pelágicas) são espécie - aquelas são as ilhas que se situam na plataforma continental, portanto dentro do mar territorial de 200 milhas; enquanto estas são as que exsurgem do fundo do alto-mar, ampliando o mar territorial do continente ou possuindo seu próprio mar territorial.

            Contudo, a meu ver tal, essa discussão acerca do nível de tecnicidade das expressões utilizadas pela Constituição Federal de 1967 foi alvo de exagerada atenção. Isso porque, conforme se percebe da redação do artigo 4° da Lei Maior de 1967, seu inciso V determina claramente que seriam bens da União também os que já lhe pertenciam. Dessa forma, tendo em vista que, conforme já exposto, todas as ilhas marítimas (o que inclui tanto as costeiras como as oceânicas) já eram da União quando da promulgação da Carta Magna de 1967, estas permaneceram o sendo. Assim, para saber da propriedade da União sobre as ilhas marítimas, desinteressa qual a extensão da expressão "ilhas oceânicas" no inciso II do artigo mencionado, posto que, até na hipótese mais restrita do termo, tal inciso traria apenas um reforço da dominialidade federal sobre essas ilhas já garantida pelo inciso V do mesmo artigo.

            Por fim, a Constituição Federal de 1988 foi expressa, em seu artigo 20, inciso IV, em manter no patrimônio da União todas as ilhas marítimas.

            Esse é o panorama da propriedade nas ilhas costeiras e oceânicas brasileiras.

            Um tema afeto a esse assunto, recorrente nos Tribunais Federais brasileiros, é a usucapião de imóveis nas ilhas costeiras, mormente nas capitais brasileiras situadas nesses locais –Florianópolis/SC, Vitória/ES e São Luís/MA (* Ver Nota do Editor). A jurisprudência tem sido, em regra, favorável à concessão da usucapião, tendo por base a idéia de que a Constituição de 1967 não previa expressamente as ilhas costeiras como propriedade da União, nem de qualquer outro ente federativo – assim, quem comprova a posse mansa e pacífica do bem pelo prazo previsto no antigo Código Civil Brasileiro, até a promulgação da Constituição de 1988, tem obtido êxito na demanda. Porém, como já referido, tendo em vista que toda propriedade imóvel privada no Brasil tem origem em desmembramento do patrimônio público, e que todas as ilhas marítimas (oceânicas e costeiras) sempre fizeram parte do mesmo - antes pertencendo ao Patrimônio Real, depois à União -, a conclusão a que se chega é a de que, inversamente à tendência atual da jurisprudência pátria, não há qualquer possibilidade de ocorrer usucapião sobre as ilhas marítimas brasileiras, sem a comprovação de anterior desmembramento do imóvel pretendido do patrimônio público, face à carência de um dos requisitos essenciais à usucapião - a res habilis.

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            Com efeito, são requisitos necessários para a declaração da usucapião a posse ad usucapionem e a res habilis. Em relação a este requisito, tem-se que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 183, parágrafo 3°, dispõe que não podem ser adquiridos por usucapião os imóveis públicos. Anteriormente a ela, o Código Civil já vedava a apropriação de bens públicos por usucapião, ao prever em seu artigo 67 a inalienabilidade de tais bens, conforme pacífica jurisprudência a respeito (Súmula STF n° 340). E antes mesmo desse Código, como já referido, a Lei n° 601/1850 já estabelecia que quaisquer terras públicas só poderiam ser adquiridas por particular através da compra. Ou seja, no mínimo desde a Lei n° 601, de 18 de março de 1850, não é possível o usucapião de terras públicas. Dessa forma, havendo carência de um dos requisitos essenciais à usucapião - res habilis -, resta despicienda a análise do outro, sendo as pretensões nesse sentido totalmente impróprias.

            Em conclusão a todo o explanado, é válido mencionar a grande dificuldade que se tem na compreensão do fenômeno da propriedade pública e privada no Brasil e suas implicações, não por qualquer outro motivo, senão pela enorme complexidade e obscuridade da legislação brasileira, que, assim como no caso em tela, se apresenta em tantas outras áreas do Direito pátrio.


RESUMO

            1. Quando o Brasil foi descoberto, o Rei de Portugal, como descobridor, adquiriu sobre todo o território o título originário de propriedade. Dessa forma, não há propriedade imóvel privada no Brasil que não tenha origem em desmembramento do patrimônio público.

            2. A primeira norma que se tem conhecimento a viger no Brasil tratando especificamente sobre a propriedade das ilhas brasileiras são as Ordenações Filipinas (1603-1916), que trazem em seu Livro II, que trata "Dos Direitos Reaes", em seu Título XXVI, n° 10, que era propriedade do Patrimônio Real as ilhas "adjacentes mais chegadas ao Reino".

            3. O Decreto-Lei n° 710/38 e o Decreto-Lei n° 9.740/46 foram claros em manter no patrimônio público federal as ilhas marítimas que antes eram do Patrimônio Real.

            4. As Constituições Brasileiras foram inconstantes no tratamento das ilhas marítimas, gênero que possui como espécies as ilhas oceânicas e as ilhas costeiras. A Lei Maior de 1967 foi a primeira Constituição brasileira a tratar expressamente do assunto (art. 4°, II), o que fez mantendo-as no patrimônio da União, da mesma forma que procedeu em relação a todos os bens que já eram deste ente (art. 4°, V). Hoje, a Carta Magna de 1988 é expressa preservar tais ilhas no patrimônio da União (art. 20, IV), ressalvadas as que, por título legítimo, já pertenciam aos Estados, Municípios ou particulares.

            5. Tendo em vista que toda propriedade imóvel privada no Brasil tem origem em desmembramento do patrimônio público, e que todas as ilhas marítimas (oceânicas e costeiras) sempre fizeram parte do mesmo - antes pertencendo ao Patrimônio Real, depois à União -, não há qualquer possibilidade de ocorrer usucapião sobre as ilhas marítimas brasileiras, sem a comprovação de anterior desmembramento do imóvel pretendido do patrimônio público.


            (*) Nota do Editor

            A Emenda Constitucional nº 46, de 5 de maio de 2005, alterou a redação do art. 20, IV, da Constituição Federal, retirando do patrimônio da União as ilhas costeiras que contenham sede de Municípios, com exceção das áreas afetadas ao serviço público e à unidade ambiental federal.

            Redação anterior

            Nova redação

Art. 20. São bens da União:
.......................................

            IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as áreas referidas no art. 26, II;

            IV as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II;

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Sobre o autor
Ricardo Wey Rodrigues

Funcionário do TRF da 4ª Região – Graduado em Direito pela UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Ricardo Wey. A propriedade privada nas ilhas costeiras brasileiras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 705, 10 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6861. Acesso em: 27 dez. 2024.

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