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A estrutura conceitual do delito e o finalismo

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15/06/2005 às 00:00
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4-Teorias Intermediárias

            A evolução do natural-causalismo para o finalismo não se deu de forma abrupta. Medeia uma fase de transição representada pelas teorias social da ação e psicológico-normativa da culpabilidade.

            A teoria social da ação, ou soziale handlungslehre, "concebida inicialmente por E. Schmidt, como forma de aprimorar o conceito naturalístico de ação de von Liszt, partiu para incorporar igualmente o finalismo de Welzel, mas, por considerar que este não esgotava todas as condutas jurídico-penalmente relevantes, findou por unificá-las todas sob a capa larga da ‘relevância social.’" (58)

            A citada teoria "recusa-se a entender a ação como mero fenômeno fisiológico, sob o ponto de vista das ciências naturais. A ação, para o direito penal, não pode se limitar a ser somente modificação no mundo físico. É um conceito valorado, posto que ela somente existe no meio social. É uma realidade que, em síntese, tem basicamente, significação social." (59)

            Com efeito, "a teoria social da ação surgiu como uma via intermediária, por considerar que a direção da ação não se esgota na causalidade e na determinação individual, devendo ser questionada a direção da ação de forma objetivamente genérica." (60)

            Um dos mais marcantes aspectos da teoria social da ação reside no fato de que "a partir da idéia de que o tipo legal abarca sempre uma ação ou omissão anti-social, decorre uma importante conseqüência: se o aspecto social integra o fato típico, para que o agente pratique uma infração penal é preciso que, além da vontade de realizar todos os elementos contidos na norma penal, tenha também a intenção de produzir um resultado socialmente relevante" (61) de modo que "a ação socialmente adequada está desde o início excluída do tipo penal, porque se realiza dentro do âmbito de normalidade social, ao passo que a ação amparada por uma causa de justificação só não é crime, apesar de socialmente inadequada, em razão de uma autorização especial para a realização da ação típica." (62)

            Parte-se, portanto, do raciocínio de que "como o Direito Penal só comina pena as condutas socialmente danosas e como socialmente relevante é toda conduta que afeta a relação do indivíduo para com o seu meio, sem relevância social, não há relevância jurídico-penal. Só haverá fato típico, portanto, segundo a relevância social da ação" (63), não se podendo, porém, "confundir adequação social com o princípio da insignificância" (64).

            A teoria social da ação situa-se, conceitualmente, entre a teoria causalista e o finalismo. Da teoria causalista aproxima-se "enquanto ambas entendem a conduta como produção de um resultado (modificação do mundo físico, para a última; alteração do mundo circundante social, para a primeira, causado pela vontade do agente. E ainda se aproximam porque em ambas as doutrinas basta a simples voluntariedade, não integrando o contexto da ação o conteúdo do querer do agente, isto é, o que o agente quis no momento da ação." (65)

            Mas, esclarece Luiz Luisi, há uma distinção entre estas teorias materializada no fato de que para os defensores da teoria naturalista a conduta é vista como "mera realidade físico-psicológica, sem qualquer matiz axiológico, enquanto que os teóricos da doutrina social da ação a vêem como uma realidade valorada." (66)

            A teoria psicológico-normativa da culpabilidade precede o finalismo, que surgiu na década de trinta, e tem seu marco nos estudos de Reinhardt Frank, no ano de 1907.

            O contexto histórico do período sob o prisma jurídico-filosófico é sintetizado por Cezar Roberto Bitencourt, verbis: "A elaboração normativa da culpabilidade produziu-se no contexto cultural da superação do positivismo-naturalista e sua substituição pela metodologia neokantiana do chamado conceito neoclássico de delito. Sintetizando, em toda a evolução da teoria normativa da culpabilidade ocorre algo semelhante ao que aconteceu com a teoria do injusto. No injusto, naquela base natural-causalista, acrescentou-se a teoria dos valores; ao positivismo do século XIX, somou-se simplesmente o neokantismo da primeira metade do século XX. Na culpabilidade, a uma base naturalista-psicológica acrescenta-se também a teoria dos valores, primeiro com Frank, de forma vaga e difusa, posteriormente com maior clareza, com os autores já citados. Com isso, se superpõe na culpabilidade um critério de caráter eticizante e de nítido cunho retributivo." (67)

            Esta teoria representa a exata transição entre a teoria psicológica e a teoria normativa dita "pura", na medida em que, embora mantenha dolo e culpa na culpabilidade, não mais os considera como exaurintes da culpabilidade, ou seja, não são mais a própria culpabilidade, mas apenas seus componentes. Além disso, o dolo e a culpa já não são exclusivamente naturais, são valorativos. O dolo para a teoria psicológico-normativa é, portanto, normativo (68), aproximando-se, como ressalta Luiz Flávio Gomes, do denominado "dolus malus." (69)

            Insere-se a exigibilidade de conduta diversa (70), passando a culpabilidade a ser "reprovabilidade do ato praticado", de modo que "para ser culpável não basta que o fato seja doloso ou culposo, mas é preciso que, além disso, seja censurável o autor." (71)


5- Teorias do Dolo e da Culpa

            As teorias do dolo e da culpa relacionam-se com a disciplina do erro no âmbito do direito penal e sofreram influência com a adoção do finalismo. Tanto as teorias do dolo como as da culpabilidade têm por pressuposto um dolo normativo, e, por conseguinte, somente podem ser alvitradas a partir da adoção da teoria psicológico-normativa da culpabilidade. (72)

            A teoria extremada do dolo tem por conseqüência uma tratativa unificada do erro de tipo e do erro de proibição. Como o dolo faz parte da culpabilidade, nele estando a consciência da ilicitude, exista erro de tipo ou de proibição (inevitáveis), será sempre excluído o dolo, podendo haver a punição pelo delito culposo, se houver. (73) De fato, haja erro sobre os elementos que constituem o tipo ou sobre a licitude da conduta, restará sempre afastado o dolo, e, portanto, a culpabilidade dolosa, remanescendo intacta a possibilidade da culpabilidade culposa.

            O grande problema detectado na teoria extremada reside no fato de que não são todos os tipos que admitem modalidade culposa.

            Assim, a teoria limitada do dolo "substitui o conhecimento atual da ilicitude pelo conhecimento potencial" (74), ou equiparou aquela à "cegueira jurídica" ou "inimizade ao direito" (75). Esta última construção, atribuída a Mezger, sofreu severas críticas por se distanciar das conquistas do direito penal do fato e da culpabilidade, permitindo uma punição pela conduta de vida, em verdadeiro direito penal do autor.

            Em termos práticos, a tratativa conferida pela teoria limitada do dolo ao erro de tipo e ao erro de proibição é idêntica a da teoria extremada, ou seja, são tratados sem distinção quando à conseqüência: exclusão do dolo e da culpabilidade.

            Fala-se, também, em uma teoria modificada do dolo, sobre a qual disserta Luiz Flávio Gomes, in verbis: "Hoje, na dogmática penal européia, no entanto, já se fala numa nova teoria limitada do dolo, que consiste basicamente no seguinte: parte-se do pressuposto de que a consciência da ilicitude faz parte do dolo; assim, o erro de proibição inevitável exclui a consciência da ilicitude e, em conseqüência, o dolo; este faz parte da culpabilidade, logo, fica excluída, também, a culpabilidade, bem como a responsabilidade penal; se evitável o erro de proibição, o agente será punido com a pena do crime doloso, podendo ser atenuada. Aqui reside a distinção entre esta teoria modificada e a tradicional teoria limitada do dolo, pois, para esta, o erro evitável implica a punição do agente por crime culposo" (76).

            Com o surgimento do finalismo e frente às críticas que contra elas se dirigiram, não resistiram às teorias do dolo, cedendo passo às teorias da culpabilidade (extremada e limitada). (77)

            Com o transplante do dolo para o tipo, restando a consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa insertos na culpabilidade, estabelece-se uma dicotomia no tratamento do erro conforme seja de tipo ou de proibição, a respeito da qual assertoa Cezar Roberto Bitencourt: "Os efeitos do erro agora, com esta nova estrutura da conduta punível, dependerão do seu objeto. Se o erro incidir sobre elemento intelectual do dolo, certamente o excluirá, chamando-se erro de tipo, por recair sobre um dos elementos constitutivos do tipo penal. No entanto, se, nas circunstâncias, o erro incidir sobre potencial consciência da ilicitude, o dolo continuará intacto, afastando, porém, a culpabilidade, posto que ela é elementos constitutivos desta. Este erro sobre a ilicitude chama-se erro de proibição." (78)

            Desta forma, o erro de tipo "vicia o elemento intelectual do dolo –a previsão- impedindo que o dolo atinja corretamente todos os elementos essenciais do tipo. Daí porque essa forma de erro exclui sempre o dolo, que agora está no tipo, e não na culpabilidade. Porém, a exclusão do dolo, que é elemento estrutural da ação típica, deixa intacta a culpabilidade, permitindo a configuração do crime culposo, se houver previsão legal" (79), vale dizer, se houver tipo culposo. Esta conformação leva Luiz Luisi a afirmar que o erro de tipo "é, bem vistas as coisas, uma excludente de tipicidade." (80)

            Já o erro de proibição "anula a consciência da ilicitude que, como se viu, está agora situada na culpabilidade. Por isso é que o erro de proibição exclui, quando inevitável, a culpabilidade. E, como não há crime sem culpabilidade, esta forma de erro impede a condenação, seja por dolo, seja por culpa. Se o erro for evitável atenua a pena, mas a condenação se impõe." (81)

            Para a teoria extremada da culpabilidade, "sobre toda espécie de descriminante putativa, seja sobre os limites autorizadores da norma (por erro de proibição), seja incidente sobre situação fática pressuposto de uma causa de justificação (por erro de tipo), é sempre tratada como erro de proibição." (82)

            É neste ponto que reside a discrepância com a teoria limitada da culpabilidade, pois, "para a teoria limitada há distinção entre duas espécies de erro: uma, a que recai sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação, a que considera tratar-se de erro de tipo permissivo; outra, a que recai sobre a existência ou a abrangência da causa de justificação, a que considera erro de proibição" (83). Neste caso, sendo erro de tipo permissivo, permite-se a punição por crime culposo, se evitável, ao passo que no erro de proibição, se inevitável, exclui a culpabilidade, e, se evitável, implica atenuação da pena. (84)

            O Código Penal adotou a teoria limitada da culpabilidade. (85)


6- Críticas as teorias da ação e da culpabilidade

            Nenhuma das teorias analisadas está indene de críticas. A teoria causal-naturalista da ação apresenta falhas em relação aos crimes omissivos e aos delitos culposos, pois no primeiro caso falta relação de causalidade, e no segundo, o fator decisivo do injusto é o desvalor da ação. (86)

            O grande defeito da teoria causalista reside na desconsideração da adequação típica da intenção. Como ressalta Fernando Capez: "dependendo do elemento subjetivo do agente, ou seja, de sua finalidade, a qualificação jurídica do crime muda completamente (crime doloso, crime culposo ou crime preterdoloso). Não se pode, em vista disso, desconhecer que a finalidade, o dolo e a culpa estão na própria conduta. Também neste caso, pela mera observação externa, alheia ao que se passou na mente do autor, não se sabe qual foi o crime praticado." (87)

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            De fato, as dificuldades restam insuperáveis também em relação à tentativa, já que neste caso a ação é dimensionada não pela sua exterioridade, mas, sobretudo, pela intenção. A constatação de uma lesão leve pode ensejar o reconhecimento de uma simples lesão consumada, de uma lesão grave tentada ou de um homicídio tentado. A aferição do delito efetivamente perpetrado está, na hipótese, inarredavelmente associada à consideração da intenção do agente.

            A teoria social da ação apresenta a dificuldade de valer-se de um conceito de "relevância social" que é de difícil determinação. Se o critério para estabelecimento do paradigma de relevância social fica a cargo da lei, então na prática a teoria social nada acresceria ao finalismo, pois tudo se resolveria na tipificação da conduta, onde estaria incluída a avaliação da relevância social. Por outro lado, se o critério fica em mãos do julgador, abre-se espaço para um subjetivismo incompatível com o princípio da isonomia legal, pois não tardaria a vermos julgamentos de fatos semelhantes de forma diametralmente conforme se operasse em uma ou outra região do País ou do mesmo Estado, quiçá.

            Não é admissível que dentro da base geográfica de aplicação da lei penal se chegue a aplicações totalmente destoantes de um mesmo dispositivo quando em voga situações idênticas. A relevância social reflete-se na maior ou menor reprovabilidade da conduta, devendo, portanto, ser avaliada na seara da culpabilidade, a fim repercutir na dosimetria da reprimenda. A aplicação da teoria social da ação, com exclusão da tipicidade conforme fosse o juízo de relevância, simplesmente poderia afastar a incidência da lei penal a fatos que em outros locais, no mesmo tempo, fossem considerados típicos, ilícitos e culpáveis.

            Neste contexto, se me afigura absolutamente correto o pronunciamento de Fernando Capez quando afirma que "parece um tanto vago e carente de critérios hermenêuticos seguros afirmar que um comportamento descrito em um tipo penal não pode ser considerado típico porque não afronta senso de justiça de determinado grupo social. O tal elemento implícito, que seria o dano de relevância social, parece prescindir de precisão dogmática, faltando um método ontológico seguro para estabelecer padrões de segurança na distribuição da jurisdição penal." (88)

            Quanto ao finalismo, há o problema dos delitos culposos, onde não se pode falar em uma ação finalista voltada ao resultado delituoso. Tal crítica, contudo, não encontra base segura.

            A respeito, pertinente o magistério de Francisco de Assis Toledo, verbis: "Diante do exposto, parece-nos rematado equívoco (e este é o argumento-chave de alguns críticos) pretender-se que a teoria finalista falharia nos crimes culposos. Não perceberam os que formulam esta crítica que também aqui, embora de modo diferente, a finalidade da ação humana desempenha papel fundamental. Considere-se, inicialmente, que, se as normas não podem proibir, ou ordenar, meros fenômenos físicos (a morte causada por uma faísca elétrica, por um caminhão sem freios), também nos crimes culposos (e com mais razão nestes) deve o ordenamento jurídico estar proibindo ou ordenando ações ou omissões, sob pena de se cindir por inteiro todo o arcabouço normativo do sistema. Depois, faça-se um exame menos superficial dos delitos culposos e se verá que, no centro de todos eles, está a inobservância de um dever de cuidado (fazer instalações elétricas de modo que possam expor ao perigo a vida de alguém; dirigir um caminhão sem freios) ou a violação de uma proibição (dirigir veículo sem a necessária aptidão), o que já constitui de si mesmo uma conduta voluntária na causa, portanto finalista." (89)

            Também Cezar Roberto Bitencourt observa que "nos crimes culposos, compara-se precisamente a direção finalista da ação realizada com a direção finalista exigida pelo Direito. O fim pretendido pelo agente geralmente é irrelevante, mas não os meios escolhidos ou a forma de sua utilização." (90)

            Luiz Luisi, de seu turno, defende a presença de uma ação finalista no tipo culposo a qual não é atingida por uma falta na sua execução. Diz ele, reportando-se a Welzel: "Em verdade, como foi corretamente assinalado, a assinalado, a ação finalista está presente no delito culposo. A finalidade não é um mero conceito abstrato que serve como base para a enunciação de um juízo. Ela tem existência real, já que deve ser representada na mente do agente, e deve ser querida. No delito culposo a execução da ação é precedida da representação, bem como da volição do fim atípico. E a ação se inicia, começa a ser executada em função deste fim. Portanto, existe basicamente, no delito culposo, a finalidade, não como um momento meramente normativo, mas como um dado efetivo de uma representação, e como conteúdo de uma volição. E, a finalidade ainda está presente, realmente, quando se inicia a execução efetiva da conduta. A rigor, é uma falta na execução de uma conduta finalista –falta esta não permitida pela ordem jurídica, mas efetivamente realizada- que faz com que o propósito perseguido não seja alcançado, ocorrendo em seu lugar, o evento lesivo. A ação finalista real, portanto, está presente efetivamente, e constitui o núcleo basilar do tipo culposo." (91)

            Mas não é qualquer ação finalista que interessa ao Direito Penal, e de fato a ação finalista presente no delito culposo é a que deveria ter sido evitada ou tomada para evitar um resultado contrário ao Direito (rectius: aos fins pretendidos pela norma penal secundária).

            Quanto às teorias da culpabilidade, as críticas, que já foram mencionadas no decorrer da análise de cada uma, advém, basicamente da dificuldade de sintetizar-se um conceito unificado de culpabilidade, envolvendo dolo e culpa (teoria psicológica e psicológico-normativa) e pela presença de um dolo híbrido (psicológico e normativo), o que conduziu Mezger à teoria da "conduta de vida".

            As teorias da culpabilidade que precederam ao finalismo e a teoria normativa pura da culpabilidade, em suas variantes, verbera Miguel Reale Júnior esbarram em três ordens de dificuldades, a saber: "Primeiramente por formularem um conceito binado ou ‘centauresco’ de culpabilidade; em segundo lugar por não determinarem qual o conteúdo da culpabilidade, diferenciando-o da antijuridicidade; e, por fim, pela inclusão ou não da consciência da ilicitude, pois alguns, ao incluí-la, acarretaram a exclusão da culpa do conceito de culpabilidade; outros, ao excluí-la, como Delitala e Bettiol, entraram em contradição com o caráter de reprovação, que constitui a essência da culpabilidade." (92)

            Estas críticas conduziram ao acolhimento do finalismo e da teoria normativa pura da culpabilidade.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A estrutura conceitual do delito e o finalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 710, 15 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6868. Acesso em: 26 abr. 2024.

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