3. DISCUSSÃO SOBRE A NATUREZA JURÍDICA DA TAXA DE INSCRIÇÃO EM CONCURSOS PÚBLICOS
Destaque-se, desde já, que estudos sobre as várias taxas e preços públicos existentes no direito brasileiro indicam que a definição de sua natureza jurídica é feita pelos tribunais de maneira casuística, embora mantidas as características elementares de cada um dos institutos. Nesse viés, relembra-se a inexistência de consenso doutrinário e jurisprudencial quanto à natureza jurídica dos valores de inscrição em concursos públicos, fato trazido no início da Consulta nº 850.498, de 27 de fevereiro de 2013, do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE/MG), que entendeu que a taxa de inscrição em concurso público constitui receita pública:
"Antes de adentrar no mérito, é importante destacar que não há entendimento pacificado no âmbito doutrinário e jurisprudencial acerca da natureza jurídica das taxas de inscrição em concursos públicos. Há duas correntes: uma sustentando que as taxas de inscrição possuem natureza tributária e outra em sentido diametralmente oposto negando-lhe a natureza tributária."
Neste sentido, importante decisão sobre o tema é a Consulta nº 850.498, do TCE/MG, cujo trecho foi citado acima, e que se destaca a seguir:
CONSULTA - CÂMARA MUNICIPAL - CONCURSO PÚBLICO - TAXA DE INSCRIÇÃO - RECEITA PÚBLICA - 1) RECOLHIMENTO - CONTA ÚNICA DA CÂMARA MUNICIPAL - VEDAÇÃO DE CAIXAS ESPECIAIS (ART. 56 DA LEI 4.320/64) - EXCEDENTE DA RECEITA PERTENCENTE AO ERÁRIO MUNICIPAL - 2) RECEITA ARRECADADA - UTILIZAÇÃO - PAGAMENTO DE SERVIÇOS PRESTADOS PARA REALIZAÇÃO DE CONCURSO - POSSIBILIDADE - CONDIÇÃO NECESSÁRIA - FIXAÇÃO DE VALORES NO EDITAL DE LICITAÇÃO E NO CONTRATO - 3) ADMINISTRAÇÃO E GERENCIAMENTO DA RECEITA - DELEGAÇÃO A EMPRESA PRIVADA - IMPOSSIBILIDADE - PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA E DA PRESTAÇÃO DE CONTAS. 1) O recolhimento dos valores recebidos a título de taxa de inscrição, destinados ao custeio das despesas efetuadas com a realização do concurso público para o provimento de cargo nos seus quadros, deve ser feito na conta única da Câmara Municipal, sendo vedada a criação de caixas especiais, nos termos do artigo 56 da Lei n. 4.320/64. Vale destacar que, caso o valor recolhido com as taxas de inscrição seja superior ao valor gasto com a realização do concurso, essa diferença pertencerá aos cofres municipais, em conformidade com os princípios orçamentários da unidade, da universalidade e do orçamento bruto. 2) A receita arrecadada pelo Poder Legislativo Municipal, proveniente de taxa de inscrição para Concurso Público, pode ser utilizada para pagamento dos serviços prestados pela empresa vencedora do processo licitatório para realização de concurso público, desde que os editais de licitação e os contratos especifiquem que a forma de remuneração da empresa contratada será fixa ou variável, em conformidade com o número de inscritos ou de acordo com as receitas auferidas com a inscrição dos candidatos. Além disso, o edital e o contrato devem estabelecer os valores globais e máximos da avença a ser firmada, com base na estimativa do montante a ser arrecadado com as inscrições, bem como devem conter uma cláusula estabelecendo que os valores recolhidos que superarem o previsto no contrato pertencerão aos cofres municipais.3) Não é possível delegar a administração e gerenciamento de recursos públicos provenientes da arrecadação de taxas de inscrição em concurso público a uma empresa privada contratada para a realização do concurso público, pois as taxas de inscrição constituem receitas públicas. Ademais, considerando que, em face do princípio da transparência, compete ao Poder Público prestar contas dos seus gastos, o depósito das taxas de inscrição direto na conta da contratada ofenderia o disposto no art. 14 da Lei Complementar n. 101/2000 e nos arts. 58 a 65 da Lei n. 4.320/64, uma vez que configuraria renúncia e omissão de receita, além de antecipação de pagamento à contratada pela prestação do serviço, desrespeitando as fases da realização da despesa. 4) Precedente: Consulta 837086 (29/08/2012). 5) Determina-se que seja dada ampla divulgação do conteúdo do voto condutor deste parecer, em especial, no site do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. (Grifo nosso)
Como se vê, o TCE/MG entende que o depósito dos valores destinados ao custeio das despesas efetuadas com a realização do concurso público para o provimento de cargos deve ser feito em conta única, de acordo com o princípio da unidade de tesouraria, estabelecido no art. 56 da Lei n.º 4.320, de 17 de março de 1964[5], que estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
Ademais, como se viu, entende o TCE/MG que o edital e o contrato devem estabelecer os valores globais e máximos da avença a ser firmada, com base na estimativa do montante a ser arrecadado com as inscrições, bem como devem conter uma cláusula estabelecendo que os valores recolhidos que superarem o previsto no contrato pertencerão aos cofres municipais.
A seguir, o TCE/MG esclarece não ser possível delegar a administração e gerenciamento de recursos públicos provenientes da arrecadação de taxas de inscrição em concurso público a uma empresa privada contratada para a realização do concurso público, pois as taxas de inscrição constituem receitas públicas.
Observe-se que o entendimento é que as ‘taxas de inscrição’ consistem em receitas públicas. Não se referiu o tribunal, entretanto, expressamente a taxa como espécie de tributo. Deste modo, em que pese aquele tribunal haver delineado o procedimento necessário à contratação de empresa terceirizada que realizará a gestão dos concursos, não enfrentou o questionamento central que se busca aprofundar neste estudo.
O Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público{C}[6] assim define a receita pública:
"São disponibilidades de recursos financeiros que ingressam durante o exercício orçamentário e constituem elemento novo para o patrimônio público. Instrumento por meio do qual se viabiliza a execução das políticas públicas, as receitas orçamentárias são fontes de recursos utilizadas pelo Estado em programas e ações cuja finalidade precípua é atender às necessidades públicas e demandas da sociedade. Essas receitas pertencem ao Estado, transitam pelo patrimônio do Poder Público, aumentam-lhe o saldo financeiro, e, via de regra, por força do princípio orçamentário da universalidade, estão previstas na Lei Orçamentária Anual – LOA. Nesse contexto, embora haja obrigatoriedade de a LOA registrar a previsão de arrecadação, a mera ausência formal do registro dessa previsão, no citado documento legal, não lhes retira o caráter de orçamentárias, haja vista o art. 57 da Lei nº 4.320, de 1964 (...)."
No sentir do TCE/MG, o depósito dos valores de inscrição não pode ser efetuado diretamente na conta da contratada, pois ofenderia o disposto no art.14 da Lei Complementar n.º 101, de 4 de maio de 2000{C}[7] e os arts. 58 a 65 da Lei n.º 4.320/64, uma vez que configuraria renúncia e omissão de receita, além de antecipação de pagamento à contratada pela prestação do serviço, desrespeitando as fases da realização da despesa.
Os artigos 58 a 65 acima mencionados se referem às fases da despesa e trazem as normas que disciplinam o empenho, a liquidação e a ordem de pagamento, sendo que cada etapa só pode se perfazer se a anterior tiver sido plenamente observada. Assim, o TCE/MG entende necessário que os valores recolhidos a título de inscrição em concursos públicos observem todas as fases de realização da despesa estabelecidas na Lei n. º 4.320/64.
4. SIMILARIDADE AO PEDÁGIO
Com vistas a aprimorar a discussão, vale introduzir no objeto de estudo deste trabalho a figura do pedágio, uma vez que possui similaridades com os valores cobrados a título de participação em concursos públicos.
Nesse desiderato, vale frisar que, conforme apontava Baleeiro (1977), na Constituição de 1946 ficava ressalvada a cobrança de taxas de pedágio destinadas exclusivamente à indenização das despesas de construção, conservação e melhoramento das estradas. Ou seja, havia, em alguma medida, a vinculação do produto da arrecadação dos pedágios.
Já no contexto da atual CR/88, apresenta-se o acórdão dado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 800, julgada em junho de 2014 e proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), tendo por objeto o Decreto 34.417/92, do Estado do Rio Grande do Sul, que autoriza a cobrança de pedágio na Rodovia Estadual RS/135 e o caracteriza como preço público, e não como taxa. O estudo desta decisão é interessante porque a cobrança do pedágio guarda semelhanças com os valores de inscrição em concursos públicos.
Na ADI n.º 800/14, sustenta o requerente que a cobrança de pedágio somente pode ser instituída por lei (princípio da legalidade estrita), já que se trata de taxa, que é espécie de tributo, e não de preço público, motivo pelo qual o referido decreto seria inconstitucional.
Dentre os fundamentos trabalhados na decisão, destacou-se o art. 150, V da CR/88, a seguir, que consiste na base constitucional do pedágio, e pode ser interpretado como taxa ou como preço público:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público;
O Ministro Teori Zavascki, Relator da ADI n.º 800/14, em seu voto, destacou que persiste antiga controvérsia acerca da natureza do pedágio:
Os que sustentam sua natureza tributária, da subespécie taxa, o fazem sob os seguintes fundamentos, essencialmente: (a) estar o pedágio referido na Constituição quando tratou das limitações ao poder de tributar; (b) constituir pagamento de um serviço específico ou divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição; (c) não ser cabível remunerar serviços públicos por meio outro que não o de taxa (Roque Antônio Carrazza. Curso de direito constitucional tributário financeiro e tributário. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 115. Também: Geraldo Ataliba; Aires Barreto. Pedágio federal. Revista de Direito Tributário, São Paulo, nº. 46, p. 90-96, out./dez. 1988).
Já os que sustentam tratar-se de preço público, com natureza contratual, o fazem com base nas seguintes considerações: (a) a inclusão no texto constitucional apenas esclarece que, apesar de não incidir tributo sobre o tráfego de pessoas ou bens, pode, excepcionalmente, ser cobrado o pedágio, espécie jurídica diferenciada; (b) não existir compulsoriedade na utilização de rodovias; e (c) a cobrança se dá em virtude da utilização efetiva do serviço, não sendo devida com base no seu oferecimento potencial."
(Ricardo Lobo Torres. Tratado de direito constitucional tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 486. Igualmente: Sacha Calmon Navarro Coêlho. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 308-309).
Apresentados os argumentos que defendem ser o pedágio taxa, e lado outro, preço público, o STF decidiu que se trata de preço público:
"7. Em suma, no atual estágio normativo constitucional, o pedágio cobrado pela efetiva utilização de rodovias não tem natureza tributária, mas sim de preço público, não estando, consequentemente, sujeita ao princípio da legalidade estrita.
8. Ante o exposto, julgo improcedente o pedido formulado nesta ação direta de inconstitucionalidade. É o voto." (Grifo nosso)
Entendeu ainda ser irrelevante a existência de via alternativa para o usuário trafegar, para que se caracterize como preço público:
"E, a despeito dos debates na doutrina e na jurisprudência, é irrelevante também, para a definição da natureza jurídica do pedágio, a existência ou não de via alternativa gratuita para o usuário trafegar. Essa condição não está estabelecida na Constituição. É certo que a cobrança de pedágio pode importar, indiretamente, em forma de limitar o tráfego de pessoas. Todavia, essa mesma restrição, e em grau ainda mais severo, se verifica quando, por insuficiência de recursos, o Estado não constrói rodovias ou não conserva adequadamente as que existem. Consciente dessa realidade, a Constituição Federal autorizou a cobrança de pedágio em rodovias conservadas pelo Poder Público, inobstante a limitação de tráfego que tal cobrança possa eventualmente acarretar. Assim, a contrapartida de oferecimento de via alternativa gratuita como condição para a cobrança de pedágio não é uma exigência constitucional. Ela, ademais, não está sequer prevista em lei ordinária. A Lei 8.987/95, que regulamenta a concessão e permissão de serviços públicos, nunca impôs tal exigência. Pelo contrário, nos termos do seu art. 9º, § 1º (alterado pela Lei 9.648/98), “a tarifa não será subordinada à legislação específica anterior e somente nos casos expressamente previstos em lei, sua cobrança poderá ser condicionada à existência de serviço público alternativo e gratuito para o usuário”." (Grifo nosso)
De acordo com a Suprema Corte, o elemento nuclear para distinguir taxa de preço público é o da compulsoriedade:
"Segundo a jurisprudência firmada nessa Corte, o elemento nuclear para identificar e distinguir taxa e preço público é o da compulsoriedade, presente na primeira e ausente na segunda espécie, como faz certo, aliás, a Súmula 545: “Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu”."
Dessa sorte, percebe-se que o elemento para se identificar e distinguir taxa e preço público seria o da compulsoriedade, presente no caso das taxas e ausente no caso dos preços públicos. Trazendo, analogicamente, a discussão para o tema trabalhado neste artigo, temos que os valores despendidos pelos candidatos a título de inscrição em concursos públicos não são compulsórios, uma vez que apenas se submetem ao seu pagamento aqueles que desejarem participar do processo seletivo correspondente.