4. SIMILARIDADE AO PEDÁGIO
Com vistas a aprimorar a discussão, vale introduzir no objeto de estudo deste trabalho a figura do pedágio, uma vez que possui similaridades com os valores cobrados a título de participação em concursos públicos.
Nesse desiderato, vale frisar que, conforme apontava Baleeiro (1977), na Constituição de 1946 ficava ressalvada a cobrança de taxas de pedágio destinadas exclusivamente à indenização das despesas de construção, conservação e melhoramento das estradas. Ou seja, havia, em alguma medida, a vinculação do produto da arrecadação dos pedágios.
Já no contexto da atual CR/88, apresenta-se o acórdão dado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 800, julgada em junho de 2014 e proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), tendo por objeto o Decreto 34.417/92, do Estado do Rio Grande do Sul, que autoriza a cobrança de pedágio na Rodovia Estadual RS/135 e o caracteriza como preço público, e não como taxa. O estudo desta decisão é interessante porque a cobrança do pedágio guarda semelhanças com os valores de inscrição em concursos públicos.
Na ADI n.º 800/14, sustenta o requerente que a cobrança de pedágio somente pode ser instituída por lei (princípio da legalidade estrita), já que se trata de taxa, que é espécie de tributo, e não de preço público, motivo pelo qual o referido decreto seria inconstitucional.
Dentre os fundamentos trabalhados na decisão, destacou-se o art. 150, V da CR/88, a seguir, que consiste na base constitucional do pedágio, e pode ser interpretado como taxa ou como preço público:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público;
O Ministro Teori Zavascki, Relator da ADI n.º 800/14, em seu voto, destacou que persiste antiga controvérsia acerca da natureza do pedágio:
Os que sustentam sua natureza tributária, da subespécie taxa, o fazem sob os seguintes fundamentos, essencialmente: (a) estar o pedágio referido na Constituição quando tratou das limitações ao poder de tributar; (b) constituir pagamento de um serviço específico ou divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição; (c) não ser cabível remunerar serviços públicos por meio outro que não o de taxa (Roque Antônio Carrazza. Curso de direito constitucional tributário financeiro e tributário. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 115. Também: Geraldo Ataliba; Aires Barreto. Pedágio federal. Revista de Direito Tributário, São Paulo, nº. 46, p. 90-96, out./dez. 1988).
Já os que sustentam tratar-se de preço público, com natureza contratual, o fazem com base nas seguintes considerações: (a) a inclusão no texto constitucional apenas esclarece que, apesar de não incidir tributo sobre o tráfego de pessoas ou bens, pode, excepcionalmente, ser cobrado o pedágio, espécie jurídica diferenciada; (b) não existir compulsoriedade na utilização de rodovias; e (c) a cobrança se dá em virtude da utilização efetiva do serviço, não sendo devida com base no seu oferecimento potencial." (Ricardo Lobo Torres. Tratado de direito constitucional tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 486. Igualmente: Sacha Calmon Navarro Coêlho. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 308-309).
Apresentados os argumentos que defendem ser o pedágio taxa, e lado outro, preço público, o STF decidiu que se trata de preço público:
"7. Em suma, no atual estágio normativo constitucional, o pedágio cobrado pela efetiva utilização de rodovias não tem natureza tributária, mas sim de preço público, não estando, consequentemente, sujeita ao princípio da legalidade estrita.
8. Ante o exposto, julgo improcedente o pedido formulado nesta ação direta de inconstitucionalidade. É o voto." (Grifo nosso)
Entendeu ainda ser irrelevante a existência de via alternativa para o usuário trafegar, para que se caracterize como preço público:
"E, a despeito dos debates na doutrina e na jurisprudência, é irrelevante também, para a definição da natureza jurídica do pedágio, a existência ou não de via alternativa gratuita para o usuário trafegar. Essa condição não está estabelecida na Constituição. É certo que a cobrança de pedágio pode importar, indiretamente, em forma de limitar o tráfego de pessoas. Todavia, essa mesma restrição, e em grau ainda mais severo, se verifica quando, por insuficiência de recursos, o Estado não constrói rodovias ou não conserva adequadamente as que existem. Consciente dessa realidade, a Constituição Federal autorizou a cobrança de pedágio em rodovias conservadas pelo Poder Público, inobstante a limitação de tráfego que tal cobrança possa eventualmente acarretar. Assim, a contrapartida de oferecimento de via alternativa gratuita como condição para a cobrança de pedágio não é uma exigência constitucional. Ela, ademais, não está sequer prevista em lei ordinária. A Lei 8.987/95, que regulamenta a concessão e permissão de serviços públicos, nunca impôs tal exigência. Pelo contrário, nos termos do seu art. 9º, § 1º (alterado pela Lei 9.648/98), “a tarifa não será subordinada à legislação específica anterior e somente nos casos expressamente previstos em lei, sua cobrança poderá ser condicionada à existência de serviço público alternativo e gratuito para o usuário”." (Grifo nosso)
De acordo com a Suprema Corte, o elemento nuclear para distinguir taxa de preço público é o da compulsoriedade:
"Segundo a jurisprudência firmada nessa Corte, o elemento nuclear para identificar e distinguir taxa e preço público é o da compulsoriedade, presente na primeira e ausente na segunda espécie, como faz certo, aliás, a Súmula 545: “Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu”."
Dessa sorte, percebe-se que o elemento para se identificar e distinguir taxa e preço público seria o da compulsoriedade, presente no caso das taxas e ausente no caso dos preços públicos. Trazendo, analogicamente, a discussão para o tema trabalhado neste artigo, temos que os valores despendidos pelos candidatos a título de inscrição em concursos públicos não são compulsórios, uma vez que apenas se submetem ao seu pagamento aqueles que desejarem participar do processo seletivo correspondente.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se, portanto, que, longe de ser unicamente acadêmica, a discussão sobre a natureza jurídica da taxa de inscrição em concursos públicos, se taxa ou preço público, possui repercussões práticas relevantes, visto que, se taxa, será necessário, para sua instituição, observar todos os procedimentos legislativos, bem como os princípios e as limitações ao poder de tributar, estabelecidos na Constituição Federal e na legislação pertinente.
Ainda que não haja consenso doutrinário e jurisprudencial sobre a categoria em que se encaixa a taxa de inscrição, persiste, no âmbito do Poder Executivo, a necessidade de adotar entendimentos orientadores da gestão dos concursos públicos. São indispensáveis definições que sirvam de norte para operacionalizar a contratação e pagamento das instituições responsáveis pela realização dos concursos, bem como o enfrentamento de questões como a possibilidade de delegar a administração e gerenciamento de recursos públicos provenientes da arrecadação dessas taxas de inscrição às empresas privadas contratadas.
Conforme demonstrado neste trabalho, o valor de inscrição em concurso público possui características que o assemelham ao pedágio, considerado pelo STF preço público, uma vez que não há compulsoriedade em seu pagamento, já que apenas aqueles que desejarem submeter-se ao processo seletivo deverão pagá-lo; a cobrança se dá apenas em virtude da utilização efetiva dos serviços prestados pela banca organizadora do concurso e não será devida com base no oferecimento potencial destes serviços.
Reafirme-se que o entendimento da Consulta nº 850.498 do TCE/MG veda, como visto, a delegação da administração e do gerenciamento de recursos públicos provenientes da arrecadação dos valores de inscrição em concurso público à empresa privada contratada para a realização do concurso público, pelo fato de constituírem receitas públicas. Entretanto, este entendimento não impede que, na linha do entendimento do STF sobre a natureza do pedágio na ADI n.º 800/14, a taxa de inscrição em concursos públicos seja considerada preço público, o que, além de mais adequado juridicamente, dispensa a necessidade de edição de lei e de observância às limitações ao poder de tributar previstas na CR/88.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Tributário na Constituição e no STF. 15ª Edição. Editora Método. SP. 2009. p.14 e 43.
BALEEIRO, Aliomar de Andrade. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973.
______. Direito tributário brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977. 632. p.
BRASIL, Código Tributário Nacional. (1966). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5172Compilado.htm. Acesso em: 30 de out. 2017.
______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 30 de out. 2017.
______. Supremo Tribunal Federal. Súmula 545. de 12 de dezembro de 1969. Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=2346. Acesso em 30 de out. 2017.
______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 800. Rio Grande do Sul. Julgada em junho de 2014. Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=800&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em 30 de out. 2017.
______. Tribunal de Contas da União. Processo TC-015.289/2004-7. Acórdãonº 532/2005. Plenário.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro, 2002.
MINAS GERAIS. Consulta do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Consulta nº 850.498. Relator Cons. Mauri Torres. 27. de fev. 2013.
MOURA, Márzio Ricardo Gonçalves de. Direito Tributário. Brasília: Vestcon, 2008.
Notas
1 II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
2 CTN: Art. 5º Os tributos são impostos, taxas e contribuições de melhoria.
3 Art. 4º A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la:
I - a denominação e demais características formais adotadas pela lei;
II - a destinação legal do produto da sua arrecadação.
4 REsp nº 740.967/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, DJ de 28/04/2006.
5 Art. 56. O recolhimento de todas as receitas far-se-á em estrita observância ao princípio de unidade de tesouraria, vedada qualquer fragmentação para criação de caixas especiais.
6 Disponível em: https://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/456785/CPU_MCASP+6%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o_Republ2/fa1ee713-2fd3-4f51-8182-a542ce123773
7 Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: (Vide Medida Provisória nº 2.159, de 2001) (Vide Lei nº 10.276, de 2001)
I - demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;
II - estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
§ 1º A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.
§ 2º Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso.
§ 3º O disposto neste artigo não se aplica:
I - às alterações das alíquotas dos impostos previstos nos incisos I, II, IV e V do art. 153. da Constituição, na forma do seu § 1º;
II - ao cancelamento de débito cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança.