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Comentário à Lei nº 11.051/2004

17/06/2005 às 00:00
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Em 29 de dezembro de 2004, foi publicada a Lei nº11.051, causando espécie ao setor empresarial brasileiro. A referida Lei, em seu artigo 14, prevê uma sutil mudança no artigo 32 da Lei nº 4.357/64, dispondo sobre aplicação de multa às pessoas jurídicas que, possuindo débito não garantido com a União e suas autarquias de Previdência e Assistência Social, por falta de recolhimento de tributos, distribuírem lucros aos seus sócios, quotistas, diretores ou a qualquer membro de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos ou, ainda, distribuírem ou pagarem bonificações a seus acionistas.

Tal multa já era prevista na Lei de 1964, mas, entretanto, não vinha sendo aplicada porque havia um entendimento no sentido de que a Constituição Federal de 1988 havia revogado o dispositivo.

O artigo 17 da Lei nº11.051, ao estabelecer nova redação para o art. 32, acima referido, determina que a multa aplicada não pode exceder a 50% do débito não garantido (antes, a multa tinha como base de cálculo o valor distribuído), o que, de certa forma, revigorou a lei antiga.

Assim, as pessoas jurídicas estão sujeitas à multa de 50% dos valores distribuídos e os diretores e demais membros da administração superior, à 50% do valor recebido, sempre limitado a 50% do valor do débito não garantido pela pessoa jurídica.

Por exemplo, considerando que determinado contribuinte possuísse débitos não garantidos com a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional no valor de R$ 1.000,00 e distribuísse bonificações no montante de R$ 15.000,00. Tal ocorrência resultaria em penalidade de R$ 7.500,00, conforme legislação anterior. Com a alteração da legislação, tal penalidade passa a ser limitada a 50% do valor do débito não garantido e, portanto, no exemplo demonstrado, a penalidade aplicada ao contribuinte, de R$ 7.500,00, teria que ser reduzida até atingir o montante de 50% do débito de R$ 1.000,00. Tal ocorrência resultaria em penalidade de R$ 500,00.

Questões surgem acerca da constitucionalidade da nova Lei. Ocorre que, ao limitar distribuição de lucros das sociedades empresárias, a Lei acaba por afrontar os princípios constitucionais relativos à livre iniciativa. Consoante se verifica do inciso IV, do art. 1º da CF, o regime econômico adotado pela República Federativa do Brasil é o da livre iniciativa. A mesma Carta Política, em seu capítulo que cuida dos princípios gerais da atividade econômica (art. 170 e seguintes), traz, em seu inciso IV, a livre concorrência, intrínseca ao regime econômico escolhido. E ainda, o parágrafo único, do art. 170, assegura o livre exercício de qualquer atividade econômica.

O regime capitalista se caracteriza pela livre iniciativa, que traz em seu bojo a proteção da propriedade privada, bem como a liberdade de empresa, a liberdade de lucro.

Em que pese o art. 174 da Constituição Federal elencar as funções do Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, o mesmo não está autorizado a intervir livremente na economia. O Estado pode elaborar leis de combate ao abuso do poder econômico e de proteção ao consumidor, o que por certo não é o caso da limitação da distribuição de lucros; utilizar-se de seu poder de polícia, incentivando o setor privado, por meio das agências financeiras oficiais de fomento, o que também não é o caso e, finalmente, lançar mão de seu poder de assunção direta da atividade econômica, quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou quando houver relevante interesse coletivo, nos termos do artigo 173, caput da CF, o que também não é o caso.

Certamente, a limitação da distribuição dos lucros das empresas não se insere no âmbito do poder de intervenção do Estado na economia, sendo, consequentemente, inconstitucional. Ademais, a garantia do débito para que se possa fazer a distribuição de lucros só poderia ser exigida para o fim de parcelamento do débito ou para apresentação de embargos do devedor na execução fiscal, conforme legislações específicas. Caso contrário estar-se-ia interferindo na liberdade de empresa, mais especificamente, na liberdade de lucro, assegurada pela Carta Magna.

E ainda, imperioso concluir que a limitação é mais um instrumento de coação do qual faz uso o Fisco para forçar o contribuinte a abrir mão de seus direitos e garantias individuais, tais como o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.


O que vem a ser o débito garantido?

Hoje em dia, a maioria das empresas possui débitos tributários em discussão perante o Judiciário. Muitas vezes esses débitos são inclusive lançados indevidamente pelo Fisco, o que enseja a discussão judicial de indigitada cobrança. Mas, para que possa embargar à execução, a empresa precisa obrigatoriamente prestar uma garantia ao Juízo. Segundo a nova lei torna-se obrigatório ter os débitos garantidos para não incidir nas hipóteses de multa pela distribuição de lucros e dividendos. Como ficaria por exemplo um caso de exceção de pré-executividade, que vem a ser um mecanismo de defesa do executado. Tal instrumento, desenvolvido pela doutrina e pela jurisprudência, não requer qualquer tipo de garantia do Juízo, propiciando ao executado sua oportunidade de defesa, sem constrição de seu patrimônio. Nesse caso o débito não estaria garantido, e a empresa teoricamente não poderia distribuir dividendos e lucros, em que pese estar se defendendo de uma execução infundada ou eivada de vícios que a tornam ineficaz ou inválida.

De outra banda, há ainda a questão da suspensão da exigibilidade de um tributo, prevista no art. 151 do CTN. Neste caso, o débito não foi pago em razão de liminar ou tutela antecipada que suspende sua exigibilidade, mas o débito existe e não está garantido. A interpretação literal da Lei leva à conclusão de que, não obstante o fato de o débito estar com sua exigibilidade suspensa, não há garantia ou caução prestada ao Fisco e por conseguinte estar-se-ia diante de uma situação em que o empresário, ao distribuir lucros, incidiria nas hipóteses de aplicação da multa. Em havendo qualquer débito da empresa, não importaria se há impugnação tempestiva do débito, ou se há liminar ou tutela antecipatória suspendendo sua exigibilidade, a empresa estaria impedida de distribuir lucros, sob pena de sanção pecuniária.

No caso de a empresa optar por programa de parcelamento da dívida, a lei não tem o condão de aplicar a sanção pecuniária à empresa que vier a distribuir lucros, dividendos ou bonificações.

O Código Tributário Nacional foi recebido pela Constituição Federal de 1988 com o "status" de Lei Complementar. Já a Lei 11.051/04 é lei ordinária. Dessa forma, a referida Lei não pode legislar contrariamente à norma de hierarquia superior sob pena de incorre em inconstitucionalidade.

Conforme inciso VI do art. 151 do CTN, o parcelamento da dívida suspende a exigibilidade do crédito tributário, verbis.

"Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:

VI – o parcelamento."

A adesão à programa de parcelamento (REFIS, PAES) permite a emissão da Certidão Positiva com Efeitos de Negativa (art. 206, do CTN), que concede ao devedor a comprovação de adimplemento de sua obrigação tributária, em que pese esta ainda não ter sido completamente satisfeita.

Assim, fazendo-se uma interpretação sistemática, à luz do CTN, norma de hierarquia superior, o débito parcelado não é exigível, o que por certo não configurará hipótese de incidência da multa em comento, em caso de distribuição de lucros e dividendos, regrada por norma de hierarquia inferior.

Dessa forma, parece-nos que, nos casos supracitados (exceção de pré-executividade e suspensão da exigibilidade do débito), os Tribunais devem se manifestar no sentido de que a aplicação da multa é ilegal, por restrição ao direito de defesa das partes. Entretanto, faz-se necessário aguardar posicionamento dos órgãos jurisdicionais sobre a matéria em apreço.


O conceito de distribuição de lucros aos diretores e sócios e remuneração aos acionistas:

Analisando-se o texto da Lei, conclui-se que o empresário não pode distribuir lucros aos sócios, diretores ou quotistas e nem remuneração aos seu acionistas.

As participações nos lucros, que são os benefícios atribuídos a terceiros, não relativas a investimento dos acionistas e que devem ser registrados como despesa da empresa, representam uma espécie de parcela complementar do salário, cujo valor é apurado com base no lucro da sociedade, decorrente da performance do administrador. Em suma, importa em uma "gratificação" sobre o trabalho da pessoa, podendo ser o sócio, o diretor ou mesmo qualquer outro contratado.

A discussão que se trava paralelamente à legalidade de tal restrição é a abrangência do termo remuneração. Na linguagem contábil, a remuneração do acionista engloba: bonificações, dividendos e juro sobre capital próprio.

Os dividendos representam uma destinação do lucro do exercício, dos lucros acumulados ou de reservas de lucros aos acionistas da companhia, subdividido de acordo com as diferentes classes de ação. O montante, a ser pago em dinheiro e de forma proporcional à quantidade de ações possuídas, deve ser decidido pelo Conselho Administrativo da empresa e, em geral, é pago anualmente, semestralmente ou trimestralmente.

A bonificação por sua vez é a d

istribuição gratuita de novas ações aos acionistas, na proporção da quantidade de ações já possuída por cada um destes acionistas. Esta distribuição, em geral, ocorre em virtude da incorporação ao capital da empresa de reservas ou lucros acumulados, ou da reavaliação dos ativos da empresa. As empresas também podem efetuar bonificação em dinheiro. Neste caso o acionista recebe da empresa um valor monetário relacionado às reservas não incorporadas, sendo que este pagamento é feito além do pagamento de dividendos.

Finalmente, o juro sobre capital próprio vem a ser uma das formas de remuneração que uma empresa pode dar aos seus acionistas. Os juros sobre capital próprio são pagos com base no lucro retido pela empresa nos anos anteriores.


O veto ao vocábulo dividendos.

A existência de um documento enviado ao Congresso pelo então Presidente da República Humberto Castello Branco, em 1964, ano de promulgação da Lei nº4.357, deve se tornar um forte argumento do setor empresarial face a arbitrariedade instituída pela indigitada norma. Saliente-se, por oportuno, que o projeto de lei, ao ser submetido à análise do Presidente da República para sanção, sofreu veto exatamente no vocábulo "dividendo", passando a lei a abranger a "distribuição de quaisquer bonificações a seus acionistas".

Diante desta informação, cabe a leitura da mensagem de veto do Marechal Humberto Castello Branco, então Presidente da República, que assim se expressou:

"(...)

V – no artigo 32, na alínea "a" do mesmo artigo, à expressão "dividendos e".

(...)

A filosofia que presidiu a elaboração das normas do artigo 32 reside na preeminência do princípio da pontualidade no pagamento dos tributos e contribuições devidas ao Estado

. Ocorre, porém, que tal princípio se afirma de modo mais positivo através das disposições do artigo 7°, as quais obrigam à correção monetária dos débitos fiscais.

A ingerência do Fisco em assuntos da economia interna das empresas deve ficar restrita aos casos excepcionais, evitando-se que os poderes de controle

destinados a garantir a pontualidade no pagamento dos tributos e contribuições sejam transformados em elementos de perturbação da vida normal das empresas, que são os núcleos propulsores do desenvolvimento da economia nacional.

Sob essa ordem de idéias, parece aconselhável restringir os casos de intervenção, limitando-os às hipóteses essenciais. Delas deverão ser excluídos os casos de distribuição de dividendos e de pagamentos por serviços prestados pelos dirigentes das empresas.

A exclusão dos dividendos torna-se mais aconselhável ainda, no caso de acionistas minoritários, que ficam prejudicados por erros de uma administração que, em geral, não teriam forças para substituir.

(...)"

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Resta claro que a distribuição de dividendos deve ser preservada, eis que o Fisco não pode desrespeitar o direito de propriedade garantido ao acionista.

A restrição trazida pela Lei n° 4.357/64, penalizando a empresa que paga participação nos lucros aos administradores quando em débito com o fisco é uma maneira de punir o mau administrador pela má gestão da sociedade. O acionista, de outro lado, não pode ser o alvo de tal restrição.

Um dos contra-argumentos que merece ser destacado, é que o INSS vem realizando autuações nos casos de pessoas jurídicas em débitos com o órgão que efetuam distribuição de dividendos ainda que tais débitos não estejam devidamente garantidos.

Deve-se ressaltar, todavia, que a fundamentação legal para o procedimento do INSS é embasada pelo artigo 52 da Lei n° 8.212 de 24 de julho de 1991 assim dispõe:

"Artigo 52 – À empresa em débito para com a seguridade social é proibido:

I - distribuir bonificação ou dividendo a acionista;

(...)"

A esse respeito cumpre ressaltar a existência de jurisprudência favorável ao ente tributante. São decisões de Tribunais Federais mantendo a aplicação de multa em casos de contribuintes em débito com o INSS e que tenham distribuído dividendos aos seus acionistas. Entretanto, mister salientar que a restrição quanto aos débitos do INSS deve ser interpretada de maneira distinta, pois a legislação específica, como já demonstrado, apresenta importante diferença face à Lei n° 4.357/64, tendo em vista que prevê expressamente o termo "dividendo".

Destarte, o contribuinte que não possua garantia sobre eventual débito com o INSS não poderá distribuir dividendos aos acionistas, sob pena de sofrer autuação fiscal. O mesmo não ocorre no que se refere aos outros tributos federais, tendo em vista que a lei que rege a matéria, como demonstrado, não previu a punibilidade sobre a distribuição de dividendos.


Juro sobre capital próprio não pode ser considerado dividendo.

Resta ainda a questão do juro sobre o capital próprio, estaria ele incluído no vago texto legal? Para o renomado autor Fábio Ulhoa Coelho [1], o juro sobre capital próprio não pode ser considerado como dividendo por duas razões: a) A existência de norma legal que autoriza seu cômputo no montante dos dividendos obrigatórios (art. 9 § 7º, da Lei nº9.249/95), o que indica que os juros tem natureza diversa da de dividendos. Ora, se os juros sobre o capital próprio fossem espécie de dividendos, não haveria necessidade do referido dispositivo, eis que eles seriam incluídos entre os obrigatórios, eles são um pagamento em favor dos acionistas, uma forma diferente de remunerá-los; b) Em razão do regime tributário diferenciado e princípio da isonomia. Na lei em que disciplina o juro sobre capital próprio, o legislador isentou de Imposto de Renda o pagamento de dividendos (art. 10 da Lei nº9.249/95), entretanto, os juros são tributados na fonte em 15%, possuindo natureza distinta. Estas diferenças impedem que sejam tratados como pagamentos do mesmo tipo, ante o princípio constitucional da isonomia.

Por seu regime tributário, os juros sobre o capital próprio devem ser considerados despesa da empresa, face à sua dedução da base do lucro real. Neste diapasão, a distribuição de juro sobre capital próprio não configuraria distribuição de dividendos.

De outro lado, conforme conceitos adotados na contabilidade, o juro sobre capital próprio está elencado entre as formas de remuneração do acionista, sendo assim hipótese em que, caso haja distribuição de remuneração aos acionista sem garantia dos débitos para com o Fisco, incidiria a multa em comento.

Salienta-se que a matéria ainda não foi apreciada pelos Tribunais do país, carecendo de entendimento judicial. Esta é apenas uma análise prévia da lei, sem embasamento em decisões judiciais, eis que as mesmas ainda não surgiram.


Notas

1 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v.2 – São Paulo: Saraiva, 1999, p. 335.

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Sobre o autor
André de Souza Pacheco

acadêmico do curso de direito e economia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PACHECO, André Souza. Comentário à Lei nº 11.051/2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 712, 17 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6889. Acesso em: 28 nov. 2024.

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