1. Introdução
Mais do que o cidadão comum, os policiais militares expõem-se constantemente a situações de conflito, restringindo liberdades e direitos individuais em prol do bem coletivo. Nesse contexto, corriqueira a ofensa contra a sua dignidade, honra e imagem, seja no calor dos acontecimentos em que se vê envolvido, seja de forma deliberada e provocativa, na intenção de revidar o cerceamento sofrido. Não olvidemos, ainda, da nefasta possibilidade dos fatos ofensivos ocorrerem dentro das casernas, evidenciando resquícios odiosos do período de exceção ditatorial, em absoluta afronta aos atuais princípios constitucionais que regem o Estado Democrático de Direito.
Além das sanções penais cabíveis no caso concreto, deve-se analisar a possibilidade de indenização por danos morais sofridos. Para tanto, o militar do Estado deverá valer-se dos meios processuais adequados, pleiteando ressarcimento que considere justo e suficiente ao restabelecimento de sua honra e, principalmente, evidenciando o constrangimento moral e o agravo dele resultantes.
Nestes termos, importa-nos verificar a configuração atual do dano moral, suas características, bem como os pressupostos e condições processuais necessários à adequada tutela da dignidade do policial militar. Ainda, analisar os crimes de desacato e injúria, diferenciando-os entre si e demonstrando suas repercussões em âmbito civil.
2. Dano moral
2.1. Responsabilidade civil e criminal
A responsabilidade civil independe da criminal e não se confundem. Esta a regra do sistema jurídico adotado no Brasil (art. 935 do CC/02.). Existem, porém, mecanismos de interação entre as jurisdições civil e penal, a fim de que sejam evitadas decisões contraditórias. Assim, a sentença penal condenatória transitada em julgado é título executivo para se pleitear eventual reparação por danos morais (art. 63 do CPP), intentando-se diretamente a actio judicati. Já a sentença penal absolutória nem sempre resulta na irresponsabilidade civil do autor dos danos. Se fundada na negativa de autoria, inexistência do fato ou nas excludentes de ilicitude, vincula a decisão em âmbito civil, não gerando qualquer obrigação indenizatória (art. 935 do CC/02 c.c. e art. 65 do CPP). Porém, na legítima defesa putativa ou no ato fundado em erro na execução, prevalece a responsabilidade civil do agente (art. 186 c.c. o art. 927, ambos do C.C/02). O mesmo acontecerá no estado de necessidade resultante de ato de terceiro, cabendo ação regressiva contra o causador do perigo (art. 929 e 930 do C.C/02).
Ex positis, concluímos que, ainda que haja responsabilidade penal a ser apurada, nada impede a propositura de concomitante ação civil de conhecimento (actio civilis ex delicto). Sobrevindo sentença criminal condenatória com trânsito em julgado, o processo civil deverá ser extinto por falta de interesse ( cf. RT, 620: 83).
2.2. Dano moral e dano material
O dano material caracteriza-se pela diminuição patrimonial sofrida pela vítima (danos emergentes) e naquilo que ela razoavelmente deixou de lucrar (lucros cessantes), nos termos do art. 402 do CC/02.
Dano moral, por sua vez, deve ser entendido como "a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo a normalidade, interfira intensamente no psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem estar" (CAVALIERI, p. 78). Desta feita, a fim de evitar abusos e excessos, não deve ser considerado dano moral, por exemplo, a "hipótese de mero aborrecimento que faz parte do quotidiano de qualquer cidadão de uma grande cidade" (1).
Anteriormente, acreditava-se que seria imoral dar valor monetário à dor, uma vez que essa seria imensurável. Atualmente, porém, o entendimento é de que a indenização por dano moral não representa a medida ou o preço da dor e sim, uma compensação pela tristeza e aflição causadas injustamente a outrem (GONÇALVES, 1995). Teria, desta feita, precípuo caráter compensatório para vítima e, de natureza meramente reflexa, caráter punitivo para o ofensor.
O dano moral, nestes termos, por não se confundir com o dano material, pode com ele ser cumulado, conforme preceitua a Súmula 37 do STJ.
2.3 O dano moral na Constituição de 1988
A Constituição Federal tutela o direito a indenização por danos morais nos art. 1º, III e art. 5º, inc. V e X, explicitando a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III) e declarando invioláveis o direito à honra e à imagem das pessoas (art. 5º, X).
O Código Civil de 1916, por sua vez, previa apenas algumas hipóteses específicas para a reparação do dano moral: ofensa à liberdade pessoal (art. 1.550), calúnia, injúria e difamação (art. 1.547) etc. Porém, com base no seu art. 159, genérico, que obrigava a reparação de qualquer dano causado sem diferenciação entre dano moral e material, tutelava-se também os direitos da personalidade. Com a Constituição Federal, que evidenciou o direito à indenização por danos morais, a celeuma deu-se por encerrada.
2.4 O dano moral no novo Código Civil (Lei 10.406/02)
Para a caracterização do dano moral originado em causa extracontratual (o que comumente ocorre envolvendo os militares do Estado), deve-se evidenciar a ação ou omissão praticada contra o policial militar, a culpa ou dolo do agente agressor e a relação de causalidade entre a conduta e o dano moral experimentado.
Acerca da ação ou omissão, a responsabilidade pode derivar de ato próprio do ofensor ou de ato de terceiros. Em regra, a responsabilidade civil é individual; porém, a lei pode determinar que o agente responda pessoalmente por ato de terceiro. É o que ocorre, por exemplo, com os patrões em relação aos atos ilícitos de seus empregados ou prepostos praticados no exercício do seu trabalho (art. 932, III do CC/02) e com os pais, em relação aos seus filhos menores que estiverem sob sua autoridade e companhia (art. 932, I, do CC/02). Nestes casos, patrões e pais responderão objetiva e solidariamente pelos danos morais eventualmente causados em desfavor dos militares do Estado. Atual e recorrente questão apresenta-se na vigência da Lei Estadual paulista nº 10.380/99, que outorgou direito de transporte nos ônibus intermunicipais aos policiais militares devidamente fardados e identificados. Caso seja humilhado, ultrajado ou, de qualquer maneira, tenha maculada sua honra ou dignidade, independentemente das repercussões penais imponíveis ao caso concreto, inegável a responsabilização civil dos funcionários da empresa transportadora ou, mais convenientemente, da própria empresa de ônibus empregadora, responsável solidária e objetiva pelos danos causados (art. 933 do CC/02).
Imprescindível, ainda, a demonstração de dolo ou culpa do ofensor. Enquanto o dolo consiste na conduta lesiva de forma consciente e voluntária, a culpa caracteriza-se pela inobservância de cuidado objetivo, inerente ao comportamento do homo medius, desde que previsível o fato nas circunstâncias em que ocorreu.
O nexo entre a conduta comissiva ou omissiva e o dano moral, por sua vez, também é necessário. Não existe a obrigação de indenizar, por exemplo, diante da ocorrência de excludentes da responsabilidade civil, como a culpa exclusiva da vítima, o caso fortuito e a força maior (art. 393 do CC/02).
2.4.1. Da liquidação do dano moral
O novo Código Civil pouco inovou na formulação de critérios objetivos para a liquidação do dano moral. Afastando-se de modelos tarifados, deixou ao prudente arbítrio do juiz essa tarefa. Mantendo a fórmula adotada no C.C. de 1916, o art. 946 do CC/02 determina que a quantificação do dano moral seja apurada na forma do diploma processual que, por sua vez, estabelece a liquidação por artigos ou arbitramento, prevalecendo esta última, com o grande inconveniente de poder levar a injustiças, por ser exorbitante ou ínfima a reparação, ainda que legal.
Parâmetros do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62) e da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) já foram utilizados (e em alguma medida ainda o são) para o arbitramento do dano moral, não havendo, atualmente, um critério único e objetivo para a sua quantificação. A recomendação dos Tribunais Superiores, porém, é de que sejam considerados critérios de proporcionalidade e razoabilidade (2).
Fixado o valor devido, nele incide atualização monetária desde a data do fato (art. 398 do C.C/02), momento em que fica caracterizada a mora do devedor (art. 395 do C.C/02). Acerca dos juros, tratando-se de ato ilícito extracontratual, também incide a partir do evento danoso ( Súmula 54 do STJ).
3. Injúria e desacato
3.1. Diferenças entre injúria e desacato
A injúria e o desacato são tipos penais que não se confundem. Traço diferenciador básico reside no fato de que, enquanto a injúria visa tutelar a honra subjetiva, ou seja, dignidade e decoro pessoal, o desacato busca tutelar o decoro do cargo público. Desta feita, ainda que o militar do Estado não se sinta ofendido mas se verifique, objetivamente, que a conduta aviltou o prestígio da função pública, o crime de desacato resta configurado. A injúria, por sua vez, também pode ser perpetrada contra agente público no exercício de suas funções (injúria qualificada) só que, neste caso, apenas se o funcionário não estiver presente (por exemplo, através de carta); se estiver face a face com o ofensor, o crime em questão será sempre o desacato. Ainda, a injúria (no Direito comum) é crime de ação penal privada (em regra), ou de ação penal pública condicionada a representação quando se referir a agente público no exercício de suas funções; já o desacato é crime de ação penal pública incondicionada.
3.2 Injúria
No crime de injúria, art. 140 do CP, art. 216 e 217 do CPM, não resta dúvidas acerca da possibilidade de responsabilização do autor das ofensas por danos morais.
Já na injúria qualificada, art. 140 c.c. o art. 141, II do CP e art 216 c.c. art. 218, III do CPM, devemos considerar que o crime só se consuma quando o agente público se julga, efetivamente, ofendido. Se isso não ocorrer, não há crime; conseqüentemente, desconsiderada a ofensa pelo agente, descabida qualquer pretensão por danos morais. Contudo, mesmo não havendo representação penal do agente para a instauração do processo por injúria qualificada em âmbito comum, cabível a ação por danos morais frente a real existência de prejuízos à sua dignidade.
3.3 Desacato
O policial militar, ainda que represente a Administração Pública no exercício de suas funções, também é sujeito passivo do crime de desacato (art. 331 do CP e art. 298 a 300 do CPM) Mais propriamente, impossível desvincular os reflexos pessoais sofridos na dignidade do agente quando aviltada a atividade que exerce. Nestes termos, tem legitimidade plena para pleitear reparação por danos morais sofridos no desempenho funcional. Algumas considerações, contudo, fazem-se necessárias. Já verificamos que o crime de desacato busca tutelar a dignidade do cargo público e que o delito se configura ainda que o agente não se sinta ofendido; neste caso, desconsiderada a ofensa pelo militar do Estado, descabida qualquer pretensão por dano moral. Essa, porém, não é a regra; o militar do Estado, quando desacatado, sente-se pessoalmente humilhado, desprestigiado e ofendido. Destarte, configura-se o quadro adequado para a pretensão reparatória por danos morais.
A cólera e a embriaguez, para grande parte da jurisprudência e doutrina, excluem o elemento subjetivo do tipo do desacato, que é o dolo, consistente na vontade livre e consciente de menoscabar a função pública do militar do Estado. Há que se entender, porém, que somente a embriaguez completa, resultante de caso fortuito ou força maior, retirariam a capacidade de entendimento do agente, com fundamento na teoria do actio libera in causa (art. 28, II, § 1º e 2º do CP). Ainda, deve-se observar que a emoção não exclui a imputabilidade pelo crime de desacato (art. 28, I do CP), apenas interferindo na culpabilidade do agente, ou seja, no grau de reprovabilidade da conduta e na conseqüente mensuração da pena. De qualquer maneira, porém, na seara civil, a mínima culpa obriga a indenizar (in lege Aquilia el levissima culpa venit).
Desta feita, resultando o fato em qualquer afronta a honra ou dignidade do militar do Estado, fundada ou não em cólera ou embriaguez do ofensor, configurado ou não o delito de desacato, fica o causador do dano, ainda que exclusivamente moral, obrigado a indenizar (art. 186 c.c. art. 927 caput, CC/02), desde que inexista qualquer outra causa excludente da responsabilidade civil.
3.3.1. O advogado como sujeito ativo do desacato
O Estatuto da Advocacia, Lei nº 8.906/94, em seu art. 7º, § 2º, prevê que "o advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele (...)". Porém, o STF, no julgamento da ADIn 1.127-8 (j. 06.10.1994) decidiu, por maioria de votos "suspender, até decisão final, a eficácia da expressão ‘ou desacato’, contida no § 2º do art. 7º da Lei 8.906/1994 (...)".
3.3.2. Funcionário público como sujeito ativo do crime de desacato
Ainda que haja entendimento de que o desacato é crime praticado exclusivamente pelo particular contra a administração pública, prevalece a corrente doutrinária e jurisprudencial de que o funcionário, ao ofender outro, despe-se da qualidade de agente estatal e equipara-se ao particular, respondendo pelo crime de desacato (3).
4. Acesso à justiça
Com o advento da Lei nº 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, o pedido de indenização por danos morais ficou enormemente facilitado e célere, mesmo diante de algumas limitações. Nos Juizados Especiais Cíveis, por exemplo, o valor da causa não deve exceder a vinte salários mínimos, caso o autor não se faça representar por advogado (art. 9º, caput, da Lei 9099/95); assistido por um causídico, o interessado poderá pleitear reparação de até quarenta salários mínimos (art. 3º, I, c.c. art. 9º, caput, da Lei 9099/95).
A ação poderá ser interposta no domicílio do réu ou no local do ato ou fato (art. 4º, inc. III da Lei 9099/95). O pedido, por sua vez, poderá ser apresentado por escrito ou mesmo oralmente, na secretaria do Juizado, sempre de forma simples, expondo convenientemente a qualificação das partes, o objeto da demanda, os fatos e os fundamentos, bem como o valor da causa (art. 14 da Lei nº 9099/95). Deve-se, ainda, na petição inicial, apontar as testemunhas do autor (até três) e requerer-se ou não a intimação das mesmas para a audiência de instrução e julgamento (art. 34). Preliminarmente tentar-se-á, sempre que possível, a conciliação ou transação entre as partes, uma vez que o funcionamento dos Juizados Especiais baseia-se, dentre outros, nos princípios da simplicidade, informalidade e economia processual ( art. 2º c.c. art. 21 e seguintes da Lei 9099/95).
Caso o valor dado à causa exceda a quarenta salários mínimos mas não ultrapasse sessenta, dever-se-á adotar o rito sumário, previsto no art. 275 e seguintes do Código de Processo Civil (com redação determinada pela Lei nº 10.444/02), desde que, ainda, a complexidade da controvérsia ou das provas a serem produzidas não exija a conversão do procedimento sumário em ordinário (art. 277 do CPC, § 4º e 5º). Nos demais casos, por exclusão, o rito ordinário deve ser adotado (art. 282 e seguintes do CPC).
5. Conclusão
Intolerável que um militar do Estado, servidor que atua em nome do interesse público na consecução do bem comum, seja aviltado ou menoscabado no seu exercício funcional. Em contrapartida, inadmissível que o policial militar afaste-se da estrita legalidade, objeto de sua própria atividade, para a preservação dos seus direitos.
Na vigência de um Estado Democrático, em que os organismos de repressão existem para a manutenção da ordem pública e tutela incondicional dos direitos humanos, fundamental que policiais militares e cidadãos conheçam e exerçam, na plenitude, os seus direitos e deveres, abandonando, em definitivo, extremos indesejáveis e igualmente injustos, seja a apatia submissa, seja o exercício ilegítimo da força.
6. Referências bibliográficas
CAVALIERI, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 5ª ed. Ed. Malheiros, São Paulo, 2003.
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 10ª ed. Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1995.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. Ed. Saraiva, São Paulo, 1995.
MELO DA SILVA, Wilson. O dano moral e sua reparação. 2ª ed. Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1966.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 9ª ed. Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1999.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 19ª ed. Ed. Saraiva, São Paulo, 2002, v. 4.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Ed. Atlas, São Paulo, 2000, v. 4.
7.Notas
01
TJSP, Ap. nº 101.697-4-SP 1ª Câm, j. 25-7-2000.02
IX Encontro dos Tribunais de Alçada e STJ, Resp 135.202-0-SP, 4ª T, j. 19-5-1988.03
STF, RT, 567/397; STJ, HC 2.374, DJU 20.6.94, p. 16125