Talidomida e Zika: O que elas têm em comum?

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Analisa-se o benefício de assistência social concedido às crianças vítimas do vírus da zika que vieram a desenvolver microcefalia. Em paralelo, analisa os benefícios concedidos às crianças vítimas da “síndrome da talidomida".

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo principal analisar o benefício de assistência social concedido às crianças vítimas do vírus da zika que vieram a desenvolver microcefalia. Em paralelo, analisa os benefícios concedidos às crianças vítimas da “síndrome da talidomida”. Destaca o fato de ambas as doenças serem fruto de uma omissão do Estado que gerou danos permanentes e irreparáveis a essas crianças. Porém, enquanto os “filhos da zika” tiveram concessão de um benefício limitado ao prazo de 3 (três) anos, aqueles que foram vitimados pela “síndrome da talidomida”, possuem de forma acertada, dentre outros direitos, um benefício vitalício, indenizatório nos moldes de pensão especial. Com relação ao benefício concedido aos “filhos da zika”, disserta sobre a lei n° 13.301/2016 que condiciona o recebimento da prestação às regras da lei n° 8.742/1993 (LOAS). Dessa forma, torna como critério obrigatório para a concessão do benefício, uma renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo nacional. O presente trabalho defende a necessidade de uma norma específica prevendo criação de um benefício para as crianças acometidas pela microcefalia devido à zika, em moldes similares aos benefícios concedidos às vítimas da talidomida: um benefício indenizatório, vitalício, não limitado por renda familiar a ser concedido como pensão especial.

Palavras-Chave: Zika. Microcefalia. Pensão Especial. Omissão do Estado. Síndrome da Talidomida

Abstract: The main objective of this study is to analyze the social assistance benefits granted to children who developed microcephaly as a consequence of their mothers infection by zika vírus. In parallel, it analyzes the benefits granted to children who were victims of "thalidomide syndrome". It highlights the fact that both diseases are a result of an State omission that has caused permanent damage to these children. However, while the "sons of zika" were granted with a benefit limited to a period of three (3) years, those who were victims of "thalidomide syndrome" possess, among other rights, a lifetime benefit. About the benefit granted to the "sons of zika", it discusses law N° 13.301/2016 that conditions the benefit to the rules of law N°. 8.742/1993 (LOAS) thus, it is a mandatory criteria for receiving the benefit that a family can only have an income smaller than ¼ of the national minimum salary. The present work supports the need of a specific rule for the creation of a benefit for children affected by microcephaly due to zika virus, similar to the benefit granted to the victims of thalidomide syndrome: an indemnity benefit, for life, not conditioned to the family incomes, to be granted as a special pension.

Keywords: Zika. Microcephaly. Special Pension. State omission. Thalidomide Syndrome.

Sumário: Introdução. Zika Vírus e seu aspecto social. Proteção social as “mães e filho” da zika. O caso da talidomida. Conclusão.


Introdução

Desde o século XIX, o Brasil sofre com as doenças transmitidas pelo mosquito aedes aegypti. Naquele período, a febre amarela era a principal preocupação. À época, o Brasil iniciou uma grande campanha de erradicação do mosquito e em 1955 o país se viu livre desse inseto[1].

Porém, os esforços brasileiros foram vencidos pela negligência de outros países que não controlaram os focos de proliferação do mosquito em seus territórios. Assim, em 1967, constatou-se novamente a presença do aedes aegypti no Brasil.

Em 1981, na cidade Boa Vista, Roraima[2], foi confirmada a primeira epidemia de dengue[3] em território nacional. Desde então, os brasileiros continuaram a viver reféns desse mosquito. O Estado, se aquietou e negligenciou as políticas de controle do aedes aegypti.

A reprodução desse mosquito, é uma questão de saúde pública. A evolução da incidência das doenças provocadas pelo aedes aegypti no Brasil, é um caso de omissão das autoridades no combate ao mosquito: omissão na fiscalização[4], omissão no tratamento dos doentes[5], omissão no emprego dos mecanismos de controle (como por exemplo, o carro fumacê). Em 1955 conseguimos erradicar o aedes aegypti no Brasil, período em que o país não dispunha da evolução tecnológica atual.

Evidente a omissão do Estado.

Esse mosquito é um potencial transmissor de várias doenças. Era apenas uma questão de tempo, até que mazelas mais agressivas viessem a se proliferar no país usando o aedes aegypti como vetor.


Zika vírus e seu aspecto social

O primeiro caso de zika[6] diagnosticado no Brasil data de 2015, mas estudos mostram que o vírus pode ter entrado no país em 2013[7]. Essa doença, para além de uma virose comum, se tornou um martírio para todas as mulheres em idade reprodutiva. Em especial, as que moram na região nordeste do Brasil, região tradicionalmente esquecida pelas políticas públicas. A zika tem causado sofrimento permanente a todas as mães, que, infelizmente, foram contaminadas pelo vírus durante a gestação ou logo antes de engravidarem[8]. A contaminação pelo vírus da zika, causa alterações no sistema nervoso central do feto, gerando a microcefalia, o que acaba por afetar o desenvolvimento típico da criança.

Abaixo, tabela extraída do Portal do Ministério da Saúde indicando os prováveis casos de microcefalia decorrentes de zika entre meados de 2015 quando começou o controle e final de 2017[9]:

Fonte: Registro de Eventos em Saúde Pública (RESP-Microcefalia). Dados extraídos em 10/01/2018 às 10h (horário de Brasília).

Importante destacar que dos 15.298 casos investigados até a publicação do relatório, 9.263 são da região nordeste (ou seja, pouco mais de 60%). Se analisarmos apenas os casos já confirmados (3.071 no total), esse índice chega a mais de 65% (2.004 casos já confirmados na região nordeste no período).

Assim, aferimos que as mais atingidas pela epidemia são as mulheres e crianças nordestinas, em sua maioria pobres[10]. Elas ocupam essa posição de destaque não apenas pelo clima da região nordeste, mas também pela falta de informação, pela falta de condições de arcar com as custas do repelente[11] e por viverem em áreas com ausência de políticas públicas de saneamento e falta de fiscalização do Estado para coibir os criadouros do mosquito.

Segundo o ex-Procurador Geral da República Rodrigo Janot: “É notório que as maiores vítimas da negligência estatal na prevenção e no combate à epidemia são mulheres pobres e nordestinas.”[12]

A falta de saneamento básico é um importante fator na proliferação do mosquito, e por isso, aqueles que vivem em regiões mais pobres, estão mais expostos a infecção.

Importante destacar a posição do médico Antônio Bandeira, um dos primeiros médicos a identificar o zika vírus no Brasil: “Se em uma palavra a gente pudesse tentar resumir onde o vírus Zika poderia ser melhor controlado, eu diria no saneamento básico. Hoje, esse mosquito consegue se reproduzir em águas sujas, então, a forma de você trabalhar isso é você melhorar as condições de vida, é você ter esgotamento sanitário em 100% do país”[13].

Após o susto inicial (2015/2016), de fato os casos da doença reduziram (2017), como demostra o boletim do Ministério da Saúde com dados atualizados até 10/01/2018[14]:

Essa discussão inicial é importante para entendermos que a proliferação do aedes aegypti, assim como o aumento do número de crianças nascendo com microcefalia, decorre diretamente de uma omissão do Estado em realizar dentre outros, seu dever de promover o saneamento básico e a saúde.

Percebendo a existência da omissão do Estado, não podemos afastar o dever de indenizar. Importante o direito caminhar no sentido de tentar atenuar as mazelas sociais, para que de alguma forma, busque amenizar a dor e sofrimento dos cidadãos que são vítimas diárias da omissão do Estado em suas mais variadas formas.

Diante disso, importante, compreendermos, mesmo que singelamente, o que vem ocorrendo com as “mães e filhos da zika”.

Essas mães, em sua maioria mulheres pobres e nordestinas, desde a contaminação pelo vírus da zika, foram obrigadas a viver suas vidas em perspectivas diferentes. Muitas reportagens jornalísticas já se dispuseram a falar sobre a vida dessas mulheres e dessas crianças.[15] Essas mães têm sido abandonadas à própria sorte. Os relatos chocam.

Muitas relatam que tiveram que parar de trabalhar para se dedicar aos cuidados da criança acometida pela microcefalia, passando a enfrentar uma rotina exaustiva em busca de tratamento, muitas vezes sem sucesso.

A omissão do Estado no controle de um mosquito causou tudo isso.

Diversos princípios e preceitos constitucionais foram feridos, o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da isonomia e preceitos como o direito à prevenção de doenças, proteção à infância e maternidade, dentre outros.

Importante destacar trecho de reportagem publicado pela Empresa Brasil de Comunicação: “Em Pernambuco, estado mais afetado, dados da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social corroboram a impressão inicial. Até outubro de 2016, dos 392 casos confirmados de bebês com microcefalia no estado, 223 são filhos de famílias vinculadas ao Cadastro Único de benefícios sociais. Ou seja, 57,3% deles são filhos de famílias que ganham até R$ 85 por mês e recebem o Bolsa Família. Cerca de 70% das mães dessas crianças são jovens de 14 a 29 anos, 77% são negras e 89% estariam aptas a receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), concedido pelo INSS a idosos ou pessoas portadoras de alguma deficiência e que ganham menos de um quarto do salário-mínimo por mês, o que equivalente a R$ 220”.[16]

Inicialmente, pode não parecer, mas estamos diante de uma briga necessária na esfera previdenciária.


Proteção social às “mães e filhos” da zika

Desde que a epidemia pelo zika vírus chegou ao Brasil, a preocupação com as famílias que tiveram seus filhos acometidos com a microcefalia começou.

Era evidente que, de alguma forma, o Estado precisava auxiliar financeiramente essas famílias.

Em 27 de junho de 2016, a lei n°13.301/2016 foi publicada prevendo em seu art. 18, p.3° a dilação do prazo de licença maternidade (ampliando para 180 dias) para as mães que tiveram filhos com microcefalia devido a contaminação pelo vírus da zika, garantido o recebimento do salário maternidade nesse período.

O art. 18 da lei n°13.301/2016 também dispõe sobre benefício a ser concedido pelo prazo de 3 (três) anos para a criança vítima de microcefalia. Importante destacar, que esse artigo se refere a concessão de benefício previsto no art. 20 do LOAS (lei n°8.742/1993).

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A Constituição Federal de 1988 em seu art. 203, V, garante o direito ao recebimento do valor de um salário mínimo mensal ao idoso e à pessoa com deficiência que comprove não possuir meios de prover seu próprio sustento nem de tê-lo provida por sua família.

Em 1993, a lei n° 8.742/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS) foi publicada para definir os parâmetro para a concessão do benefício previsto no art. 203,V, da CF/1988. O LOAS passou por substancias alterações ao longo dos anos. Atualmente, para a concessão do benefício de prestação continuada, o LOAS entende como idoso aquele com idade mínima de 65 anos[17] e como pessoa com deficiência “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”[18], considerando impedimento de longo prazo aquele que produza efeitos por mais de 2 (dois) anos.

A lei n° 8.742/1993 (LOAS) não traz critério de idade para que a pessoa com deficiência venha a receber o benefício de prestação continuada, logo, até mesmo o recém-nascido, enquadrado nos critérios para concessão do benefício, pode requerer.

A Constituição Federal indica outro critério para o recebimento do benefício, que é a falta de condição de prover o próprio sustento ou tê-lo provido por sua família (art. 203, V, da CF/1988). O LOAS, define no art. 20, p. 3° que: “Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo”. Para além da discussão da constitucionalidade ou não da renda per capita trazida pela lei n° 8.742/1993 como critério para a concessão do benefício assistencial de prestação continuada, fato é, que o INSS adota qual requisito como parâmetro para a análise da concessão do benefício.

Assim, quando a lei n° 13.301/2016 em seu art. 18 concede benefício de prestação continuada às vítimas de microcefalia causadas pelo zika vírus nos moldes do art. 20 da lei n° 8.742/1993, ela está limitando a concessão do benefício apenas às famílias com renda per capita de 1/4 de salário mínimo.

Tal prestação é equivocada, por vários motivos: por limitar o valor do benefício a um salário mínimo, restringir seu prazo a 3 (três) anos e por ter como requisito a renda per capita familiar de 1/4 do salário mínimo.

A limitação de três anos para a concessão do benefício previsto na lei n° 13.301/2016 parece incoerente, visto que, a microcefalia, se enquadra nos casos de deficiência previstos no art. 20, p.2°, da lei n° 8.742/1993 e no art. 2° da lei n° 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com deficiência), assim, com base nesse critério, seu benefício não deveria ter o limitador de três anos, deveria na verdade, perdurar enquanto a situação de miserabilidade  e deficiência persistissem, como ocorre com os demais benefícios concedidos com base na lei n° 8.742/1993.

O veto presidencial ao p.1° do art. 18 da lei n° 13.301/2016, expressou que, o critério de miserabilidade previsto nesse artigo, deveria ser o mesmo da lei n°8.742/1993 e ainda reconheceu que as crianças com microcefalia, tem direito ao benefício de prestação continuada nos moldes dessa mesma lei, porém, deixou de vetar o prazo limitador de 3 anos, previsto no caput desse artigo[19].

O risco maior, é essas crianças terem o benefício cessado pelo decurso do prazo de 3 anos, nos moldes da lei n° 13.301/2016, quando na verdade, existe condição mais favorável na lei n° 8.742/1993.

A lei n° 13.301/2016 é um dos objetos da ADI 5.581 impetrada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP). Na ADI, dentre outras coisas, é questionada a exigência de comprovação de miserabilidade para a concessão do benefício. A ADI está conclusa ao Relator desde julho de 2017[20].

A ADI 5.581 presume inconstitucional a previsão do art. 18, p.2° da lei n° 13.301/16 que aponta que o benefício assistencial não deverá ser concedido durante a licença maternidade.

Acertada essa posição, uma vez que tanto a natureza, quanto o destinatário dos benefícios são diversos. Enquanto o salário maternidade tem a mãe como beneficiária e visa suprir o não recebimento de salário no período de afastamento do trabalho, o benefício previsto no art. 18 tem como destinatário a criança acometida com microcefalia e deveria ter natureza indenizatória.

Para além disso, a previsão do Art. 18, p. 2°, da lei n° 13.301/2016 viola diversos princípios constitucionais como a promoção e integração à vida comunitária da pessoa com deficiência (art. 203, IV, CF/88); a dignidade dessas crianças e a proteção da criança e da família (203, I, CF/88).

Importante também destacar a inconstitucionalidade da exigência de renda per capita de 1/4 do salário mínimo para a concessão do benefício, visto que, assim como nos casos de concessão do benefício da síndrome da talidomida, esse também deveria ser um benefício indenizatório sem limitador de renda familiar, uma vez que, muitas dessas crianças podem vir a não conseguir desenvolver economia própria.

A vulnerabilidade financeira das famílias com crianças acometidas pela microcefalia é notória, onde os cuidados especiais que essas crianças necessitam, acaba por forçar um cuidado fora do comum da família, o que por vezes, faz que um de seus membros, em geral as mulheres, parem de laborar, para se dedicar aos cuidados do filho.

Atualmente, alguns projetos de lei, estão tramitando no sentido de conceder benefícios de pensão mensal às pessoas diagnosticadas com microcefalia causada pelo vírus da zika, como por exemplo, o PL do Senado n° 452/2017; PL do Senado n° 255/2016[21] e PL do Senado n° 88/2016[22].

O PL 452/2017[23], por exemplo, busca conceder benefício vitalício, mensal e indenizatório em valor a ser calculado em função da gravidade da doença. Esse projeto de lei que tramita no senado, está aguardando análise pela Comissão de Assuntos Econômicos afim de verificar o impacto financeiro da implementação dessa lei[24].

Na justificativa do PL 452/2017, o autor deixa claro o caráter indenizatório do benefício devido a ineficiência do Estado no combate ao mosquito Aedes aegypti. O projeto prevê que o recebimento dessa pensão especial, não irá prejudicar o recebimento de outros benefícios assistenciais ou previdenciários[25]. O PL designa que caberá ao INSS o processamento, manutenção e pagamento do benefício. Já seu custeio, virá do Tesouro Nacional em conta orçamentária específica do Ministério do Desenvolvimento Social.

A proposta, porém, peca em prever a limitação de renda familiar para a concessão do benefício.

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Sobre o autor
Priscila Machado de Almeida Duarte de Sousa

Advogada. Formada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Possui MBA em Gestão de Pessoas pela PUC-RIO. Atualmente cursa especialização em Direito do Trabalho na PUC-MINAS e em Direito Previdenciário no Legale/SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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