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Sujeitos dos atos de improbidade:

reflexões

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20/06/2005 às 00:00
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3. Sujeitos Ativos dos Atos de Improbidade

No microssistema instituído pela Lei nº 8.429/92, os atos de improbidade somente podem ser praticados por agentes públicos, com ou sem o auxílio de terceiros. Sobre o alcance desse designativo, assim dispõe o art. 2º do referido diploma legal, verbis:

Art. 2º Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.

Como se constata pela análise desse preceito, a concepção de agente público não foi construída sob uma perspectiva meramente funcional, sendo definido o sujeito ativo a partir da identificação do sujeito passivo dos atos de improbidade, havendo um nítido entrelaçamento entre as duas noções.

Além daqueles que desempenham alguma atividade junto à administração direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, os quais são tradicionalmente enquadrados sob a epígrafe dos agentes públicos em sentido lato, a parte final do art. 2º (nas entidades mencionadas no artigo anterior) torna incontroverso que também poderão praticar atos de improbidade as pessoas físicas que possuam algum vínculo com as entidades que recebam qualquer montante do erário, quais sejam: a) empresa incorporada ao patrimônio público; b) entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual; c) entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual; d) entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público.

Assim, coexistem lado a lado, estando sujeitos às sanções previstas na Lei nº 8.429/92, os agentes que exerçam atividade junto à administração direta ou indireta (perspectiva funcional), e aqueles que não possuam qualquer vínculo com o Poder Público, exercendo atividade eminentemente privada junto a entidades que, de qualquer modo, entrem em contato com numerário de origem pública (perspectiva patrimonial). Como se vê, trata-se de conceito aparentemente mais amplo que o utilizado pelo art. 327 do Código Penal.

Nessa linha, para os fins da Lei de Improbidade, tanto será agente público o presidente de uma autarquia, como o proprietário de uma pequena empresa do ramo de laticínios que tenha recebido incentivos, fiscais ou creditícios, para desenvolver sua atividade.

Por evidente, o status de agente público haverá de ser aferido a partir da análise do vínculo existente entre o autor do ato e o sujeito passivo imediato por ocasião de sua prática, ainda que quando da deflagração das medidas necessárias à persecução dos atos de improbidade outra seja a sua situação jurídica. Aplica-se, aqui, a regra tempus regit actum, sendo desinfluente a ulterior dissolução do vínculo que unia o ímprobo ao sujeito passivo do ato.

Os elementos que compõem o art. 2º da Lei nº 8.429/92 conferem grande amplitude conceitual à expressão agente público, se não vejamos:

a) lapso de exercício das atividades: irrelevante, podendo ser transitório ou duradouro;

b) contraprestação pelas atividades: irrelevante, podendo ser gratuitas ou remuneradas;

c) origem da relação: irrelevante, pois o preceito abrange todas as situações possíveis – eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo;

d) natureza da relação mantida com os entes elencados no art. 1º: mandato, cargo, emprego ou função.

À mingua de uma maior uniformidade terminológica na doutrina e partindo-se da disciplina delineada pela Lei nº 8.429/92, a expressão agente público deve ser considerada o gênero do qual emanam as diversas espécies.

Trata-se de conceito amplo e que abrange os membros de todos os Poderes, qualquer que seja a atividade desempenhada, bem como os particulares que atuem em entidades que recebam verbas públicas, podendo ser subdividido nas seguintes categorias: agentes políticos, agentes particulares colaboradores, servidores públicos e agentes meramente particulares.

Como derivação lógica do sistema da Lei nº 8.429/92, não bastará a identificação da condição de agente público e do correspondente vínculo com um dos sujeitos passivos em potencial dos atos de improbidade para que possa ser divisada a prática de atos de improbidade. É necessário, ainda, que o indivíduo pratique o ato, que pode ser comissivo ou omissivo, [32] em razão de sua especial condição de agente público. Assim, não praticará ato de improbidade aquele que, verbi gratia, seja servidor de uma unidade da Federação e, estando de férias, danifique bens pertencentes a ente de outra unidade. Obviamente, neste singelo exemplo, a condição de agente público não apresentou qualquer relevância para a prática do ato, já que desvinculado do exercício funcional.

3.1. Agentes Políticos

Agentes políticos são aqueles que, no âmbito do respectivo Poder, desempenham as funções políticas de direção previstas na Constituição, [33] normalmente de forma transitória, sendo a investidura realizada por meio de eleição (no Executivo, Presidente, Governadores, Prefeitos e, no Legislativo, Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais, Deputados Distritais e Vereadores) ou nomeação (Ministros e Secretários Estaduais e Municipais).

Tese surpreendente e que tem merecido certo prestígio entre alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal [34] é a de que os atos de improbidade, em verdade, redundariam em crimes de responsabilidade, somente sujeitando o agente político à responsabilidade de igual natureza. Os artífices dessa curiosa e criativa tese argumentam que boa parte dos atos de improbidade encontram correspondência na tipologia da Lei nº 1.079/50, que trata dos crimes de responsabilidade, o que seria suficiente para demonstrar que a infração política absorveria o ato de improbidade. Além disso, o próprio texto constitucional, em seu art. 85, V, teria recepcionado esse entendimento ao dispor que o Presidente da República praticaria crime de responsabilidade sempre que atentasse contra a probidade na administração, o que possibilitaria o seu impeachment.

O impeachment, desde a sua gênese, é tratado como um instituto de natureza político-constitucional que busca afastar o agente político de um cargo público que demonstrou não ter aptidão para ocupar. Os crimes de responsabilidade, do mesmo modo, consubstanciam infrações políticas, sujeitando o agente a um julgamento de igual natureza. [35] Essa constatação, por si, já demonstra o desacerto da tese que procura equipará-los às condutas disciplinadas pela Lei de Improbidade, afeitas à seara cível e sujeitas a uma relação processual conduzida por um órgão jurisdicional.

Afigura-se induvidoso, no entanto, que os detentores de mandato político (Parlamentar, Governador, Prefeito etc.) devem observar os princípios estatuídos no art. 37 da Constituição, pois não seria razoável sustentar que esse preceito, o que inclui o seu parágrafo quarto, somente seria aplicável aos demais servidores públicos. Estes possuem disciplina autônoma nos arts. 39 e ss da Constituição da República, não sendo demais lembrar que muitos dos detentores de mandato político ocupam o mais alto grau hierárquico do Poder Executivo, qualquer que seja o ente da Federação, o que os erige à condição de principais destinatários das normas que disciplinam a administração pública e que definem os atos de improbidade.

Entender que ao Legislativo é defeso atribuir conseqüências criminais, cíveis, políticas ou administrativas a um mesmo fato, inclusive com identidade de tipologia, é algo novo na ciência jurídica. Se o Constituinte não impôs tal vedação, será legítimo ao pseudo-intérprete impô-la? E o pior, é crível a tese de que a Lei nº 1.079/50 é especial em relação à Lei nº 8.429/92, culminado em absorver a última? É defeso que o agente público responda por seus atos em diferentes esferas, todas previamente definidas e individualizadas pelo Legislador? Como é fácil perceber, é por demais difícil sustentar que uma resposta positiva a esses questionamentos possa ser amparada pela Constituição, pela moral ou pela razão.

3.2. Agentes Particulares Colaboradores

Os agentes particulares colaboradores executam determinadas funções de natureza pública, por vezes de forma transitória e sem remuneração [36] (ex.: jurados, mesários, escrutinadores, representantes da sociedade civil em conselhos [37] etc.), abrangendo, para os fins da Lei de Improbidade, aqueles que tenham sido contratados especificamente para o exercício de determinada tarefa.

Segundo Carvalho Filho, [38] "são também considerados agentes particulares colaboradores os titulares de ofícios de notas e de registro não oficializados (art. 236, CF) e os concessionários e permissionários de serviços públicos". Hely Lopes Meirelles [39] fala em agentes delegados, entendendo que devem responder civil e criminalmente sob as mesmas normas da Administração Pública de que são delegados (art. 37, § 6º, da CR/88 e art. 327 do CP), "pois não é justo e jurídico que a só transferência da execução de uma obra ou de um serviço originariamente público a particular descaracterize a sua intrínseca natureza estatal e libere o executor privado das responsabilidades que teria o Poder Público se o executasse diretamente".

Neste particular, no entanto, a Lei nº 8.429/92 adotou uma posição restritiva, não abrangendo, em seu art. 2º, aqueles que possuam vínculo com as concessionárias e permissionárias de serviços públicos que não tenham sido criadas ou custeadas pelo erário, ou que não recebam subvenções, benefícios ou incentivos deste. A execução de serviços públicos por meio de concessão, permissão ou autorização é forma de descentralização administrativa, não guardando sinonímia com a concepção de Administração indireta adotada pelo Decreto-Lei nº 200/67 e referida no art. 1º da Lei nº 8.429/92.

Ainda que a entidade particular preste um serviço público, tal, por si só, não tem o condão de sujeitar seus empregados aos termos da Lei de Improbidade, sendo imperativa a existência de investimentos do erário para a individualização do sujeito passivo do ato de improbidade e a conseqüente incidência do referido art. 2º. A conclusão diversa se chegará analisando-se a situação dos delegatários do serviço público, pessoas físicas ou jurídicas, os quais, diversamente dos seus empregados, efetivamente mantém um vínculo com o órgão delegante, do que resulta a sua condição de sujeitos ativos em potencial dos atos de improbidade.

Em sentido contrário, Carlos Frederico Brito dos Santos [40] sustenta que os empregados das empresas contratadas para o desempenho de atividades terceirizadas junto à administração pública efetivamente exercem uma função pública e com ela mantém um vínculo de natureza indireta, o que, à mingua de qualquer restrição no art. 2º da Lei nº 8.429/92, os conduz à condição de sujeitos ativos em potencial dos atos de improbidade. Não obstante a coerência dos argumentos, não nos parece que o sistema os recepcione.

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Com efeito, destoa da lógica do razoável sujeitar o empregado de uma empresa privada, pelo simples fato de exercer temporariamente suas atribuições junto ao Poder Público, aos mesmos deveres dos agentes públicos sem norma que torne clara tal sujeição. Essa conclusão deflui da inexistência de qualquer liame com o Poder Público, já que o vínculo é restrito à empresa que os contratou e que estabeleceu as diretrizes a serem observadas no desempenho de suas funções. Vínculo indireto, em verdade, soa como mero eufemismo, pois vínculo nunca ouve. E ainda, a coerência desse raciocínio exigiria a sua aplicação em outras vertentes, o que certamente romperia com a coerência do sistema. À guisa de ilustração, pode ser mencionada a extensão da vedação à acumulação de cargos públicos, prevista no art. 37, XVI, da Constituição da República, aos servidores públicos que, concomitantemente, sejam empregados de empresas privadas que prestem serviços ao Poder Público, o que, induvidosamente, não tem amparo no texto constitucional. As normas sancionadoras, a exemplo daquelas que instituam exceções à regra geral, devem ser interpretadas de forma a mantê-las em harmonia com o sistema e a não ampliar indiscriminadamente o seu alcance. Os sujeitos ativos do ato de improbidade são individualizados a partir da identificação do sujeito passivo, e o art. 1º da Lei nº 8.429/92, decididamente, não encampa a administração descentralizada na amplitude sugerida.

3.2.1. Árbitros

Buscando conferir maior celeridade e, por via reflexa, maior efetividade, à solução dos conflitos de interesses, o legislador pátrio, na senda de inúmeros outros países, redimensionou o instituto da arbitragem.

O outrora denominado compromisso, na forma em que disciplinado pelo Código Civil de 1916, era estruturado como um pacto acessório escrito, por meio do qual as pessoas capazes de contratar louvavam-se em árbitros para a solução de suas pendências judiciais ou extrajudiciais. [41] Esse pacto, normalmente denominado de cláusula compromissória ou pactum de compromittendo, ensejava o surgimento de uma obrigação de fazer, cuja ineficácia era quase total, pois não obstava o acesso ao órgão jurisdicional competente para o exame da controvérsia. Por essa razão, não obstante celebrado o pacto, escolhido o árbitro e dirimido o conflito, poderia a parte que se sentisse prejudicada pleitear a desconstituição dos atos praticados junto ao Poder Judiciário. Esse dogma, aliás, parecia intocável, pois não se mostrava possível subtrair ao exame do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito.

Desvinculando-se das vetustas amarras da cláusula compromissória, foi editada, em 23 de setembro de 1996, a Lei nº 9.307, que "dispõe sobre a arbitragem". O principal avanço desse diploma legal foi contemplado em seu art. 18: "O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário". Examinando a compatibilidade desse preceito com a regra do art. 5º, XXXV, da Constituição da República, o Supremo Tribunal Federal terminou por reconhecer a impossibilidade de o Poder Judiciário rever a sentença arbitral. [42] Com isto, conferiu-se perspectivas de efetividade a esse instrumento de pacificação social. [43]

Os árbitros e os tribunais arbitrais desempenham atividade de natureza essencialmente privada, não mantendo qualquer vínculo ou relação de subordinação com o Poder Público. Para assegurar a fiel execução do munus que lhes é outorgado, devem proceder com "imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição". [44] Além disso, estão sujeitos às normas que definem as hipóteses de suspeição e impedimento dos juízes, [45] tendo "o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência". [46] Em que pese a ausência de vínculo com o Poder Público, a natureza da atividade desenvolvida aconselhou a extensão, aos árbitros, do mesmo sistema de responsabilidade penal a que estão sujeitos os funcionários públicos. Segundo o art. 17 da Lei nº 9.307/96, "os árbitros, quando no exercício de suas funções ou em razão delas, ficam equiparados aos funcionários públicos, para os efeitos da legislação penal." Essa norma de adequação típica é necessária na medida em que os árbitros, apesar de exercerem uma relevante função pública (rectius: de interesse público), não são e não podem ser confundidos com funcionários públicos. No entanto, no exercício da função, estarão sujeitos às mesmas normas penais incriminadoras que incidem sobre aqueles (v.g.: crimes de concussão, corrupção, prevaricação etc.).

O sistema de responsabilização penal a que estão sujeitos os árbitros é digno de encômios, pois, ressalvada a ausência do poder de coerção, suas decisões terão relevância semelhante àquelas emanadas dos órgãos jurisdicionais, o que torna induvidosa a importância de sua atividade no contexto social. A única crítica que deve ser feita ao art. 17 da Lei nº 9.307/96 reside na ausência de qualquer referência à Lei de Improbidade Administrativa.

O fato de os árbitros estarem sujeitos à legislação penal concernente aos funcionários públicos não legitima a tese de que devem ser considerados como tais para todos os efeitos legais. A uma, não fosse a regra do art. 17 da Lei nº 9.307/96 seria injurídico submetê-los ao mesmo tratamento jurídico dispensado aos funcionários públicos, pois com estes não se identificam. A duas, o disposto no art. 17 tem alcance eminentemente restrito, sendo expresso ao dispor que a equiparação com os funcionários públicos se dá "para os efeitos da legislação penal". A três, os árbitros não mantém qualquer tipo de vínculo com a administração direta ou indireta, ou mesmo com entidades que recebam recursos do erário, logo, não são considerados agentes públicos para os fins do art. 2º da Lei nº 8.429/92. A quatro, a relação entre o plus da legislação penal e o minus da legislação civil é insuficiente para legitimar uma conclusão a fortiori, pois tal raciocínio importaria em uma simbiose não autorizada entre sistemas dotados de individualidade própria. A cinco, apesar da incongruência resultante da correta exegese do art. 17 da Lei nº 9.307/96, não nos parece possível a utilização da analogia nessa seara, máxime por acarretar a aplicação de severas sanções a quem reconhecidamente não é agente público - apesar de ser tratado como tal na esfera penal.

No mais, deve-se realçar que a função pública desempenhada pelos árbitros não pode ser reconduzida a qualquer das figuras contempladas no art. 2º da Lei de Improbidade. Em abono desse entendimento, afigura-se oportuno lembrar a lição de Rafael Bielsa [47] ao tecer comentários sobre o que se deve entender por função pública. Dizia o jurista: "para responder a isto é necessário distinguir a noção geral e comum de função pública dentro de um poder do Estado do que é função pública fora desse poder, porém necessária para a constituição mesma dos poderes, como a de eleger, no regime representativo, ou, ainda, aprovar decisões (referendum) ou a continuidade do desempenho do cargo no tocante a certos funcionários (recurso de destituição), ou a validade ou legitimidade de certos atos, mediante a ‘ação popular’. Na ordem política, é possível realizar funções públicas sem ser funcionário no sentido de órgão do Estado; tal é a função do sufrágio. Com efeito, o cidadão eleitor contribui com o seu voto, ou seja, com a sua vontade, para a formação efetiva dos poderes, ao designar as pessoas que devem exercê-los. É evidente que se trata de um poder político, que como tal se atribui e se exerce de acordo com um regime legal. É uma função necessária, porque, se não fosse exercida, os poderes ficariam, praticamente, acéfalos, ou sem os órgãos vivos que deveriam exprimir a vontade do Estado. Dado, pois, esse caráter de necessidade, regularidade, legalidade da atividade do eleitor, para assegurar a continuidade do Estado, é impossível deixar de considerar o sufrágio como função pública, embora o eleitor não seja funcionário no sentido da atividade pessoal posta ao serviço do Estado, em forma permanente".

Partindo-se da substanciosa lição do publicista argentino, constata-se que o árbitro efetivamente exerce uma função pública, sendo extremamente útil à administração da Justiça e, por via reflexa, à própria pacificação social. [48] No entanto, essa função pública não guarda similitude com aquela prevista no art. 2º da Lei nº 8.429/92, já que esta última pressupõe a existência de uma relação jurídica de natureza funcional com as entidades elencadas no art. 1º da Lei de Improbidade.

Essa relação jurídica se caracteriza como um vínculo mantido entre o agente e o sujeito passivo do ato de improbidade, em que haja voluntariedade em sua origem e que verse sobre um objeto lícito. O árbitro, a exemplo do eleitor e do próprio autor de uma ação popular, exerce uma função pública, mas, por não possuir nenhum vínculo com a administração pública, não estará sujeito às cominações da Lei de Improbidade. De lege ferenda, é aconselhável que a incongruência detectada no art. 17 da Lei nº 9.307/96 seja remediada, com a conseqüente extensão aos árbitros, face à relevância social de sua atividade, do mesmo sistema a que estão sujeitos os demais agentes públicos.

3.2.2. Delegatários das Serventias do Registro Público

Em linhas gerais, os serviços notariais e de registro estão disciplinados na Lei nº 8.935/94, que regulamentou o art. 236 da Constituição da República. Trata-se de atividades delegadas que são desempenhadas por profissionais do direito, [49] dotados de fé pública, que, a depender da especificidade do serviço, recebem a designação de notário ou tabelião e oficial de registro ou registrador.

Tais atividades são prestadas em caráter privado, mas com estrita fiscalização do Poder que as delega [50], o que é derivação lógica de sua natureza e da importância que ostentam perante o organismo social. A delegação pressupõe, dentre outros requisitos, a prévia habilitação em concurso público de provas e títulos, [51] realizado pelo Poder Judiciário, com a participação, em todas as suas fases, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público, de um notário e de um registrador. [52]

Para bem desempenhar suas atividades, "os notários e os oficiais de registro poderão, para o desempenho de suas funções, contratar escreventes, dentre eles escolhendo os substitutos, e auxiliares como empregados, com remuneração livremente ajustada e sob o regime da legislação do trabalho". [53]

Aos notários e registradores é atribuída a responsabilidade exclusiva de gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhes estabelecer normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços. [54] Essa responsabilidade, no entanto, não exclui a possibilidade de fiscalização do Poder responsável pela delegação do serviço. [55]

Os notários e registradores responderão pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros. [56] No que concerne à responsabilidade criminal, é aplicável, no que couber, a legislação relativa aos crimes contra a administração pública. [57]

Objetivando obstar a influência de fatores exógenos no desempenho da atividade registral, a Lei nº 8.935/94 veicula uma série de incompatibilidades e impedimentos ao exercício da função: a) é incompatível com o exercício da advocacia, o da intermediação de seus serviços ou o de qualquer função, cargo ou emprego público, ainda que em comissão; b) com exceção do cargo de vereador, face à regra do art. 38, III, da Constituição da República, [58] a diplomação, na hipótese de mandato eletivo, e a posse, nos demais casos, implicarão no afastamento da atividade; e c) o notário e o registrador não poderão praticar, pessoalmente, qualquer ato de seu interesse, ou de interesse de seu cônjuge ou de parentes, na linha reta, ou na colateral, consangüíneos ou afins, até o terceiro grau. [59]

Os notários e registradores têm direito à percepção de emolumentos pelos atos praticados na serventia, [60] estando sujeitos a um extenso rol de deveres. [61]

Caso descumpram os deveres que lhes são impostos ou violem a norma proibitiva implícita no rol de infrações disciplinares, estarão sujeitos às sanções previstas em lei, [62] que variam de uma mera repreensão até a perda da delegação. [63] A perda da delegação dependerá de sentença judicial transitada em julgado ou de decisão decorrente de processo administrativo instaurado pelo juízo competente, [64] sendo admitido o afastamento cautelar do notário ou do registrador. [65]

Extinguir-se-á a delegação no caso de morte, aposentadoria facultativa, invalidez, renúncia, decretação de perda da delegação ou descumprimento da gratuidade prevista na Lei nº 9.534/97 (assentos do registro civil de nascimento e do de óbito, bem como a primeira certidão).

Na medida em que os notários e registradores exercem atividade delegada do Poder Público, com ele mantendo um vínculo contratual, são eles, a teor do art. 2º da Lei nº 8.429/92, sujeitos ativos em potencial dos atos de improbidade. Por tal razão, em praticando tais atos, estarão sujeitos às sanções cominadas no art. 12 do referido diploma legal. Como exemplos de atos de improbidade verificados no cotidiano desses agentes, podem ser mencionados a cobrança de emolumentos em valor superior ao tabelado, o não reconhecimento de direitos dos reconhecidamente pobres etc.

Igual entendimento, aliás, já foi exposto em relação às concessionárias e permissionárias de serviços públicos. A peculiaridade reside na circunstância de, diferentemente do que normalmente se verifica em relação às últimas, também aqueles que possuam algum vínculo com os notários e registradores (v.g.: seus empregados) podem ser sujeitos ativos dos atos de improbidade. Essa conclusão deflui da constatação de que os emolumentos percebidos pelas serventias possuem a natureza jurídica de taxa, espécie do gênero tributo. [66] Tratando-se de receita oriunda do exercício do poder de império estatal, sendo imposta a tantos quantos estejam obrigados a utilizar tais serviços essenciais, está ela enquadrada sob a epígrafe dos recursos públicos, o que permite a subsunção do notário ou do registrador ao disposto no art. 1º da Lei de Improbidade ("entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual").

À luz do exposto, notários e registradores, a um só tempo, poderão figurar como sujeitos ativos (isto sob a ótica do vinculo contratual mantido com o Poder Público) ou passivos imediatos (aqui em relação à sua condição de receptores de numerário de origem pública e do vínculo empregatício estabelecido com seus funcionários) dos atos de improbidade.

3.3. Servidores Públicos

Ainda sob a ótica da classificação dos sujeitos ativos dos atos de improbidade, servidores públicos são aqueles que, qualquer que seja o regime jurídico a que estejam submetidos, possuem um vínculo permanente com os entes estatais da administração direta ou indireta, desempenham funções próprias destes ou outras úteis à sua consecução e são remunerados por seus serviços, estando aqui incluídos os membros do Ministério Público, do Poder Judiciário e dos Tribunais de Contas.

Os servidores públicos podem ser subdivididos em duas categorias básicas: a dos servidores civis e a dos militares. A Constituição da República, em sua redação original, utilizava a nomenclatura "servidores públicos civis" e "servidores públicos militares". Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 18, de 5 de Fevereiro de 1998, a primeira categoria passou a ser denominada de "servidores públicos", [67] enquanto que à segunda foi dispensado o tratamento de "Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios". [68] De forma correlata a esta última categoria, possuem disciplina autônoma, mas com diversos pontos de contato, os militares das Forças Armadas mantidas pela União Federal (art. 142, § 3º, da CR/88).

É relevante observar que a alteração de ordem semântica introduzida pela EC nº 18 não tem o condão de alterar a natureza dos institutos. Assim, apesar de não mais serem intitulados de servidores públicos, os militares dos Estados, a exemplo daqueles que integram as Forças Armadas, devem ser considerados como tais, [69] pois prestam serviços de natureza eminentemente pública, possuem um vínculo funcional com os entes da federação e são remunerados por estes pela atividade desempenhada. O ingresso no serviço militar se dá por meio de recrutamento ou de concurso, sendo a carreira estruturada em patentes, para os oficiais, e graduacão, para as praças. O principal elemento que os diferencia dos servidores civis consiste na intensa e inafastável obediência à hierarquia e à disciplina.

3.3.1. Agentes de Fato

Não raro ocorrerá que determinadas atividades estatais venham a ser exercidas por agentes que não tenham ingressado no serviço público por uma investidura regular, o que exige seja identificado se estarão eles sujeitos aos ditames da Lei de Improbidade.

Como foi dito, em linha de princípio, somente os agentes que mantenham algum tipo de vínculo com as entidades enumeradas no art. 1º da Lei de Improbidade estarão sujeitos às suas prescrições. Para os fins dessa exposição, consideramos relação jurídica todo vínculo mantido entre o agente e o sujeito passivo do ato de improbidade, em que haja voluntariedade em sua origem e que verse sobre um objeto lícito.

Assim, os denominados agentes de fato, em contraposição aos agentes de direito, somente serão considerados agentes públicos (para os fins da Lei de Improbidade) quando assumirem tal posição por força de ato voluntário do ente lesado, tendo por fim a consecução, ainda que dissimulada, de um objeto lícito. Não sendo identificado um vínculo com o ente lesado, ter-se-á a possível configuração do crime de usurpação de função pública, [70] o qual sujeitará o agente a sanções outras que não aquelas previstas na Lei nº 8.429/92.

Os agentes de fato passíveis de praticar atos de improbidade (rectius: os que possuem algum tipo de vínculo) podem ser subdivididos em duas categorias: os agentes necessários e os putativos. São agentes necessários aqueles que, em colaboração e com a aquiescência do Poder Público, executam determinada atividade em situação excepcional (v.g.: calamidade pública, guerra etc.). Agentes putativos são todos aqueles que, embora não tenham sido investidos com estrita observância do procedimento previsto em lei, desempenham uma atividade pública com a presunção de legitimidade (v.g.: agente admitido em cargo efetivo sem a realização de concurso público etc.). [71]

3.4. Agentes meramente Particulares

Agentes meramente particulares são aqueles que não executam nenhuma função de natureza pública e mantém um vínculo com o ente recebedor de numerário público (ex.: sócio-quotista de empresa beneficiária de incentivos fiscais, empregado desta etc.). Estes últimos não realizam nenhuma atividade no âmbito dos denominados Poderes Estatais, não se submetem ao regime jurídico próprio dos servidores públicos, não estão sujeitos às limitações que alcançam àqueles (como as incompatibilidades, as inelegibilidades etc.), mas submetem-se à disciplina da Lei nº 8.429/92, naquilo que for compatível com sua situação.

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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. Sujeitos dos atos de improbidade:: reflexões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 715, 20 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6912. Acesso em: 24 abr. 2024.

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