Reflexões sobre a obra 'O Problema da Justiça', de Hans Kelsen

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Para Hans Kelsen, a teoria do direito natural é uma teoria jurídica dualista, enquanto que a Teoria Pura do Direito é uma teoria jurídica monista, segundo a qual, só existe um direito: o direito positivo.

I – AS NORMAS DA JUSTIÇA

Para Kelsen, a justiça é uma qualidade ou atributo que pode ser afirmado de diferentes objetos. Como todas as virtudes, também a virtude da justiça é uma qualidade moral; e, neste sentido, a justiça pertence ao domínio da moral. A conduta de um indivíduo é justa quando, no seio de uma sociedade, se prescreve tal conduta, ou seja, quando se a eleva como um valor de justiça. 

Este autor conceitua justiça como sendo a qualidade de uma conduta humana específica, de uma conduta que consiste no tratamento dado a outros homens. O juízo segundo o qual uma tal conduta é justa ou injusta representa uma apreciação, uma valoração de conduta. 

Ele considera que somente um fato da ordem do ser pode, quando confrontado com uma norma, ser julgado como valioso ou desvalioso, pode ter uma valor positivo ou negativo.

Destaca que uma norma jurídica não pode ser objeto de um juízo de valor, pois se assim o fizermos, iremos compararmos as normas do direito positivo (direito posto) com uma norma de justiça.

 Em outras palavras, Hans Kelsen quer afirmar aqui que uma norma de justiça vale e deve ser aplicada porque existe (no ordenamento jurídico), e não porque é justa.

Afirma ainda que a justiça e a injustiça, que são afirmadas como qualidades de uma norma jurídica positiva cuja validade é independente desta sua justiça ou injustiça, não são qualidades desta norma, mas qualidades do ato pelo qual ela é posta, do ato de que ela é o sentido.

Para este doutrinador, não é possível que algo deva ser e não deva ser ao mesmo tempo. Portanto, do ponto de vista de uma norma de justiça considerada como válida, não pode ser considerada válida uma norma do direito positivo que a contradiga, assim como, do ponto de vista de uma norma do direito positivo tida como válida, não pode ser considerada válida uma norma de justiça que a contrarie, ou seja, não se pode considerar, ao mesmo tempo, como normas válidas, normas de direito positivo e normas de justiça que se contradigam.

Ressalta este autor que seria um contra-senso presumir que o direito positivo pode ser justo, mas não pode ser injusto. Se o direito positivo não pode ser injusto, também não pode ser justo. Ele pode ser justo ou injusto ou nem justo e nem injusto.

Ele afirma que admitir que a validade de uma norma do direito positivo é independente da validade de uma norma de justiça é justamente o princípio do positivismo jurídico.

Afirma também que as normas de justiça possuem um caráter geral, ou seja, tem validade não apenas em um caso singular, mas vale para um número indeterminado de casos iguais, que não podem ser previstos de antemão.

O conceito de justiça, ao contrário da norma de justiça, apenas determina os elementos ou qualidades que um objeto concreto possuirá para nele se enquadrar. Em outras palavras, no conceito de justiça, não se estatui que o objeto deve ter tais ou determinados elementos ou qualidades.

Kelsen destaca que uma norma pode ser deduzida apenas de outra nroma, um dever-ser pode ser derivado apenas de um dever-ser.

No silogismo, se parte de uma premissa maior, depois se apresenta uma premissa menor (relacionada à premissa maior), e por fim, chega-se a uma conclusão.

Aqui ele afirma que somente a norma geral expressa na premissa maior é o fundamento de validade da norma individual na conclusão. Afirma ainda que a estrutura do silogismo normativo é a mesma do silogismo teórico. Para tanto, exemplifica: “...- premissa maior: “todos os homens são mortais”; premissa menor: “Eu sou um homem; conclusão: “Eu sou mortal”. A conclusão é deduzida da premissa maior, na qual já está contida; e pode estar contida apenas na premissa maior, tal como a conclusão , é uma proposição de dever-ser, ao passo que nestas todas as três proposições são proposições ou juízos de realidade”.

Hans Kelsen critica o argumento, muito divulgado, segundo o qual devemos nos conduzir de certa maneira porque o legislador ou Deus querem, isto é, ordenam que assim nos conduzamos. Para ele, tal fato não passa de uma falsa ilação, pois a conclusão só é possível se pressupomos a norma segundo a qual nós nos devemos conduzir como o legislador quer ou como Deus quer.

Para este consagrado jurista austríaco, o fundamento de validade de uma norma positiva, isto é, de uma norma posta através de um ato de vontade, não é o ato que põe esta norma ou põe uma norma superior, quer dizer, o ato cujo sentido objetivo é a norma inferior ou a norma, mas a norma superior, que é pressuposta como objetivamente válida e que opera a fundamentação da validade da norma hierarquicamente inferior precisamente pelo fato de legitimar o sentido subjetivo do ato que põe esta norma como seu sentido objetivo, ou seja, como norma válida objetivamente. Neste sentido, a ordem de um salteador de estradas, por não possuir base em norma que fundamente a sua validade, não é válida, apesar de ter o potencial de surtir efeito, apenas e exclusivamente, pela ameaça que constitui para a vítima o seu não cumprimento. O fundamento de validade das normas de um dado ordenamento jurídico, segundo Kelsen, seria a norma fundamental.

Hans Kelsen finaliza afirmando que a questão de saber por que é que consideramos uma norma como justa conduz a uma norma fundamental por nós pressuposta que consideramos o valor de justiça.

Para ele a tarefa da ciência é analisar objetivamente as diversas normas que os homens consideram válidas quando valoram algo como “justo”. Como ciência, não se tem de decidir o que é justo, isto é, prescrever como devemos tratar os seres humanos, mas descrever aquilo que de fato é valorado como justo, sem se identificar a si própria como um destes juízos de valor.

Segundo compreendia e ensivana, podem existir dois tipos distintos de normas de justiça: um tipo metafísico e um tipo racional. As primeiras caracterizam-se pelo fato de se apresentarem como procedentes de uma instância transcendente, para além de todo o conhecimento humano experimental. O ideal desta justiça é absoluto: de conformidade com o seu próprio sentido imanente, exclui a possibilidade de qualquer outro ideal de justiça. Já as segundas caracteriza-se pelo fato de não pressuporem como essencial nenhuma crença na existência de uma instância transcendental, pelo fato de poderem ser pensadas como instituídas por atos humanos da experiência e poderem ser entendidos pela razão humana.

No entanto, ele ressalta que as normas de justiça do tipo racional podem na realidade ser também representadas como postas por uma instância transcendente (descritas como vontade da divindade), mas isto não lhes é essencial, pois podem ser compreendidas pela razão humana, ser racionalmente concebidas.

Este autor frisa que se reconhecermos que existem vários ideais de justiça, diferentes e contraditórios entre si, nenhum dos quais exclui a possibilidade de um outro, então apenas nos será lícito conferir uma validade relativa aos valores de justiça constituídos através destes ideais.

Segundo ele, suum cuique, é a fórmula de justiça mais frequentemente usada e conhecida, segundo a qual a cada um se deve dar o que é seu, isto é, o que lhe é devido, aquilo a que ele tem uma pretensão (título) ou um direito. Tal fórmula conduz à tautologia de que a cada qual deve ser dado aquilo que lhe deve ser dado. No entanto, para que a aplicação desta norma de justiça ocorra, segundo Kelsen, pressupõe-se a existência de uma ordem normativa que determine o que é para cada um o “seu”.

Este autor explica que a regra de ouro tem como base o seguinte princípio: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”, e a critica, afirmando que se devemos tratar os outros como queremos ser tratados, fica excluída toda punição de um malfeitor, pois nenhum malfeitor deseja ser punido. E continua ressaltando que “ninguém gosta de ser censurado. Sem a possibilidade de censurar, a educação é impossível”.

Ensina que segundo a regra de ouro, quando interpretada ao pé da letra, não seria lícito a legislador, que não é, ele próprio, mais destemido que a maioria dos homens, pôr qualquer norma moral ou jurídica que obrigue a uma tão indesejável conduta.

Kelsen destaca que se a regra de ouro fosse observada, haveria concordância entre os homens, quanto à sua conduta recíproca e não existiria, portanto, nenhum conflito – alcançar-se-ia a harmonia social.

Com a regra de ouro, assim como acontece com a fórmula suum cuique, se harmoniza toda e qualquer ordem social, especialmente toda e qualquer ordem jurídica positiva.

Para ele, o imperativo categórico de Kant: “Age sempre de tal modo que a máxima do teu agir possa por ti ser querida como lei universal” é muito semelhante à regra de ouro, sendo por este considerado como um princípio geral e supremo da moral. Ele é a resposta à questão de saber como devo agir para agir moralmente bem.

Este autor ressalta que Kant creu poder demonstrar que não seria possível querer que certas máximas se transformem em lei universal, procurando mostrar que a vontade de elevar a uma lei universal uma máxima imoral “se contradiria a si própria”. Assim diz ele da máxima que conduz a pôr termo à vida pelo suicídio. E ainda assevera que não se pode seriamente pôr em dúvida que um homem possa de fato querer que a máxima que manda pôr termo à própria vida quando ela é insuportável se torne uma lei universal.

Kelsen critica este imperativo kantiano questionando: de que máxima eu devo querer e de que máxima eu não devo querer que ela se torne uma lei universal. A esta questão afirma que o imperativo categórico não dá nenhuma resposta.

Segundo ele, Kant, ao esclarecer sobre o imperativo analisado disse: “O imperativo categórico, é, portanto, apenas um e único... Ora, se deste único imperativo podem ser deduzidos, como do seu princípio, todos os imperativos do dever, então, ainda que deixemos por decidir se aquilo a que chamamos dever não será pura e simplesmente um conceito vazio, poderemos pelo menos mostrar, apesar de tudo, o que entendemos por dever e o que este conceito quer significar”. Kelsen frisa que à luz da teoria do conhecimento de Kant, mandaria a coerência dizer que uma ciência da moral, de forma alguma pode responder a questão: se não seria mais aconselhável “deixar as coisas morais ao comum juízo da razão (ao senso comum) e apenas utilizar a filosofia, quando muito, para... descrever o sistema moral (system der sitten) de maneira mais acabada e compreesível”.

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Neste sentido, para Hans Kelsen, a ciência da moral só poderia determinar sob que condição ou pressuposto lógico são possíveis os juízos de que algo é bom ou mau e que tal condição é: pressuporem-se como válidas normas gerais que prescrevem uma determinada conduta humana.

A pressuposição de uma ordem moral ou jurídica preexistente que determine o que é bom e o que é mau, e que diz: “faz o bem e evita o mal”; e como norma de justiça: “os homens devem ser bem tratados, e não maltratados” é uma fórmula, em si, vazia, pois só é aplicável sob a pressuposição de uma ordem normativa constituída ou a constituir – um bem absoluto determinado por Deus, desde que não se pressuponha como válida uma ordem divina da justiça.

Kelsen destaca que segundo uma idéia dominante dentro de comunidades primitivas, é correto ou é justo conduzirmo-nos em face de outrem tal como os membros da comunidade se têm conduzido uns para com os outros, há muito tempo. E ainda, considera que a norma de justiça: “devemos tratar outrem tal como os membros da comunidade consuetudinariamente se tratam uns aos outros” pressupõe como justa, não qualquer ordem normativa, mas uma ordem normativa determinada: aquela que corresponde a conduta consuetudinária dos membros de uma determinada comunidade. Ela institui o costume como o valor justiça.

Ele faz referência ao preceito geral do comedimento, que se refere à idéia de que a conduta reta consiste em não exagerar para um de mais nem para um de menos. É a idéia do “áureo” meio-termo aristotélico.

Este jurista austríaco critica esta idéia questionando o que seria o demais e o que seria o de menos?

Hans Kelsen recorda que Aristóteles, dentro desta concepção de meio-termo, assegurou ter encontrado um método científico, uma método matemático-geométrico, para determinar as virtudes, ou seja, para responder à questão de saber o que é moralmente bom. Para tanto, este filósofo concluiu que a virtude é o meio-termo entre dois extremos (dois vícios), sendo um por excesso e o outro por falta. Assim, por exemplo, a virtude da coragem é o meio-termo entre o defeito da covardia (falta de ânimo) e o defeito da temeridade (excesso de ânimo). Esta é a célebre teoria do mesotes.

Para ele, a ética da doutrina do mesotes apenas simula solucionar o seu problema, o problema de saber o que é mau, e, portanto, o que é um vício, e, logo, o que é bom ou o que é uma virtude. Com efeito, a questão de saber o que é bom é respondida com a questão de saber o que é mau; e a resposta a esta última questão é deixada pela ética aristotélica à moral positiva e ao direito positivo, à ordem social dada.

Ele ressalta que a questão decisiva: “o que é a injustiça” não obtem resposta da fórmula de mesotes. A resposta é pressuposta; e Aristóteles pressupõe evidentemente como injusto aquilo que é injusto segundo a moral e o direito positivos. A autêntica função da teoria de mesotes não é determinar a essência da justiça, mas reforçar a vigência do ordenamento social existente, estabelecido pela moral e elo direito positivos.

Aqui Kelsen ressalta que o princípio retributivo é o princípio de justiça mais importante, do ponto de vista histórico. Ele exige uma pena para a falta ou ilícito e possui, psicologicamente, a sua raiz instinto vindicativo do homem. Na medida em que o direito é um comando estatuidor de sanções e as sanções consistem na aplicação coativa de um mal como reação contra um ilícito, o direito corresponde ao princípio da retriuição. Contudo, Kelsen recorda que o princípio da retribuição pode ser aplicado através da concessão de um prêmio (por merecimento) para aquele que se porta conforme a norma, quando houver nesta a previsão de tal prêmio. É a aplicação do preceito moral da gratidão.

Para ele, esta fórmula é tão vazia quanto a fórmula segundo a qual devemos fazer o bem e omitir o mal.

Este jurista frisa que é comum ver-se no princípio retributivo uma aplicação do princípio da igualdade, que por muitos é considerado como sendo o princípio da justiça puro e simples. No entanto, tal aplicação apresenta-se (na visão kelseniana) controvertida, pois se a norma de justiça da igualdade diz que todos os homens devem ser tratados de forma igual, o princípio da retribuição é justamente o oposto do princípio da igualdade, pois, com efeito, ele não postula um tratamento igual mas um tratamento desigual dos homens, enquanto prescreve para aqueles que fazem mal uma pena e para aquele que fazem um bem um prêmio.

a) Contudo, o próprio Kelsen ressalta que é possível ver a idéia de igualdade no fato de, segundo a norma retributiva de justiça, quando em dois casos a falta ou culpa é igual, o castigo ou pena deve ser igual, e quando em dois casos o merecimento é igual, o prêmio deve ser igual.

b) Destaca ainda que o princípio da retribuição estatui que a uma determinada ação – conduta boa ou má de um homem – se deve seguir uma determinada reação. Na forma mais primitiva, o talião é uma referência do princípio retributivo, quando exprime: olho por olho, dente por dente.

c) Para ele, essencialmente análoga é a relação entre ação e relação na segunda parte da norma retributiva, o preceito: ao merecimento a sua recompensa, o bem para o bem. O dever ser conferida a igual mérito igual recompensa não é imanente ao princípio retributivo como tal, mas é conseqüência do caráter geral da norma de retribuição.

d) Por fim,  Kelsen destaca que a relação entre ação e reação na norma retributiva de justiça não é a de igualdade mas a de proporcionalidade. Tal fato exprime-se na norma: “quanto maior for a falta, tanto maior deve ser o castigo; quanto maior o merecimento, tanto maior deve ser a recompensa”. Trata-se aqui da relação de proporcionalidade entre a ação e a reação. Uma conduta não pode corresponder mais ou menos a uma norma ou contrariá-la mais ou menos, e, portanto, não pode ser mais ou menos boa ou mais ou menos má.

Para este autor, proporcionalidade no sentido estrito da palavra só existe, então, entre os valores em sentido subjetivo que a ação e a reação do princípio retributivo representam, quando a relação entre as duas é estabelecida de forma a que, no caso de o valor negativo ou positivo da ação ser multiplicado n vezes, o valor negativo ou positivo seja multiplicado n vezes.

Ele ressalta que uma norma de justiça é aparentada com o princípio da retribuição, sempre que se produz uma conexão entre uma ação e uma reação. A norma completa, para Kelsen, diz: “quando alguém realiza um trabalho ou fornece uma mercadoria, deve receber em troca uma contraprestação – um salário pelo trabalho, um preço pela mercadoria” ou ainda, “ao merecimento a recompensa, o bem para o bem”.

Para este doutrinador, se o pagamento do salário do trabalho é feito em dinheiro, pode haver estrita proporcionalidade nas relações entre a prestação e o salário. Dentro desta relação, distinguem-se dois sistemas de salários, onde no primeiro caso o critério ou medida de trabalho é o tempo de trabalho, e no segundo tal critério ou medida é o produto ou resultado do trabalho. No entanto, segundo Kelsen, esta norma não traduz por si nenhuma proporcionalidade de trabalho e salário, isto porque estas relações podem ser determinadas por toda e qualquer forma e são determinadas, nos quadros de uma economia livre, através da oferta e da procura, e nos caos de uma economia planejada, através de uma regulamentação autoritária.

Kelsen ressalta que Karl Marx, em sua crítica sobre a ordem capitalista, afirma que o princípio de justiça que está na base desta ordem social é o postulado: “igual prestação de trabalho cabe igual salário, isto é, cabe igual participação no produto do trabalho”. Para Kelsen, este seria o pretenso “direito igual” deste sistema econômico, u o direito desigual, pois não toma em consideração as desigualdades entre os indivíduos, no que toca a sua capacidade de trabalho.

Ele afirma que como na realidade nunca dois objetos são completamente iguais, eles apenas poderão ser iguais sob certos aspectos, quer dizer, se ignorarmos a sua desigualdade sob outros aspectos.

Afirma que concorda com o pensamento de Marx, pelo menos em um aspecto: este sistema não representa um direito igual, não, porém, pela razão de que trata igualmente o que é desigual, mas porque trata desigualmente o que é desigual, porque, de conformidade com o princípio da prestação que lhe está na base, alguém que trabalhe durante mais tempo ou produza mais unidades recebe um salário maior do que aquele que trabalhe menos tempo ou produza menos unidades.

Aqui Kelsen destaca que a fórmula proposta por Marx de que: “cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” consta de duas exigências que podem ser entendidas como o sentido de que a primeira postula um dever do indivíduo: o dever ou obrigação de produzir segundo as suas capacidades; e a segunda postula um dever do indivíduo: o direito a satisfação de suas necessidades.

Também perante um segundo postulado do princípio da justiça comunista: “a cada um segundo as suas necessidades”, surge a questão de saber se para tal se pressupõe um critério subjetivo ou um critério objetivo, se por “necessidade” se entenderá aquilo que cada indivíduo de fato sente como necessidade e especialmente se, segundo tal postulado, todas as necessidades neste sentido subjetivo devem ser satisfeitas – ou se apenas devem ser satisfeitas as necessidades reconhecidas pela ordem social como dignas de satisfação e tão-somente segundo uma hierarquização estabelecida pela mesma ordem social e com os meios por ela determinados.

Para ele, o preceito do amor ao próximo exige apenas que libertemos o que sofre dos seus sofrimentos, que minoremos ou suavizemos os seus males, e especialmente, que ajudemos quem está necessitado. Kelsen ressalta que importa observar que o preceito do amor ao próximo, que pode valer independentemente de qualquer pressuposto metafísico, pois exige amor de homem para homem, deve ser distinguido do princípio metafísico do amor a Deus, do princípio de justiça proclamado por Jesus – que também reconhece o preceito do amor ao próximo (caridade).

Ele afirma que na doutrina de Jesus deve ter-se como dogma de fé que o presente Aion ou Era é um reino de Satã ou do Mal que será destruído pelo Aion ou Era do Bem, pelo Reino de Deus, que é o reino da justiça, pois tornará infelizes os que agora são injustamente felizes e fará felizes os que agora são injustamente infelizes.

Para Hans Kelsen um princípio de justiça do mais alto valor político é o que se apresenta com base em um sistema moral em que a liberdade individual é tida como o valor supremo. Dentro desta concepção está a afirmação de que a vida não faz sentido sem a liberdade. Esta liberdade, no entanto, tem de tornar-se liberdade sob a ordem normativa que vincule os homens na sua conduta recíproca. Conclui Kelsen aduzindo que o homem somente deve ser vinculado através de sua própria vontade. Caso contrário, estará cerceado em sua liberdade.

Aqui este autor ressalta que sobre a idéia de liberdade se apóia a teoria do contrato social do jusnaturalismo individualista. Neste sentido, somente será justa uma ordem social instaurada através do acordo dos que lhe estão subordinados. É esta idéia originária de liberdade, o ideal anti-social do não-estar sujeito à vinculação normativa, que leva a exigir que a competência do Estado seja reduzida a um mínimo. É este o ideal de justiça de justiça da democracia liberal, que garante a liberdade da economia, a liberdade de crença, a liberdade da ciência.

Para ele, esta norma de nenhuma forma pressupõe que todos os homens sejam iguais; pelo contrário, ela pressupõe a sua desigualdade. A afirmação de que todos os homens são iguais está em aberta contradição com os fatos. Segundo Kelsen os homens apenas podem ser considerados como iguais, na medida em que as desigualdades que de fato entre eles existem não são tomadas em consideração. Se não há que tomar em conta nenhuma desigualdade, seja ela qual for, todos são iguais e tudo é igual.

A igualdade perante a lei, segundo  Kelsen, pode existir mesmo quando não existir nenhuma igualdade na lei, quer dizer, quando a lei não prescrever nenhum tratamento igualitário. Por exemplo: se uma lei confere aos homens, e não às mulheres, um direito de voto, e portanto, não existe sob este aspecto igualdade na lei, pode no entanto subsistir o princípio da igualdade perante esta lei. Não há nenhuma violação do princípio da igualdade perante a lei. Haverá, no entanto, violação deste princípio da igualdade perante a lei, se um Juiz, acionado a resolver um conflito, decidir que um homem branco, mas não um negro, tem o direito de voto, se a lei a aplicar, na concessão do direito de voto, tomou na verdade em conta a desigualdade dos sexos, mas não a desigualdade de raças.

Kelsen destaca que a justiça é o problema central da filosofia de Platão. Para tanto, ele desenvolveu a famosa Teoria das Idéias. Para Platão, as idéias são essências transcendentes que existem num outro mundo, um mundo diferente do perceptível pelos nossos sentidos, e por isso são inacessíveis ao homem, prisioneiro dos mesmos sentidos.

Da idéia do Bem absoluto, sob a ótica de Platão, diz até que se situa para além de todo o conhecimento racional, isto é, de todo o pensamento. Numa das suas cartas – a sétima – Platão declara que não pode haver nenhum conhecimento conceitual do Bem absoluto mas apenas uma espécie de intuição e que esta intuição se processa pela via de uma vivência mística, que só a poucos é comunicada e tão-somente por graça divina; que é impossível descrever em palavras da linguagem humana o objeto desta intuição mística, isto é, o Bem absoluto.

Hans Kelsen aborda a justiça divida ressaltando que esta situa-se para além de toda ordem possível numa realidade social; e o amor, que é esta justiça, não pode ser a emoção humana a que nós chamamos amor. Isto não só porque é contra a natureza humana amar os inimigos, mas ainda porque Jesus expressamente rejeita o amor humano que liga o homem à mulher, os pais aos filhos. Para Kelsen, o amor que Jesus ensina não é o amor ao homem. É o amor por meio do qual o homem deve tornar-se tão perfeito como o Seu Pai do céu, o qual manda o sol levantar-se sobre os maus e sobre os bons e manda chover sobre justos e injustos.

Ele resgata uma frase de Paulo (primeiro teólogo da religião Cristã), pela qual diz que a sabedoria deste mundo é insensatez em face de Deus, que a filosofia, que é conhecimento lógico racional, não é via de acesso à justiça divina que está encerrada na insondável sabedoria de Deus, que esta justiça apenas nos é revelada por Deus por meio da fé, da fé que atua por meio do amor.

Recorda ainda que Platão ensinava que apenas o justo era feliz. Ressalta também que, de fato, o problema da justiça tem uma importância tão fundamental para a vida social dos homens, a aspiração à justiça está tão arraigada em seus corações, porque, no fundo, emana da sua indestrutível aspiração à felicidade. Por isso, a fonte de justiça, e justamente com ela, também a realização da justiça têm de ser relegadas do Aquém para o Além – temos que nos contentar na terra com uma justiça simplesmente relativa, que pode ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada.

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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