Reflexões sobre a obra 'O Problema da Justiça', de Hans Kelsen

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II – A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL

Segundo hans Kelsen, para a questão da validade do direito é decisiva a relação que se pressuponha entre direito e justiça. Sobre este ponto, apresentam-se duas concepções, completamente opostas. Segundo uma delas, um direito positivo apenas pode ser considerado válido na medida em que suas prescrições correspondam às exigências da justiça: Direito válido é Direito justo. Isto quer dizer que a validade da norma de justiça é o fundamento da validade do direito positivo. Para a outra concepção, um direito positivo não vale pelo fato de ser justo, isto é, pelo fato de a sua prescrição corresponder à norma de justiça – e vale mesmo que seja injusto. A sua validade é independente de uma norma de justiça. Esta é a concepção do positivismo jurídico. Este é um dualismo típico de toda a metafísica: o dualismo que distingue entre uma esfera empírica e uma esfera transcendente, cujo esquema clássico é a Teoria das Idéias de Platão.

Rejeitando a aplicação prática de uma ordem transcendente e absoluta como apta a regular a conduta humana, Kelsen ressalta que todas as ordens jurídicas que revelam aspectos ideológicos de uma justiça humana (terrena), são dotadas de valores relativos. Neste sentido, uma teoria do direito positivista, isto é, realista, não afirma que não haja nenhuma justiça, mas que de fato se pressupõem muitas normas de justiça.

Para ele, uma teoria jurídica positivista não reconhece o fundamento de validade de uma ordem jurídica positiva em nenhuma das muitas normas de justiça, mas como já se mostrou, numa norma hipotética fundamental (pressuposta pelo pensamento jurídico) por força da qual nos devemos conduzir e por força da qual devemos tratar os homens conforme uma primeira constituição histórica, global e regularmente eficaz.

A doutrina do direito natural, na visão de Kelsen, é uma doutrina idealista-dualista do direito, que distingue, ao lado do direito real, do direito positivo, posto pelos homens e, portanto, mutável, um direito ideal, natural, imutável, que identifica com a justiça.

A natureza, segundo este autor, funciona como autoridade normativa, isto é, como autoridade legiferante. Quem observa os seus preceitos atua justamente. Estes preceitos, isto é, as normas de conduta justa, são imanentes à natureza. Não são, portanto normas postas por atos de vontade humana, arbitrárias e, portanto, mutáveis.

Uma doutrina que afirme poder deduzir normas da natureza assenta num erro lógico fundamental. Com efeito esta natureza é um conjunto de fatos que estão ligados uns aos  outros segundo o princípio da causalidade – é um ser; e de um ser não se pode concluir um dever-ser, de um fato não se pode concluir uma norma. Só quando confrontamos o ser com um dever-ser, os fatos com as normas, é que podemos apreciar aqueles por estas e julgá-lo como conforme com as normas, isto é, como bons, como justos, ou como contrário às normas, quer dizer, como maus, como injustos.

Como a natureza encontra-se em constantes mutações, como o ser da natureza é uma devir, um tornar-se, Kelsen aduz que as normas imutáveis do direito natural apenas podem consistir na regularidade observável do saber prático. As normas imutáveis da doutrina do direito natural apenas podem as leis naturais. Se a natureza foi criada ou é regida por um Deus justo, então podem ser reconhecidas normas nas leis da natureza, pode nesta natureza ser encontrado o direito justo. Kelsen destaca que o direito divino é baseado na natureza, já o direito humano é baseado no costume.

Resumidamente, este jurista austríaco ressalta que, na verdade as normas de conduta justas (retas) pretensamente deduzidas da natureza as projeta sobre esta mesma natureza, mostram-no claramente as tentativas de fundamentar o direito natural na natureza do homem, sendo esta “natureza” do homem procurada nas tendências deste, nas suas inclinações e instintos, ou seja, nas suas pulsões, na sua razão ou nos seus sentimentos.

Nos últimos tópicos do livro, Hans Kelsen, destaca que a doutrina jusnaturalista, que se baseia na natureza do homem comum, ou, como ele prefere dizer “normal”, requer uma fundamentação teológica, uma vez que considera o homem como parte da natureza criada por Deus, e que estaria sujeito a lei naturais, as quais estabelecem o bom, o justo e mal e o injusto.

Segundo este autor, dentro da teoria do direito natural, denominada “racionalista”, seus representantes vêem a natureza do homem na sua razão e, consequentemente, procuram deduzir da razão as normas de um direito justo. Este direito natural surge como um direito racional. O justo é o natural, porque é racional.

Ele destaca que alguns têm-se oposto à teoria jurídica positivista da Teoria Pura do Direito, alegando que ela é uma teoria jusnaturalista, uma vez que vê o fundamento de validade do direito positivo na por ela chamada norma fundamental, ou seja, numa norma que se situa fora do direito positivo. No entanto, segundo Kelsen, este é apenas um aspecto que tornam semelhantes a doutrina do jusnaturalismo da Teoria Pura do Direito. Em todos os outros pontos as duas teorias estão em posições completamente opostas.

A teoria do direito natural pergunta pelo fundamento de validade do direito positivo. Também a Teoria Pura do Direito pergunta pelo fundamento de validade de uma ordem jurídica positiva, isto é, de uma ordem coativa criada pela via legislativa ou consuetudinária e globalmente eficaz.

Para ele, a norma fundamental determina somente fundamento de validade, não o conteúdo de validade do direito positivo. Este fundamento de validade é completamente independente do conteúdo de validade. A norma fundamental de uma ordem jurídica positiva não é de forma alguma uma norma de justiça.

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Por fim, Hans Kelsen termina este livro informando que a teoria do direito natural é uma teoria jurídica dualista, pois, segundo ela, ao lado do direito positivo há um direito natural, enquanto que a Teoria Pura do Direito é uma teoria jurídica monista, segundo a qual, só existe um direito: O direito positivo.

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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