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A controvérsia da recusa terapêutica

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3. OS TRIBUNAIS SUPERIORES (STJ e STF) E A RECUSA TERAPEUTICA

Os julgados até hoje existentes, quer na forma de precedentes, quer como jurisprudência, tem tido origem apenas na Justiça de Primeira Instância e em alguns Tribunais de Justiça.

Não se encontra, entretanto, jurisprudência dominante e menos pacífica sobre o assunto a nível dos Tribunais Superiores (STJ e STF). Nesse sentido, torna-se relevante a falta de manifestação, sobretudo, do Supremo Tribunal Federal (STF) num assunto tão controverso e complexo cujo cerne abrange matéria constitucional.

Entretanto, um julgado que teve grande repercussão, não apenas no campo jurídico, mas na própria sociedade foi o realizado pelo STJ no caso da morte da adolescente de 13 anos Juliana Bomfim da Silva[30]. Testemunhas de Jeová, os pais de Juliana - o militar aposentado Hélio Vitória dos Santos e a dona de casa Ildelir Bonfim de Souza, moradores em São Vicente, litoral de São Paulo, internaram-na no Hospital São José na madrugada do dia 21 de julho de 1993, durante uma crise causada pela anemia falciforme.

A menina tinha os vasos sanguíneos obstruídos e só poderia ser salva mediante a realização de uma transfusão de emergência. Os médicos que atenderam Juliana explicaram a gravidade da situação e a necessidade da transfusão sanguínea, mas os pais foram irredutíveis. A mãe chegou a dizer que preferia ter a filha morta a vê-la receber a transfusão. Um médico da família, também testemunha de Jeová, chegou ainda a intervir, intimidando os médicos assistentes com ameaça de processá-los judicialmente caso realizassem o procedimento contra a vontade dos pais da paciente. A transfusão não foi feita, respeitou-se a vontade dos pais e após inúmeras tentativas frustradas de convencimento deles, a adolescente faleceu no dia 22 de julho de 1993, em consequência de assistolia ventricular, crise vaso oclusiva e anemia falciforme.

Com a morte da menor foi aberto Inquérito Policial que resultou na Denúncia oferecida pelo Ministério Público de São Paulo, que em 22 de julho de 1997 culminou na Ação Penal de Competência do Júri, (processo de nº 0000338-97.1993.8.26.0590), que tramitou na 3ª Vara Criminal da Comarca de São Vicente/São Paulo. Na Denúncia, o Ministério Público sustentava que os pais mataram a filha menor por motivos religiosos ao impedir que os médicos do Hospital São José realizassem a necessária transfusão de sangue. A Denúncia também envolvia o médico José Augusto Faleiros, amigo da família, que aconselhou os pais da menor a não autorizar a transfusão de sangue e intimidou os médicos que assistiam à paciente, ameaçando processá-los judicialmente caso efetuassem a transfusão de sangue contra a vontade dos pais. Em 25.07.1997 foi publicada a sentença de Pronúncia dos pais (Hélio Vitória da Silva e Ildelir Bonfim de Souza) e do médico, amigo da família, José Augusto Faleiros. O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu em 2010 que os pais e o médico da família deveriam ir a júri popular por homicídio doloso - quando há intenção de matar.

Após uma série de recursos sucessivamente negados, em 16.04.2013, o advogado dos pais da menina Juliana protocolizou o Habeas Corpus nº 268.459-SP, distribuído por dependência à 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Como consequência do julgamento do referido HC, o STJ isentou de culpa pela morte da adolescente Juliana Bonfim da Silva, os pais dela, que alegaram motivos religiosos para negar o tratamento, mas entendeu que a responsabilidade seria dos médicos que respeitaram a vontade da família e desrespeitaram o Código de Ética Médica. A decisão mostra que a transfusão de sangue em paciente menor ou adolescente deve ser sempre feita pelos médicos mesmo contra a vontade dos pais seguidores da religião Testemunhas de Jeová sempre que houver risco de morte.

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. (1) IMPETRAÇÃO COMO SUCEDÂNEO RECURSAL, APRESENTADA DEPOIS DA INTERPOSIÇÃO DE TODOS OS RECURSOS CABÍVEIS. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. (2) QUESTÕES DIVERSAS DAQUELAS JÁ ASSENTADAS EM ARESP E RHC POR ESTA CORTE. PATENTE ILEGALIDADE. RECONHECIMENTO. (3) LIBERDADE RELIGIOSA. ÂMBITO DE EXERCÍCIO. BIOÉTICA E BIODIREITO: PRINCÍPIO DA AUTONOMIA. RELEVÂNCIA DO CONSENTIMENTO ATINENTE À SITUAÇÃO DE RISCO DE VIDA DE ADOLESCENTE.

DEVER MÉDICO DE INTERVENÇÃO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. RECONHECIMENTO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem depois de interpostos todos os recursos cabíveis, no âmbito infraconstitucional, contra a pronúncia, após ter sido aqui decidido o AResp interposto na mesma causa. Impetração com feições de sucedâneo recursal inominado.

2. Não há ofensa ao quanto assentado por esta Corte, quando da apreciação de agravo em recurso especial e em recurso em habeas corpus, na medida em que são trazidos a debate aspectos distintos dos que outrora cuidados.

3. Na espécie, como já assinalado nos votos vencidos, proferidos na origem, em sede de recurso em sentido estrito e embargos infringentes, tem-se como decisivo, para o desate da responsabilização criminal, a aferição do relevo do consentimento dos pacientes para o advento do resultado tido como delitivo. Em verdade, como inexistem direitos absolutos em nossa ordem constitucional, de igual forma a liberdade religiosa também se sujeita ao concerto axiológico, acomodando-se diante das demais condicionantes valorativas. Desta maneira, no caso em foco, ter-se-ia que aquilatar, a fim de bem se equacionar a expressão penal da conduta dos envolvidos, em que medida teria impacto a manifestação de vontade, religiosamente inspirada, dos pacientes. No juízo de ponderação, o peso dos bens jurídicos, de um lado, a vida e o superior interesse do adolescente, que ainda não teria discernimento suficiente (ao menos em termos legais) para deliberar sobre os rumos de seu tratamento médico, sobrepairam sobre, de outro lado, a convicção religiosa dos pais, que teriam se manifestado contrariamente à transfusão de sangue. Nesse panorama, tem-se como inócua a negativa de concordância para a providência terapêutica, agigantando-se, ademais, a omissão do hospital, que, entendendo que seria imperiosa a intervenção, deveria, independentemente de qualquer posição dos pais, ter avançado pelo tratamento que entendiam ser o imprescindível para evitar a morte.

Portanto, não há falar em tipicidade da conduta dos pais que, tendo levado sua filha para o hospital, mostrando que com ela se preocupavam, por convicção religiosa, não ofereceram consentimento para transfusão de sangue - pois, tal manifestação era indiferente para os médicos, que, nesse cenário, tinham o dever de salvar a vida. Contudo, os médicos do hospital, crendo que se tratava de medida indispensável para se evitar a morte, não poderiam privar a adolescente de qualquer procedimento, mas, antes, a eles cumpria avançar no cumprimento de seu dever profissional.

4. Ordem não conhecida, expedido habeas corpus de ofício para, reconhecida a atipicidade do comportamento irrogado, extinguir a ação penal em razão da atipicidade do comportamento irrogado aos pacientes. (STJ. HABEAS CORPUS Nº 268.459 - SP (2013/0106116-5). Min. Rel. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA. 6ª Turma. Julgado em 02.09.2014). (grifei)

Destaque-se, entretanto, que o julgamento não foi unânime, tendo havido empate quanto ao posicionamento dos nobres Ministros no que respeita ao julgamento dos pais por homicídio doloso. Na verdade, houve empate 2-2 no tocante ao posicionamento de trancar ou não a ação penal. Mas então foi optado pela concessão de habeas corpus de oficio com a decisão mais favorável aos réus, isto é o trancamento da ação penal em relação a eles.

Desprende-se da CERTIDÃO:

Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

Prosseguindo no julgamento após o voto-vista do Sr. Ministro Rogerio Schietti Cruz não conhecendo do pedido de habeas corpus, sendo acompanhado pela Sra. Ministra Marilza Maynard (Desembargadora convocada do TJ/SE), a Sexta Turma, por unanimidade, não conheceu do pedido de habeas corpus, e em razão de empate, prevalecendo a decisão mais favorável, concedeu ordem de ofício, com as observações feitas pela Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura na data de hoje, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.

Os Srs. Ministros Sebastião Reis Júnior (Presidente), Rogerio Schietti Cruz (voto-vista) e Marilza Maynard (Desembargadora Convocada do TJ/SE) votaram com a Sra. Ministra Relatora quanto ao não conhecimento da ordem.

O Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior (Presidente) votou com a Sra. Ministra Relatora quanto à concessão da ordem de ofício.

Não participou do julgamento o Sr. Ministro Nefi Cordeiro. (grifei)

Importante destacar parte da análise feita pelos eminentes Ministros julgadores.

Extrai-se do voto da Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora):

O caso em testilha ser complexo e controverso, por envolver questões não apenas jurídicas, mas filosóficas, morais e religiosas:

[...] O presente caso trata de temática que suscita discussão que extravasa os lindes estritamente jurídicos, desaguando em debate de colorido filosófico, moral e religioso.

Daí, acredito que, corporificando verdadeiro hard case, por mais completa e profunda que seja a saída alcançada, sempre haverá quem da solução discorde.

Cita parte do Parecer do Ministro do STF, Luís Roberto Barrroso e registros de casos de Argentina, Uruguay e Inglaterra, em que a temática foi enfrentada, amplamente debatida, e nos quais a decisão de pacientes (um deles adolescente), foi respeitada, mesmo com desfecho fatal (morte dos mesmos). Mencionou que nesses países existe amparo legal para esse respeito. Entretanto destacou um caso em que o Poder Judiciário da Austrália, envolvendo paciente menor de idade, ordenou fosse realizada transfusão de sangue, a despeito da opção religiosa.

A seguir, analisa numa perspectiva jurídico-sistemática, desvestindo-se de crenças pessoais e preconceitos, os acórdãos do recurso em sentido estrito e dos subsequentes embargos infringentes perante a Corte Estadual Paulista impetrados pelos pais da adolescente, se alinhando com os votos vencidos e adotando-os como razão para concessão da ordem de oficio.

Cita para tanto, o voto divergente do Desembargador Nuevo Campos (TJSP) na qual sustenta-se a atipicidade penal da conduta dos genitores e a responsabilidade dos médicos que tinham o dever de agir:

 [...] A controvérsia, como se vê, versa, tão somente, sobre os efeitos do dissenso dos genitores e do médico, que, por professar a mesma religião daqueles, sem integrar a equipe que atendeu a ofendida, também se manifestou contrário à realização da necessária transfusão de sangue.

[...] Respeitado entendimento diverso, a conduta dos réus não possui tipicidade penal, na medida em que, em se tratando de hipótese de iminente risco de vida para a ofendida, o dissenso dos réus não possuía qualquer efeito inibitório da adoção do indispensável procedimento terapêutico a ser adotado, qual seja, a transfusão de sangue.

Os integrantes da equipe médica, que a atendiam, tinham o dever legal de agir.

[...] É preciso anotar, ainda, que a questão de natureza religiosa, que permeia a análise do fato gerador da presente persecução penal, não é nova e foi objeto, inclusive da Resolução nº 1.021/80 do Conselho Federal de Medicina, cujo enunciado, em seu artigo 2º, dispõe: "Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente do consentimento do paciente ou de seus responsáveis".

Ante o exposto, considerando-se que, segundo os termos da inicial, o impedimento à realização da transfusão de sangue limitou-se ao dissenso dos genitores da ofendida, referendado pelo corréu, a conduta atribuída aos acusados, ora recorrentes, deve ser tida como atípica.

Face ao exposto, meu voto, respeitosamente, é no sentido da absolvição dos recorrentes José Augusto Faleiros Diniz, Hélio Vitória da Silva e Ildelir Bonfim de Souza, da imputação de se acharem incursos, o primeiro no art. 121, caput, do Cód. Penal, e, os demais, como incursos no art. 121, caput, combinado com o art. 61, II, e, ambos do Cód. Penal, com fundamento no art. 415, III, do Cód. de Proc. Penal. (fls. 58-61). (grifei)

Cita, no mesmo sentido, parte do voto divergente do Desembargador Souza Nery (TJSP):

 [...] É que a recusa dos pais da infeliz vítima era absolutamente irrelevante para o atendimento médico que lhe devia ter sido prestado.

O Código de Ética Médica (Resolução nº CFM 1.246/88, de 8 de janeiro), em seu artigo 46, proíbe o médico de "[e]fetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou de seu representante legal, salvo iminente perigo de vida".

O mesmo diploma legal, em outros dois dispositivos isenta de responsabilidade ética o profissional médico que, diante de pessoa entregue a greve de fome, intervenha para afastar o risco iminente da vida (artigo 51), e pune aquele que "desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida" (artigo 56).

O próprio Código Penal Brasileiro estabelece ser atípica a conduta do médico que realize intervenção, mesmo que cirúrgica, "sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida (artigo 146, § 3º, inciso I).

Assim, admitir a responsabilidade penal dos embargantes corresponde a desobedecer o mandamento constitucional antes transcrito, por isso que seu ato limitou-se ao exercício de sua liberdade de crença, e no comportamento dela decorrente.

Ainda uma vez destaco ser a "proibição" da transfusão de sangue oposta pelos embargantes ao tratamento de sua filha absolutamente irrelevante sob o ponto de vista legal para os médicos encarregados de atendê-la, que tinham o dever de prestar-lhe toda a assistência necessária, agindo sob o manto protetor tanto de seu próprio Código de Ética, quanto, e mais importantemente, do Código Penal Brasileiro, como demonstrei.

Imperioso, no meu entendimento, portanto, aplicar ao caso dos autos o que determina o inciso III do artigo 415 do Código de Processo Penal, decretando desde logo a absolvição dos embargantes, por isso que sua conduta não constitui infração penal.

Demais disso, por meu voto, e nos termos do artigo 417 do mesmo estatuto adjetivo, determinava a devolução dos autos ao representante local da sociedade, diante da clara existência de indícios de responsabilidade "de outras pessoas não incluídas na acusação".

A douta maioria, no entanto, e como de costume, decidiu superiormente a questão. (fls. 114-118). (grifei)

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Incursiona em conceitos de bioética e cita artigos do Código de Ética Médica em vigor que garantem ao médico agir contra a vontade de pacientes em caso de risco iminente de vida, para concluir que tendo sido a transfusão de sangue o único e último meio de salvar a vida da adolescente, os médicos ao proceder à transfusão compulsória teriam realizado um correto exercício profissional e respeitado, na medida do possível, o direito de autonomia dos pais:

[...] Nesse panorama, ausente alternativa que pudesse tempestivamente colocar a vida da filha dos pacientes a salvo, impenderia aos médicos do hospital, passando por cima de qualquer obstáculo, materializar a intervenção que restasse.

Caso assim agissem, de uma só vez, estariam dando concreção ao exercício profissional que abraçaram, ao princípio da beneficência, e, justificando a impossibilidade de aplicação tratamento alternativo, no contexto, teriam respeitado, na medida do possível, o primado da autonomia (em relação à concepção religiosa dos pais). (grifei)

Salienta ainda que no caso especifico, deve se levar em consideração que se trata de paciente adolescente, na qual inquestionável resta a supremacia do direito à vida da titular se sobrepondo ao direito de crença religiosa dos pais, sendo mandatório o dever de agir dos médicos:

[...] Soma-se a este primeiro ponto, um outro que, naquele panorama, afigura-se-me de supina importância. Cuida-se do superior interesse do adolescente.

Extrai-se do artigo 227 do Texto Maior, que é "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas" (destaquei).

No artigo 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente, estatui-se que a "criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência".

[...] Desta maneira, não obstante tratar-se dos pais ou responsáveis, a ausência de consentimento para a única saída para a preservação da vida de um adolescente, como na espécie, não representava, penso, óbice à transfusão de sangue, no horizonte descrito na denúncia.

Exsurgiu, portanto, uma plêiade de fatores no período de internação retratado nos autos, a rechaçar a magnitude penal da atuação dos pacientes. Logo, se falha houve, teria sido, penso, dos médicos responsáveis pela internação, que, ausente a possibilidade de profícuo tratamento alternativo, não cumpriram com o seu dever de salvar a adolescente, com a única terapia de que dispunham.

Cumpre lembrar que o próprio Código Penal afasta a responsabilidade pelo emprego de violência ou grave ameaça, a fim de viabilizar intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida - inciso I do § 3º do artigo 146 do Código Penal.(grifei)

Fundamenta ainda sua decisão com base no viés humanitário, decorrente do sofrimento dos pais não apenas pela perda da filha, mas pelo tempo prolongado que leva o processo judicial:

[...] Por fim, ademais de não identificar responsabilidade por parte dos pais, dadas todas essas peculiaridades, há uma faceta que muito me toca. Um viés humanitário, concernente ao sofrimento que esses pais já passaram, não só pela perda da filha (o que já não é pouco), mas, também, pelo tempo que este processo se arrasta.

De pronto, verifico a impossibilidade do reconhecimento do perdão judicial, que demanda a prévia condenação. Todavia, dadas as feridas que não puderam ser cicatrizadas pelo transcurso do tempo, mas, pelo contrário, eram, frequentemente, reabertas pelo evolver processual, acredito que o atroz sofrimento amargado por toda essa via crucis já representou reprimenda mais intensa que qualquer privação de liberdade possa infligir.

O e. MINISTRO SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, acompanhou o voto da Relatora, por se tratar de menor adolescente:

[...] Estou de acordo com a Ministra Maria Thereza. Não vou me prolongar até porque tanto o voto que acompanho como os votos vencidos na origem esgotam o assunto. A vítima é menor, não podendo a vontade dos pais, portanto, prevalecer. Aqui, o direito à vida se impõe ao direito à crença religiosa dos pais. Logo, não havendo como se impor a vontade dos pais, deveriam os médicos responsáveis pelo atendimento da menor atuar como devido, até em razão de imposição legal e de ausência de responsabilização penal caso assim agissem.

A omissão destes, sim, é que deu causa ao falecimento da filha dos pacientes, e não a não autorização dos pais para a necessária e essencial transfusão de sangue. Poderia haver, penso eu, responsabilidade dos pais se estes se recusassem a levar a filha a um hospital ou, de outro modo, impedissem efetivamente que esta fosse tratada (tirassem a criança do hospital, por exemplo). A simples manifestação de vontade contrária ao tratamento, sem qualquer ação que efetivamente o impedisse, não os torna responsáveis pelo falecimento da filha.

Esta – a autorização – era, e é em casos como este, que envolve interesse de menor, desnecessária.

[...] Esclareço, por fim, que me reservo para um exame mais detalhado quando a hipótese cuidar de falecimento de adulto decorrente da não aplicação do tratamento médico adequado em razão de crença religiosa própria. (grifei)

Divergindo do voto dos anteriores, o MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ fundamenta convicção pela responsabilidade dos pais, destacando:

Existência de eventual conflito de direitos fundamentais (direito a vida e direito à liberdade religiosa), comungando do entendimento de que o direito à vida, não é absoluto e que não há hierarquia entre direitos fundamentais. Entretanto, claramente faz a ressalva quando se trata de criança e adolescente.

[...]  Os estudos sobre a postura dos operadores do Direito perante os casos de Testemunhas de Jeová, que recusam a transfusão sanguínea, cingem-se, essencialmente, à ponderação de direitos fundamentais, com destaque ao confronto entre o direito à vida e o direito à liberdade religiosa.

O que se discute, sempre, nessas hipóteses, é como deve agir o magistrado diante de um (aparente) conflito de direitos, os quais, alerto, estão situados no campo dos valores.

O fato de estarem insertos no campo dos valores não permite ao magistrado agir com total discricionariedade na escolha entre os princípios concorrentes, devendo ser eleito aquele que mais se aproxima da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III da Constituição Federal), essa sim com valor absoluto.

[...]  O direito à vida, o mais fundamental de todos os direitos, não é absoluto, disso não me olvido. Sem, também, perder de vista que não há hierarquia entre direitos fundamentais, entendo que a hipótese dos autos não deixa espaço para mitigação do direito à vida, pois o embate enredava a vida de uma adolescente, cuja obrigatoriedade de proteção pelos pais encontrava-se constitucionalmente resguardada, moralmente desejada e naturalmente imposta. (grifei)

A supremacia do dever de proteger de forma absoluta à criança e ao adolescente com base no disposto no artigo 227 da Constituição Federal:

[...] Sem embargo, a minha conclusão tem como guia o princípio da proteção prioritária, absoluta e integral da criança e do adolescente, tratado no art. 227 da Constituição Federal, bem como a prevalência do bem vida sobre o bem liberdade religiosa.

[...] É sabido que existem inúmeras opções de procedimentos terapêuticos diversos daquele repudiado pelos fiéis Testemunhas de Jeová. No entanto, esses são utilizados quando o paciente não se encontra em colapso ou em risco iminente de morte, de modo que não há de se invocar o direito fundamental à liberdade de crença quando não há alternativas para salvar a vida de uma pessoa natural ou legalmente incapaz de exercer plenamente sua própria individualidade e autodeterminação.

O texto constitucional vigente elegeu a família, entre outros sujeitos ativos dos direitos das crianças e dos adolescentes, para assegurar, com absoluta prioridade, os direitos lá elencados, dentre eles o direito à vida. (grifei)

Salienta que no caso em testilha, por se tratar de adolescente, civilmente incapaz para exercer sua autodeterminação e ainda pelos dispositivos legais em vigor que defendem a supremacia do direito à vida de criança e adolescente, não pode se falar em respeito à autonomia e pelos mesmos motivos, não se aplicaria ao caso o inteligente raciocínio do Ministro Barroso:

[...]  Eis o ponto nodal da questão, prezados pares, que destaquei na citação da obra coletiva referida no voto em apreço: as opções individuais, inclusive relativas à própria saúde ou mesmo à própria vida, hão de ser respeitadas, mormente quando abrigadas em direito ao livre exercício de crença religiosa. O princípio da autonomia, entretanto, não permite, como o próprio ensaio explicita, que as escolhas individuais interfiram na saúde ou na vida de terceiros, máxime – acrescento – quando o terceiro é uma adolescente incapaz, por lei e por natural imaturidade psíquica, a tomar decisão tão vital.

[...] Pelas mesmas razões também não considero possível estender ao caso vertente o escólio, sempre lúcido e aprofundado, de Luiz Roberto Barroso, Ministro do Supremo Tribunal Federal, que assere – após ressaltar o dever de respeito à crença religiosa como uma “escolha existencial a ser protegida” – que “a transfusão compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República brasileira”. Digo que tal ensinamento não se estende ao presente caso porque me parece estar Sua Excelência referindo-se à opção individual de quem, plenamente capaz de se autodeterminar, manifesta o desejo de não receber, em seu corpo – e não no corpo de terceira pessoa, menor de idade – o sangue de outrem. (grifei)

Entende, no entanto, que a conduta dos pais ao recusar a transfusão, teria sido sim um fator impeditivo para que fosse levado a cabo o procedimento salvador, pelo que tal conduta seria típica, ilícita com evidente culpa:

[...] Em assim sendo, reputo típica, ilícita e culpável a conduta dos pacientes, porquanto, não fosse a ação por eles empreendida, os médicos responsáveis pelo pronto atendimento teriam levado a efeito a transfusão sanguínea na adolescente e muito provavelmente salvado sua vida. E assim não o fizeram, única e exclusivamente, por força do incisivo comportamento dos pais da menina, que, além de recusar o tratamento, anuíram à intervenção do médico da família, que constrangeu e ameaçou processar os profissionais da saúde que ousassem salvar a vida da menor com o procedimento recomendado para a situação emergencial daquele momento.

A propósito, refuto a tese da assunção do domínio, trazida pela defesa, pois aos médicos não foi cedida a vida da menor, de modo que não se encontravam na posição de garantes, uma vez que não adquiriram o domínio da confiança para realizar o que julgavam necessário. Houve, em verdade, choque de interesses, não havendo que se falar em responsabilidade exclusiva, mas concorrente, dos médicos. (grifei)

Comenta e questiona argumento de caráter humanitário elencado pela Relatora para fundamentar seu voto:

[...] A argumentação para a exclusão dos pacientes da ação penal também é assentada, em viés humanitário – sempre louvável, registro –, na amargura em que se encontram, na qualidade de pais da vítima. No entanto, pergunto-me se esse sentimento de pesar em relação à vítima afasta a conduta humana responsável por seu óbito. Aqueles que tinham o dever natural, legal (no nível constitucional) e moral de protegê-la abstiveram-se de agir, em nome da crença religiosa professada. O viés humanitário, neste caso, deve se voltar integralmente ao sofrimento vivido pela criança que, nos instantes finais de sua vida, padeceu desprotegida, objeto de disputa entre a ciência e a religião, entre a razão e a fé. (grifei)

A despeito de concordar com a responsabilidade dos médicos que deveriam ter cumprido seu dever legal de transfundir, discorda doutro lado e defende a responsabilidade criminal também dos pais por dolo eventual.

[...] Com todo o respeito às teses anteriormente lançadas, dizer que a ação dos pacientes não impediu efetivamente o tratamento recomendado, ou que não interferiu na omissão dos médicos que a atenderam, não me parece razoável.

[...] É certo que o artigo 146, § 3º, inciso I do Código Penal torna atípica a conduta do médico que realiza procedimento terapêutico ou cirúrgico, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada pelo iminente risco de morte. Mas, daí a deslocar a integral responsabilidade pela morte da menina para os profissionais envolvidos no seu tratamento não se afigura correto, pois a ação dos ora pacientes teve relevância no desdobramento da cadeia de condutas concorrentes para a produção do resultado do evento criminoso. Assevero que os médicos não apenas tiveram de lidar com a recusa do tratamento, mas também com as ameaças de serem processados judicialmente, se levassem o procedimento a efeito.

Diante da situação fática vivida pelos envolvidos, julgo relevante a conduta dos acusados para a concretização do evento morte, pois os médicos não hesitariam em aplicar a única alternativa restante para salvar a adolescente, houvessem os pais consentido no tratamento indicado. [...] Sob outra angulação – e fazendo a ressalva de que o tema haveria de ser enfrentado, com a necessária verticalidade, pelo juiz natural da causa – considero, em face do que consta dos autos, haver indicativos da presença de dolo eventual na conduta dos pais da adolescente vitimada. (grifei)

Sustenta que eximir as testemunhas de Jeová de responsabilidade penal em casos como o ora julgado significaria conceder-lhes uma blindagem penal que o Estado, por ser laico e sedimentado no Direito, não permite.

IV. [...]

Por fim, uma reflexão.

Eximir os Testemunhas de Jeová de responsabilidade penal em casos como o ora julgado significa conceder-lhes uma blindagem penal que o Estado, por ser laico e sedimentado no Direito, não permite.

Em verdade, é de indagar-se: como a Justiça distribuiria tratamento igualitário, se membros de religiões distintas buscassem por direitos das mais diversas naturezas, incluindo, por que não, a descriminalização de uma conduta que, não fosse o embasamento religioso, típica seria? Como seria lidar com as crenças individuais, legitimamente fundadas em seus respectivos textos sagrados, perante um caso concreto em que um direito fundamental haja sido violado?

Conquanto as religiões disponham cada qual de caminhos para a alcançar a vida após a morte, por meio de cultos, hábitos e práticas, a nenhuma delas é dado, sem a respectiva responsabilização, impor sua fé em detrimento da saúde ou integridade física de terceiros. Na hipótese dos autos, o referido fundamento foi ultrajado, na medida em que uma adolescente ficou descoberta da proteção legal que lhe era devida pelos pais, e teve a vida ceifada em decorrência, sim, de embate causado entre os ora pacientes e os médicos que lhe assistiram no momento da internação. Tudo, repito, em nome da convicção religiosa.

Dentro desse pensamento, indago: não fossem os pacientes seguidores da religião Testemunha de Jeová, e, por qualquer outra convicção íntima (que não a religiosa), houvessem recusado determinado procedimento médico que implicasse a morte de sua filha, qual seria o tratamento dado pelo Direito Penal? Penso eu que dúvidas não haveria em responsabilizá-los. O debate não seria, creio, tão profundo e delicado.

A laicidade do Estado não permite esse tratamento desigual. (grifei)

Finalmente conclui o voto pelo não conheço do habeas corpus e, examinando seu conteúdo, pela inexistência de constrangimento ilegal que pudesse me levar a, ex officio, conceder a ordem postulada.

VI. [...]

À vista do exposto, com a vênia dos eminentes pares que me antecederam, não conheço do habeas corpus e, examinando seu conteúdo, não identifico constrangimento ilegal que pudesse me levar a, ex officio, conceder a ordem postulada.

Infelizmente, como visto, os únicos prejudicados nesse longo processo judicial foram os médicos assistentes da adolescente que diante de tanta pressão e ameaça cederam à vontade dos pais e do médico da família. Destaque-se que muito embora os médicos que assistiram à adolescente não foram processados (já que não eram réus na Denúncia do Ministério Público e, portanto, na sentencia de Pronuncia) exarou-se entendimento de uma parte da Corte Superior de Justiça no sentido de que a existe responsabilidade criminal do médico caso não transfunda menor ou adolescente em risco de vida, mesmo contra vontade dos pais.

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Sobre os autores
Diana Fontes de Barba

Advogada. Especialista em Direito Médico e Hospitalar.

Alejandro Enrique Barba Rodas

Médico. Especialista em Medicina Intensiva

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBA, Diana Fontes ; RODAS, Alejandro Enrique Barba. A controvérsia da recusa terapêutica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5565, 26 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69251. Acesso em: 24 abr. 2024.

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