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A questão da nulidade do ato inconstitucional no direito positivo brasileiro

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A maioria dos estudiosos entende que o ato inconstitucional é nulo. Mas a Constituição de 1988 e Leis nº 9.868/99 e 9.882/99 trouxeram inovações incompatíveis com esse entendimento. Daí a necessidade de rediscutir o tema.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 A inconstitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro em vigor; 1.1 Disposições constitucionais e legais; 1.2 A omissão; 1.3 As Leis n. 9.868/99 e 9.882/99; 1.3.1 O artigo 27 da Lei n. 9.868/99; 1.3.2 O artigo 28 da Lei n. 9.868/99; 2 O valor do ato inconstitucional; 2.1 A teoria tradicional; 2.1.2 A posição do Supremo Tribunal Federal; 2.1.3 Problemas decorrentes da teoria; 2.2 Correntes doutrinárias discordantes; 2.2.1 O voto vencido do Ministro Leitão de Abreu; 2.3 Doutrina contemporânea; 3 Confronto entre as normas em vigor e as diferentes correntes doutrinárias; 4 O Supremo Tribunal Federal e mitigações à tese da nulidade; 5 A proposta de Manoel Gonçalves Ferreira Filho; CONCLUSÃO.


INTRODUÇÃO

            Os efeitos da constatação da inconstitucionalidade de atos normativos foram, por muitos anos, e ainda são, tratados de maneira pacífica entre os doutrinadores brasileiros. Aqui, entende a maioria dos estudiosos – além do próprio Supremo Tribunal Federal – que o ato contrário à Constituição é nulo (1), adotando-se todas as decorrências dessa afirmação.

            Entretanto, a Constituição Federal de 1988, seguida das Leis n. 9.868/99 e 9.882/99, trouxe inovações incompatíveis com esse entendimento. Daí a necessidade de rediscutir o tema.

            A relevância do assunto não pode ser desconsiderada. De fato, a preservação de dispositivos constitucionais frente a atos que lhes afrontam diz respeito à própria supremacia da Constituição, já que, se prevalecem os referidos atos, então a Lei Magna não pode ser tida como fundamento de validade deles. Assim, pode-se chegar a dizer que, como quer Jorge Miranda, o assunto concerne à própria garantia da Constituição:

            Através do princípio da constitucionalidade temos querido sobretudo pensar numa teoria jurídica construída em termos positivos e não negativos ou simplesmente neutros: mais do que da invalidade, que é, trata-se da inconstitucionalidade, que se combate em nome da aplicação constante e certa da Constituição. (2)

            Além disso, deve-se considerar que a jurisdição constitucional teve seu papel muito ampliado após a edição da Carta de 1988. Várias decisões têm sido proferidas, em sede de controle abstrato, com repercussão nacional, especialmente no que tange a direitos fundamentais. Dessa forma, imprescindível é para a própria manutenção dos direitos consagrados na Carta Magna que se conheçam exatamente a extensão e os limites da atuação de nossa Corte Constitucional.

            Ademais, devemos ainda consignar que os autores nacionais que ousam discordar da teoria da nulidade do ato inconstitucional incorrem, na maioria, em contradições e enganos passíveis de discussão (3).

            Dessa forma, necessário será analisar no início deste trabalho o Direito Positivo atual (já que, conforme se afirmou, a relevância da rediscussão do tema surgiu a partir das inovações legislativas), para que se possa compreender os problemas criados. No mais, serão estudadas as diferentes doutrinas existentes a respeito do assunto, que serão posteriormente confrontadas com a ordem jurídica em vigor.

            Por fim, concluir-se-á tentando apontar soluções para o problema da inadequação da doutrina tradicional, globalmente aceita no Brasil, às novas disposições constitucionais e legais.


1 A inconstitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro em vigor

            1.1 Disposições constitucionais e legais

            No Direito Positivo brasileiro estão previstos dois métodos de controle de constitucionalidade: o difuso ou concreto, realizado pelo juiz como premissa para que possa decidir determinado caso concreto, com efeitos inter partes; e o concentrado ou abstrato, de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal.

            O controle concentrado engloba, atualmente, as seguintes ações: ação direta de inconstitucionalidade, ação direta de inconstitucionalidade por omissão, ação declaratória de constitucionalidade e argüição de descumprimento de preceito fundamental (4).

            A Constituição Federal de 1988 trouxe pela primeira vez a ação de inconstitucionalidade por omissão e a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Cinco anos mais tarde, foi a vez de a Emenda Constitucional n. 3 criar a ação declaratória de constitucionalidade.

            Por fim, surgiram as Leis n. 9.868/99 e 9.882/99. A primeira tratou de regular o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade, referentes a atos normativos federais e estaduais, trazendo inovações que serão discutidas nos próximos itens.

            Já a Lei n. 9.882/99 regulou a argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição, com as mesmas novidades da lei anterior, conforme se verá adiante.

            1.2. A omissão

            Luiz Fabião Guasque (5) ensina-nos que há hodiernamente dois tipos de inconstitucionalidade: a decorrente da ação e a inconstitucionalidade por omissão.

            A primeira corresponde à incompatibilidade vertical, que pode ser formal ou material, entre o ato normativo inquinado e a Constituição.

            Já a inconstitucionalidade por omissão, prevista pela primeira vez no nosso ordenamento jurídico no artigo 103, § 2o da Lei Maior de 1988, decorre na ausência da devida regulamentação de dispositivos constitucionais não auto-executáveis.

            Ocorrendo a segunda, pode-se ajuizar ação direta de inconstitucionalidade ao fim da qual se dá ciência ao Poder legislativo da existência da lacuna no ordenamento, sem ser imposto, na verdade, o preenchimento dessa (devido à independência e à harmonia entre os poderes consagrada no art. 2o da Lei Magna) ou à Administração Pública faltante, para que tome as devidas providências em trinta dias.

            Se a omissão consiste na inviabilização do exercício de direitos e liberdades constitucionais e de prerrogativas inerente à nacionalidade, soberania e cidadania, cabe o mandado de injunção, instrumento previsto no art. 5o, inciso LXXI da Constituição. No entanto, referido dispositivo não estipula as providências que devem ser efetivamente tomadas, quando da decisão judicial, para compelir o órgão faltante a regulamentar a norma cuja eficácia está obstada. Nem fica claro em que extensão deve a sentença suprir o comando legal faltante.

            Tais previsões constitucionais, que buscam solucionar a omissão legislativa, têm o condão de prestigiar as normas constitucionais programáticas, na linha do ensinamento de Canotilho quanto à Constituição dirigente e à omissão do legislador.

            Analisemos, finalmente, a decisão na ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Ao menos no caso de dar ciência à Administração Pública para que regulamente a norma no prazo legal, patente é o caráter mandamental da sentença, já que se destina (ao menos hipoteticamente) a suprir, através da ordem compulsória que dela emana (e cuja força deriva da previsão constitucional, logicamente), a omissão.

            1.3 As Leis n. 9.868/99 e 9.882/99

            As inovações abaixo apresentadas foram originalmente previstas na Lei n. 9.868/99, mas foram repetidas na Lei 9.882/99, ao tratar da argüição de descumprimento de preceito fundamental (6).

            1.3.1 O artigo 27 da Lei n. 9.868/99

            Referido dispositivo legal prevê a chamada inconstitucionalidade pro futuro (7). De acordo com esse comando normativo, a eficácia da decisão que reconhece a inconstitucionalidade de ato normativo pode, através de decisão de dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, iniciar-se quando do trânsito em julgado ou em outra data estipulada, seja essa pretérita ou futura. Os efeitos não são, portanto, ex tunc (retroativos).

            Mas não é essa a única restrição aos efeitos da decisão de inconstitucionalidade prevista na norma em exame.

            De fato, o artigo 27 da Lei n. 9.868/99 prevê duas espécie de limitação dos efeitos de tal sentença: a material e a temporal, acima explicada.

            A limitação material consiste na determinação da Corte de que o ato continue em vigor, no todo ou em parte, produzindo efeitos apesar de inconstitucional.

            Assim, há verdadeira convalidação de ato considerado inconstitucional. Dessa forma, corre-se o risco de tal ato sobrepor-se à Lei Magna, como ocorre em Estados em que a Constituição é flexível (e alterável por atos infraconstitucionais a ela contrários).

            No mais, fica mitigado o efeito ex tunc da decisão de inconstitucionalidade, já que, mediante decisão de maioria qualificada dos Ministros, a lei inconstitucional continua produzindo efeitos, quando a restrição imposta for temporal, até o advento da data estipulada na sentença.

            Há, entretanto, condições que buscam limitar essa nova prerrogativa concedida ao Supremo Tribunal Federal. De fato, de acordo com o citado artigo de lei, a maioria qualificada dos ministros somente pode restringir os efeitos da decisão de inconstitucionalidade quando presentes razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

            Ora, fácil é perceber que se tratam de conceitos amplíssimos e passíveis de interpretação subjetiva, o que dá margem a discricionariedade por parte do órgão que deve, com todo o rigor possível, guardar a Constituição (e os direitos por essa conferidos).

            Dessa forma, devido à amplitude dos conceitos já referida e à necessidade de convencimento (em sessão, por se tratar de maioria qualificada...) dos próprios ministros quanto ao cabimento da restrição dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, podemos afirmar que há, em virtude dessa previsão legal, brecha para verdadeira politização do Supremo Tribunal Federal, o que não pode ser favorável ao Estado de Direito, calcado na separação de poderes conforme a prevalência de suas funções típicas. (Na verdade, dessa forma há verdadeira aproximação entre as funções do nosso Tribunal Constitucional e as de uma Câmara legislativa).

            Isso porque as sessões do Plenário podem se tornar semelhantes a uma sessão de votação de uma das Câmaras do Poder Legislativo: uns Ministros tentando convencer os demais (já que é necessária maioria qualificada), e a decisão convalidando ato considerado inconstitucional, ou seja, dando força de lei (devido ao efeito vinculante – outra inovação das leis de 1999) a ato que, na verdade, afronta à Constituição e que, segundo sempre entendeu o próprio Supremo Tribunal, deveria ser extirpado do ordenamento jurídico.

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            A respeito dos perigos de tal politização, Zeno Veloso discorre:

            O Tribunal Constitucional, até por ser o guardião da supremacia da Constituição, tem de agir como um servo do Direito e não da política, usando-se o vocábulo, aqui, em seu significado menos nobre. Portanto, ao impor limitações aos efeitos retroativos de suas sentenças de inconstitucionalidade, ou ao determinar o alcance de tais efeitos, deve atuar com extremo cuidado e circunspeção (8).

            Houve, afinal, verdadeira ampliação do papel do Supremo Tribunal Federal, mas imposta pelo legislador infraconstitucional, e não, como se poderia pensar, por ato da própria Corte Constitucional... (9)

            1.3.2.O art. 28 da Lei n. 9.868/99

            Prevê o art. 28 da lei em estudo, em seu caput, a necessidade de a decisão sobre a inconstitucionalidade de um ato ser publicada, em dez dias do trânsito em julgado, no Diário de Justiça e no Diário Oficial da União, em seção especial. Note-se que publicação dessa natureza é típica de ato legislativo...

            No entanto, o parágrafo único do referido artigo explicita a finalidade da publicação: dar ciência ao Poder Judiciário e à Administração Pública da inconstitucionalidade, já que a decisão que a reconhece é dotada, a partir também da Lei n. 9.868/99, de efeito vinculante e eficácia erga omnes – devendo ser observada, portanto, por aqueles órgãos públicos.

            O efeito vinculante conferido às decisões tomadas em sede de controle de constitucionalidade concentrado, na verdade, torna tais decisões equivalentes a leis, já que passam a obrigar a todos.

            Ademais, referido dispositivo legal prevê o efeito vinculante da inconstitucionalidade sem redução do texto e da interpretação conforme a Constituição, ambas práticas que já eram adotadas pela nossa Corte Constitucional, sem, no entanto, haver previsão legal para tanto.

            Mais uma vez vislumbra-se a politização do STF, já que a interpretação obrigatória por ele fixada obriga a todos como se fosse espécie de interpretação autêntica posterior (tradicionalmente ligada a lei interpretativa).


2 O valor do ato inconstitucional

            2.1 A teoria tradicional

            Entende a esmagadora maioria da doutrina brasileira que, deixando-se de lado o grego Grahé paranomón (10)e outros antecedentes remotos, a origem de nosso controle de constitucionalidade está no voto histórico de John Marshall no caso Marbury v. Madson, decidido pela Suprema Corte norte-americana.

            Para Marshall, um ato legislativo contrário à Constituição é absolutamente nulo e írrito (null and void). Dessa forma, todos os seus efeitos são inválidos, e o ato deve ser desconstituído com eficácia ex tunc.

            Lúcio Bittencourt traz-nos o raciocínio de Marshall: "Se o ato legislativo, inconciliável com a Constituição, é nulo, ligará êle, não obstante a sua invalidade, os tribunais, obrigando-os a executarem-no? Ou, por outras palavras, dado que não seja lei, subsistirá como preceito operativo, tal qual se o fosse?" ··

            Alexander Hamilton, em seu celebrado O federalista, já afirmava que:

            Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar isso seria como sustentar que o procurador é maior que o mandante, que os representantes do povo são superiores a esse mesmo povo, que aqueles que agem em virtude de poderes concedidos podem fazer não só o que eles autorizam mas também aquilo que proíbem (11).

            Essa teoria da nulidade do ato inconstitucional foi plenamente acatada no Brasil (12) (inicialmente, por intermédio dos ensinamentos de Ruy Barbosa), tendo sido inclusive repetida, durante todos esses anos, nas decisões do Supremo Tribunal Federal (como se exporá em item apartado).

            Para exemplificar o pensamento dessa maioria da doutrina, eis a lição de Guasque: "Os atos legislativos e normativos que não forem compatíveis com os preceitos da lei superior são inválidos, pois a incompatibilidade vertical se resolve em favor da norma de grau mais elevado, que fundamenta a validade das inferiores. (13)"

            De fato, Gilmar Mendes sugere que a aceitação retumbante dessa doutrina deveu-se, na verdade, a algumas dificuldades encontradas pelos doutrinadores em virtude do panorama constitucional de meados do século passado:

            Sem dispor de um mecanismo que emprestasse força de lei ou que, pelo menos, conferisse caráter vinculante às decisões do Supremo Tribunal Federal para os demais tribunais tal como o stare decisis americano, contentava-se a doutrina brasileira em ressaltar a evidência da nulidade da lei inconstitucional e a obrigação dos órgãos estatais de se absterem de aplicar disposição que teve a sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal. (14)

            Por outro lado, em relação à Corte que supostamente deu origem ao nosso controle de constitucionalidade – a Supreme Court dos Estados Unidos da América – cumpre-nos ressaltar que, em diversos momentos, referido órgão manifestou-se contrariamente à tese da nulidade com efeitos ex tunc (15).

            Analisemos, então, o desenvolvimento da teoria tradicional no Brasil e suas ilações.

            A maioria da doutrina brasileira, que entende que o ato inconstitucional é nulo, acredita que, por esse motivo, a decisão judicial que o constata é meramente declaratória da nulidade, que existia ab initio. Além disso, os efeitos do ato são desconstituídos retroativamente, já que um ato nulo não deve produzir quaisquer efeitos.

            Poucos doutrinadores discutem de alguma forma tais idéias cristalizadas. Ei-los:

            Lucio Bittencourt aponta três conseqüências possíveis para a declaração judicial da inconstitucionalidade: revogação, inexistência ou ineficácia (16).

            Já Buzaid ensina que:

            A função do judiciário, ao apreciar a lei, ou o ato normativo eivado de inconstitucionalidade, limita-se a negar-lhe obediência, liberando o ofendido do dever de se sujeitar à sua autoridade. Essa atividade consiste não tanto em anular ou revogar, quanto em deixar de aplicar a lei, incompatível com outra lei hierarquicamente superior ou com a Constituição. (17)

            José Afonso da Silva, por sua vez, pondera:

            A nós nos parece que essa doutrina privatística da invalidade dos atos jurídicos não pode ser transposta para o campo da inconstitucionalidade, pelo menos no sistema brasileiro, onde, como nota Themístocles Brandão Cavalcanti, a declaração de inconstitucionalidade em nenhum momento tem efeitos tão radicais, e, em realidade, não importa por si só na ineficácia da lei. (18)

            Outros posicionamentos, mais dissidentes que esses, serão expostos nos itens posteriores.

            2.1.2 A posição do Supremo Tribunal Federal

            O Supremo Tribunal Federal consagrou, através de sua jurisprudência, aquele tripé peculiar da tese da nulidade do ato inconstitucional: tal ato é nulo, a inconstitucionalidade é, portanto, declarada, e o desfazimento dos efeitos do ato é retroativo (ex tunc).

            O Ministro Celso de Mello justificou a adoção da teoria na ADIn 652/MA (Questão de Ordem), em que, como expõe Zeno Veloso (19), o STF consignou que o repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição:

            Esse postulado fundamental de nosso ordenamento normativo impõe que preceitos revestidos de menor grau de positividade jurídica guardem, necessariamente, relação de conformidade vertical com as regras inscritas na Carta Política, sob pena de ineficácia e de conseqüente inaplicabilidade. Atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica.

            Edmar Oliveira Andrade Filho traz, em outro pronunciamento do Ministro Celso de Mello (RE no. 136.215-4, RTJ 147:976, em sessão plenária de 18.02.93), a justificativa para tal entendimento:

            Impõe-se ressaltar que o valor jurídico do ato inconstitucional é nenhum.

            É ele desprovido de qualquer eficácia no plano do Direito. ‘Uma conseqüência primária da inconstitucionalidade – acentua Marcelo Rebelo de Souza (O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional, vol. 1/15, 1988, Lisboa) – é, em regra, a desvalorização da conduta inconstitucional, sem a qual a garantia da Constituição não existiria. Para que o princípio da constitucionalidade, expressão suprema e qualitativamente mais exigente do princípio da legalidade em sentido amplo, vigore, é essencial que, em regra, uma conduta contrária à Constituição não possa produzir cabalmente os exactos efeitos jurídicos que, em termos normais, lhe corresponderiam (20).

            Por fim, citando jurisprudência de nossa Corte Constitucional, Poletti adverte-nos de que, segundo o entendimento dessa, "Qualquer juiz ou tribunal, mesmo do trabalho, pode negar aplicação a uma lei inconstitucional. Mas a declaração de inconstitucionalidade que fulmina a lei é a do Supremo Tribunal Federal." (21)

            2.1.3 Problemas decorrentes da teoria

            Deixando-se à parte os problemas decorrentes das inovações legislativas, que serão enfrentados nos itens seguintes, cabe-nos observar que não se justifica a tese da nulidade perante o controle difuso. De fato, se um juiz singular declara inconstitucional determinado ato, esse é, segundo essa teoria, nulo, e, como tal, tem seus efeitos desconstituídos ex tunc.

            No entanto, os efeitos da decisão no controle concreto são meramente inter partes, o que quer dizer que não alcançam as demais pessoas, para as quais a lei declarada inconstitucional continua a produzir efeitos.

            Ora, se a lei é nula, inválida, como pode continuar a produzir efeitos?

            Gilmar Mendes assevera a esse respeito que:

            Assim, nos Estados Unidos, a não-aplicação da lei declarada inconstitucional depende, fundamentalmente, do instituto do stare decisis, que assegura, dentro de certos limites, a observância do precedente. No Direito brasileiro, a eficácia genérica da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em caso concreto, depende da suspensão do ato pelo Senado Federal (CF 1967/1969, art. 42, VII) (22).

            Assim, para que a decisão de inconstitucionalidade decorrente de controle difuso efetivamente leve à cessação de efeitos de lei contrária à Constituição, é necessário que, após a sentença proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em virtude de recurso extraordinário, o Senado Federal decrete a suspensão da execução da lei. Essa solução é prevista pelas constituições desde a de 1934. No entanto, na prática, o Senado quase se manifesta.

            Além disso, se a lei é nulo, não produz efeitos. Por que precisa ter sua execução suspensa?

            2.2 Correntes doutrinárias discordantes

            Dentre as posições doutrinárias dissidentes da teoria tradicional há a de Kelsen, que firmou a chamada teoria da anulabilidade da norma inconstitucional, segundo a qual essa norma é "anulável retroativamente".

            Para ele, "As chamadas leis ‘inconstitucionais’ são leis conformes à Constituição que, todavia, são anuláveis por um processo especial." (23)

            Mais:

            Do que acima fica dito também resulta que, dentro de uma ordem jurídica não pode haver algo como a nulidade, que uma norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser nula mas apenas pode ser anulável. Mas esta anulabilidade prevista pela ordem jurídica pode ter diferentes graus." (24)

            Em relação à decisão que constata a inconstitucionalidade, afirma seu caráter constitutivo, já que a norma não é nula ab initio. A decisão anula-a com eficácia retroativa (25).

            Explica que:

            Até esse momento (da decisão de inconstitucionalidade), porém, a lei é válida e deve ser aplicada por todos os órgãos aplicadores do Direito. Uma tal lei pode permanecer em vigor e ser aplicada durante muitos anos antes que seja anulada pelo tribunal competente como ‘inconstitucional’. (26)

            O mestre vienense entende que, se uma norma pertence a uma ordem jurídica não pode ser nula (porque, se existe como norma, fundamenta-se na Constituição e, portanto, tem validade), somente anulável. No entanto, admite haver uma gradação, já que a norma pode ser anulada ex nunc ou ex tunc, para que os efeitos já produzidos, nesse último caso, sejam rescindidos.

            Assim, "a nulidade é apenas o grau mais alto da anulabilidade." (27)

            No Brasil, Pontes de Miranda afirmou que a decisão de inconstitucionalidade é desconstitutiva ou constitutiva negativa: "Para que a decisão positiva sôbre inconstitucionalidade fôsse declaratória, seria preciso que a lei, eivada de tal vício, não existisse, de jeito que o juiz ou tribunal diria: ‘Não existe’; e a eficácia seria a de tôda decisão declarativa." (28)

            O autor entende que o ato jurídico deve ser considerado quanto à existência, quanto à validade e quanto à eficácia (29). Assim, o ato inconstitucional existe, mas invalidamente. Deve ser desconstituído (devido à sua invalidade), mesmo que retroativamente, mas sua inexistência não pode ser afirmada.

            2.2.1 O voto vencido do Ministro Leitão de Abreu

            Reproduzimos aqui parte do comentado voto vencido do Ministro do Supremo Tribunal Federal Leitão de Abreu no qual esse, contrariando a teoria da nulidade consagrada pela Corte, defendeu as idéias de Kelsen de que o ato inconstitucional é anulável, sendo a decisão de inconstitucionalidade, na verdade, constitutiva ex tunc. Trata-se de posição isolada, jamais repetida.

            Eis o voto, referente ao RE 79.343/BA, julgado em 31.05.1977 e publicado na RTJ 82/795:

            Acertado se me afigura, também, o entendimento de que se não deve ter como nulo ab initio ato legislativo, que entrou no mundo jurídico munido de presunção de validade, impondo-se, em razão disso, enquanto não declarado inconstitucional, à obediência pelos destinatários dos seus comandos. Razoável é a inteligência, a meu ver, de que se cuida, em verdade, de ato anulável, possuindo caráter constitutivo a decisão que decreta a nulidade. Como, entretanto, em princípio, os efeitos dessa decisão operam retroativamente, não se resolve, com isso, de modo pleno, a questão de saber se é mister haver como delitos do orbe jurídico atos ou fatos verificados em conformidade com a norma que haja sido pronunciada como inconsistente com a ordem constitucional. Tenho que procede a tese, consagrada pela corrente discrepante, a que se refere o Corpus Juris Secundum, de que a lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação da inconstitucionalidade, podendo ter conseqüências que não é lícito ignorar. (30)

            2.3 Doutrina contemporânea

            Hoje, já há doutrinadores que entendem que a nulidade não é inerente à inconstitucionalidade. Nesse sentido, Gilmar Mendes estatui que "Em outros termos, a nulidade resulta da inconstitucionalidade, não se configurando, porém, uma conseqüência lógica desta." (31)

            De fato, na Europa a grande maioria dos estudiosos possui esse entendimento. Aliás, inspiram-se em Kelsen para afirmar que, apesar de o ordenamento jurídico considerar nulo o ato inconstitucional, essa nulidade é apenas o grau máximo da anulabilidade (V. item 2.2., acima).

            Assim, não havendo correspondência lógica entre inconstitucionalidade e nulidade do ato, diversas são as sanções possíveis para o ato inconstitucional, que variam conforme a extensão da incompatibilidade entre as normas e da conseqüente impropriedade do ato inquinado.

            Dessa maneira, entendem tais doutrinadores que o ato inconstitucional, dependendo do modelo adotado no país, pode ter como conseqüência ou sanção: (a) a inexistência, quando o ato jamais chega a produzir efeitos, podendo qualquer pessoa se opor a ele independentemente de qualquer declaração judicial; (b) nulidade, se o ato não produz efeito desde a origem mas, apesar disso, é indispensável a declaração de inconstitucionalidade por órgão público com competência constitucional para tanto (nulidade como sanção); (c) anulabilidade, circunstância na qual o ato somente deixa de produzir efeitos após a decisão de inconstitucionalidade – Jorge Miranda lembra que tal ato, por ser anulável, pode ser convalidado, sanando-se o vício (32); (d) irregularidade, caso em que o ato continua a produzir normalmente seus efeitos. (33)

            Bem verdade é que a graduação da sanção conferida ao ato inconstitucional foi primeiramente compilada por Jorge Miranda (34), que o faz conforme a gravidade e a evidência do vício. Segundo esse autor, toda violação à constituição gera uma invalidade, salvo no caso das formalidades menos importantes, que não tornam o ato inválido.

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Sobre a autora
Maísa Cristina Dante da Silveira

advogada em Franca (SP), mestranda em Direito Público

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Maísa Cristina Dante. A questão da nulidade do ato inconstitucional no direito positivo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 718, 23 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6927. Acesso em: 24 nov. 2024.

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