8. DEVER DE MÚTUA ASSISTÊNCIA
A mútua assistência envolve aspectos morais e materiais. Decorre do princípio da solidariedade familiar.
A assistência moral diz respeito às atenções e cuidados devotados à pessoa do outro cônjuge, que socialmente se espera daqueles que estão unidos por laços de afetividade e amizade em seu grau mais elevado. Está vinculado à natureza humana de apoio recíproco e de solidariedade, nos momentos bons e nos momentos difíceis. É o conforto moral, o ombro amigo e o desvelo na doença, na tristeza e nas crises psicológicas e espirituais. Também é o carinho, o apoio, o estímulo aos sucessos na vida emocional e profissional. Certamente, são esses os elementos mais fortes do relacionamento conjugal ou amoroso, no seu cotidiano, cuja falta leva progressivamente à separação, mais do que qualquer outro fato isolado.
A assistência material, que alguns denominam dever de socorro, diz respeito ao provimento dos meios necessários para o sustento da família, de acordo com os rendimentos e as possibilidades econômicas de cada cônjuge. A família, como qualquer grupo social, é um complexo de necessidades, envolvendo alimentação, vestuário, lazer, habitação, educação, saúde. A lei não estabelece, nem seria possível fazê-lo, quais os itens que compõem as necessidades familiares que integram a manutenção econômica. Cabe aos cônjuges defini-los e a distribuição dos encargos entre si. O descumprimento do dever de assistência material converte-o em dever de alimentos, que pode ser exigido pelo outro cônjuge, dentro dos requisitos que são próprios dessa hipótese, a saber, necessidade e possibilidade.
9. DEVER DE SUSTENTO, GUARDA E EDUCAÇÃO DOS FILHOS
Esse dever constitui a especificação dos encargos cometidos aos cônjuges, relativamente aos filhos comuns, caso os haja. É dever e direito, uma vez que interessa a cada um dos pais a formação, sanidade e convivência dos filhos.
O sustento relaciona-se com o aspecto material, isto é, as despesas com a sobrevivência adequada e compatível com os rendimentos dos pais, e ainda com saúde, esporte, lazer, cultura e educação dos filhos.
A guarda, para fins dos deveres comuns dos cônjuges, tem o sentido amplo de direito-dever de convivência familiar, considerada prioridade absoluta da criança (art. 227 da Constituição), e ainda de manutenção do filho, sob vigilância e amparo, com oposição a terceiros, deveres esses inerentes ao poder familiar (art. 1.630 do Código Civil). Como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 33), a guarda obriga à prestação de assistência material, moral e educacional à criança.
A educação, no sentido amplo empregado pelo Código Civil, inclui a cultura e as várias dimensões em que ela se dá na progressiva formação do filho, enquanto estiver sob o poder familiar dos pais. Estabelece a Constituição (art. 205) que a educação tem por fito o desenvolvimento integral da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho. Dá-se a educação na família, na convivência humana, nos espaços sociais e políticos e, sobretudo, na escola. Esse significado abrangente de educação, como dever imputado aos pais, corresponde ao de formação total da pessoa, na acepção que os antigos gregos atribuíam a paidéia. A liberdade dos pais não vai ao ponto de permitir-lhes a introdução de valores que agridam à moral e aos bons costumes adotados pela comunidade ou os que a Constituição prescreve.
O descumprimento desse dever, em face dos filhos, acarreta várias conseqüências: condenação a pagamento de alimentos, substituição da guarda ou até mesmo a perda do poder familiar, e ainda a responsabilidade civil por danos morais em virtude de violação aos direitos da personalidade que se consolidam durante o período de formação da criança e do adolescente.
CONCLUSÃO
A desigualdade de deveres entre os cônjuges foi o consectário natural do paradigma familiar que vigorou na legislação brasileira, até praticamente o advento da Constituição de 1988, que pôs cobro a seus últimos e resistentes resíduos. No plano infraconstitucional, o Código Civil de 2002 suprimiu explicitamente o tratamento legal assimétrico dos deveres do marido e da mulher, concentrando no art. 1.566 os deveres comuns de ambos.
Contudo, a própria razão de ser da norma instituidora dos deveres comuns, sua utilidade e sua finalidade, perderam consistência porque ela integrava um conjunto normativo voltado à consolidação do paradigma familiar fundado na entidade matrimonializada, no poder marital, na legitimidade e no pátrio poder. Esses pilares desapareceram ou foram profundamente transformados, mercê da refundamentação da família determinada pela Constituição de 1988, refletindo as intensas modificações sociais e culturais ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas do século XX, principalmente pela adoção irrestrita (e, verdadeiramente, revolucionária) do princípio da igualdade de direitos e obrigações entre homem e mulher e entre os filhos.
O princípio constitucional da igualdade também alcançou as entidades familiares, não havendo hierarquia entre elas, notadamente entre o casamento e a união estável. Assim, não se justifica que o Código Civil tenha atribuído deveres distintos para os cônjuges e para os companheiros de união estável. A Constituição não desnivelou a união estável ao estabelecer que a lei deva facilitar a conversão dela em casamento. Cuida-se aí de faculdade ou de poder potestativo; é como dissesse que os companheiros são livres para manter sua entidade familiar, com todos os direitos, ou convertê-la em outra, se assim desejarem, para o que o legislador deve remover os obstáculos jurídicos. Do mesmo modo, o caminho inverso é possível, convertendo-se os cônjuges, após o divórcio, em companheiros. O Código, no entanto, não facilitou a conversão; dificultou-a, ao impor deveres aplicáveis apenas aos cônjuges e não aos companheiros, ou seja, a fidelidade recíproca e a coabitação, o que os torna de constitucionalidade duvidosa.
Referidos deveres de fidelidade recíproca e coabitação e até mesmo o de respeito e consideração mútuos são juridicamente inócuos, pois não há qualquer sanção jurídica para seu inadimplemento durante a convivência conjugal, restando aos cônjuges, exclusiva e intimamente, avaliarem se a conduta contrária pode tornar suportável ou não seu relacionamento. Servem apenas como causa de separação judicial litigiosa, enquanto perdurar no direito brasileiro a imputação da culpa, repelida pela consciência jurídica, em virtude de seu afrontoso desrespeito à dignidade humana e da ausência de fundamento na Constituição, que dela não trata quando assegura a liberdade de separação ou divórcio (art. 226, § 6º). A verificação judicial da culpa, atenta contra a tutela constitucional da intimidade e da vida privada dos cônjuges (art. 5º, X, da Constituição), que são direitos da personalidade invioláveis.
Em suma, apenas os deveres de mútua assistência e de sustento, guarda e educação dos filhos, com o alcance abrangente que acima delineamos, podem ser considerados em conformidade com o paradigma hodierno de família e com os valores constitucionais.
NOTAS
1 Os intérpretes mais conservadores sempre antepuseram obstáculos à plenitude do princípio constitucional da igualdade, como a história do direito no-lo demonstra, fazendo-o sempre dependente de norma infraconstitucional expressa, no evidente intuito de prolongar a vigência da ordem jurídica anterior. TEIXEIRA DE FREITAS (Consolidação das leis civis, Rio de Janeiro: Garnier, 1896, p 33) atribui à visão retrógrada à "força do hábito", e dá exemplo dos que antes como hoje assim procedem: "Para cessar a odiosa diferença nos direitos de sucessão hereditária entre filhos de homem pobre e peão, não bastou que a Constituição [do Império] abolisse os privilégios, e proclamasse a igualdade perante a lei (art. 179, § § 13 e 16); foi necessário que sobreviesse a disposição expressa do art. 1º do Decreto nº 463 de 2 de setembro de 1847."
2 Cf., a respeito, LÔBO, Paulo Luiz Netto, Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus, Revista Brasileira de Direito de Família, n. 12, jan./mar. 2002, p. 40-55.
3 O preconceito é bem retratado na gíria alemã que destinava à mulher o reino dos três K (Küche, Kinder, Kirche): cozinha, filhos e igreja. Tudo o mais era atribuído ao governo do homem.
4 Cf. RODRIGUES, Sílvio, Breve histórico sobre o direito de família nos últimos 100 anos, Revista da Faculdade de Direito da USP, v. 88, p. 246, 1993.
5 Cf. LÔBO, Paulo Luiz Netto, A repersonalização das relações de família, Revista Brasileira de Direito de Família, n. 24, jun./jul. 2004, p. 136-156.
6 Cf. VALASCO e MELLO FREIRE, apud ALMEIDA, Cândido Mendes de, Auxiliar Jurídico – Apêndice às Ordenações do reino, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985 (fac-símile da edição de 1869), v. II, p. 569.
7Esboço do Código Civil, Brasília: Ministério da Justiça, 1983, v. 1, p. 287.
8 Veja-se a sintomática afirmação do jurista maior do século XIX, TEIXEIRA DE FREITAS, na introdução à Consolidação das Leis Civis, op. cit., p. 101: "Como o Estado é uma reunião de famílias [...]".
9 Nesse sentido, PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, vol. V, atualiz. Tânia da Silva Pereira, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 171: "A quebra do dever de fidelidade apenas se caracteriza pela prática de relações sexuais com outra pessoa".
10 No direito americano, a concepção de privacidade como direito fundamental, no âmbito da família, culminou com a decisão Griswold em 1963, da Suprema Corte. Nela, declara-se o casamento como uma associação que promove um modo de vida, não o causa; uma harmonia de existência, não fatos políticos; uma lealdade bilateral, não projetos comerciais ou sociais. São situações cobertas pelo direito à privacidade, que não admitem a interferência do Estado ou de terceiros. Até mesmo o adultério pode ser uma escolha privada protegida pela Constituição. Cf. KRAUSE, Harry D., Family Law, St. Paul: West Publishing, 1986, p. 25 e 122.
11 Afirma-se que na França duas pessoas detinham o poder de graça: o Presidente da República e o marido enganado. Cf. GROSLIERE, Josete, De l’infidelité de la femme mariée, Revue Trimestrielle de Droit Civil, 89(2) avr./juin. 1990, p. 230.
12Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, t. III, p. 110.
13Direito de Família, Lisboa: Petrony, 1987, p. 345.