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As vicissitudes da igualdade e dos deveres conjugais no direito brasileiro

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27/06/2005 às 00:00
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8. DEVER DE MÚTUA ASSISTÊNCIA

A mútua assistência envolve aspectos morais e materiais. Decorre do princípio da solidariedade familiar.

A assistência moral diz respeito às atenções e cuidados devotados à pessoa do outro cônjuge, que socialmente se espera daqueles que estão unidos por laços de afetividade e amizade em seu grau mais elevado. Está vinculado à natureza humana de apoio recíproco e de solidariedade, nos momentos bons e nos momentos difíceis. É o conforto moral, o ombro amigo e o desvelo na doença, na tristeza e nas crises psicológicas e espirituais. Também é o carinho, o apoio, o estímulo aos sucessos na vida emocional e profissional. Certamente, são esses os elementos mais fortes do relacionamento conjugal ou amoroso, no seu cotidiano, cuja falta leva progressivamente à separação, mais do que qualquer outro fato isolado.

A assistência material, que alguns denominam dever de socorro, diz respeito ao provimento dos meios necessários para o sustento da família, de acordo com os rendimentos e as possibilidades econômicas de cada cônjuge. A família, como qualquer grupo social, é um complexo de necessidades, envolvendo alimentação, vestuário, lazer, habitação, educação, saúde. A lei não estabelece, nem seria possível fazê-lo, quais os itens que compõem as necessidades familiares que integram a manutenção econômica. Cabe aos cônjuges defini-los e a distribuição dos encargos entre si. O descumprimento do dever de assistência material converte-o em dever de alimentos, que pode ser exigido pelo outro cônjuge, dentro dos requisitos que são próprios dessa hipótese, a saber, necessidade e possibilidade.


9. DEVER DE SUSTENTO, GUARDA E EDUCAÇÃO DOS FILHOS

Esse dever constitui a especificação dos encargos cometidos aos cônjuges, relativamente aos filhos comuns, caso os haja. É dever e direito, uma vez que interessa a cada um dos pais a formação, sanidade e convivência dos filhos.

O sustento relaciona-se com o aspecto material, isto é, as despesas com a sobrevivência adequada e compatível com os rendimentos dos pais, e ainda com saúde, esporte, lazer, cultura e educação dos filhos.

A guarda, para fins dos deveres comuns dos cônjuges, tem o sentido amplo de direito-dever de convivência familiar, considerada prioridade absoluta da criança (art. 227 da Constituição), e ainda de manutenção do filho, sob vigilância e amparo, com oposição a terceiros, deveres esses inerentes ao poder familiar (art. 1.630 do Código Civil). Como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 33), a guarda obriga à prestação de assistência material, moral e educacional à criança.

A educação, no sentido amplo empregado pelo Código Civil, inclui a cultura e as várias dimensões em que ela se dá na progressiva formação do filho, enquanto estiver sob o poder familiar dos pais. Estabelece a Constituição (art. 205) que a educação tem por fito o desenvolvimento integral da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho. Dá-se a educação na família, na convivência humana, nos espaços sociais e políticos e, sobretudo, na escola. Esse significado abrangente de educação, como dever imputado aos pais, corresponde ao de formação total da pessoa, na acepção que os antigos gregos atribuíam a paidéia. A liberdade dos pais não vai ao ponto de permitir-lhes a introdução de valores que agridam à moral e aos bons costumes adotados pela comunidade ou os que a Constituição prescreve.

O descumprimento desse dever, em face dos filhos, acarreta várias conseqüências: condenação a pagamento de alimentos, substituição da guarda ou até mesmo a perda do poder familiar, e ainda a responsabilidade civil por danos morais em virtude de violação aos direitos da personalidade que se consolidam durante o período de formação da criança e do adolescente.


CONCLUSÃO

A desigualdade de deveres entre os cônjuges foi o consectário natural do paradigma familiar que vigorou na legislação brasileira, até praticamente o advento da Constituição de 1988, que pôs cobro a seus últimos e resistentes resíduos. No plano infraconstitucional, o Código Civil de 2002 suprimiu explicitamente o tratamento legal assimétrico dos deveres do marido e da mulher, concentrando no art. 1.566 os deveres comuns de ambos.

Contudo, a própria razão de ser da norma instituidora dos deveres comuns, sua utilidade e sua finalidade, perderam consistência porque ela integrava um conjunto normativo voltado à consolidação do paradigma familiar fundado na entidade matrimonializada, no poder marital, na legitimidade e no pátrio poder. Esses pilares desapareceram ou foram profundamente transformados, mercê da refundamentação da família determinada pela Constituição de 1988, refletindo as intensas modificações sociais e culturais ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas do século XX, principalmente pela adoção irrestrita (e, verdadeiramente, revolucionária) do princípio da igualdade de direitos e obrigações entre homem e mulher e entre os filhos.

O princípio constitucional da igualdade também alcançou as entidades familiares, não havendo hierarquia entre elas, notadamente entre o casamento e a união estável. Assim, não se justifica que o Código Civil tenha atribuído deveres distintos para os cônjuges e para os companheiros de união estável. A Constituição não desnivelou a união estável ao estabelecer que a lei deva facilitar a conversão dela em casamento. Cuida-se aí de faculdade ou de poder potestativo; é como dissesse que os companheiros são livres para manter sua entidade familiar, com todos os direitos, ou convertê-la em outra, se assim desejarem, para o que o legislador deve remover os obstáculos jurídicos. Do mesmo modo, o caminho inverso é possível, convertendo-se os cônjuges, após o divórcio, em companheiros. O Código, no entanto, não facilitou a conversão; dificultou-a, ao impor deveres aplicáveis apenas aos cônjuges e não aos companheiros, ou seja, a fidelidade recíproca e a coabitação, o que os torna de constitucionalidade duvidosa.

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Referidos deveres de fidelidade recíproca e coabitação e até mesmo o de respeito e consideração mútuos são juridicamente inócuos, pois não há qualquer sanção jurídica para seu inadimplemento durante a convivência conjugal, restando aos cônjuges, exclusiva e intimamente, avaliarem se a conduta contrária pode tornar suportável ou não seu relacionamento. Servem apenas como causa de separação judicial litigiosa, enquanto perdurar no direito brasileiro a imputação da culpa, repelida pela consciência jurídica, em virtude de seu afrontoso desrespeito à dignidade humana e da ausência de fundamento na Constituição, que dela não trata quando assegura a liberdade de separação ou divórcio (art. 226, § 6º). A verificação judicial da culpa, atenta contra a tutela constitucional da intimidade e da vida privada dos cônjuges (art. 5º, X, da Constituição), que são direitos da personalidade invioláveis.

Em suma, apenas os deveres de mútua assistência e de sustento, guarda e educação dos filhos, com o alcance abrangente que acima delineamos, podem ser considerados em conformidade com o paradigma hodierno de família e com os valores constitucionais.


NOTAS

1 Os intérpretes mais conservadores sempre antepuseram obstáculos à plenitude do princípio constitucional da igualdade, como a história do direito no-lo demonstra, fazendo-o sempre dependente de norma infraconstitucional expressa, no evidente intuito de prolongar a vigência da ordem jurídica anterior. TEIXEIRA DE FREITAS (Consolidação das leis civis, Rio de Janeiro: Garnier, 1896, p 33) atribui à visão retrógrada à "força do hábito", e dá exemplo dos que antes como hoje assim procedem: "Para cessar a odiosa diferença nos direitos de sucessão hereditária entre filhos de homem pobre e peão, não bastou que a Constituição [do Império] abolisse os privilégios, e proclamasse a igualdade perante a lei (art. 179, § § 13 e 16); foi necessário que sobreviesse a disposição expressa do art. 1º do Decreto nº 463 de 2 de setembro de 1847."

2 Cf., a respeito, LÔBO, Paulo Luiz Netto, Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus, Revista Brasileira de Direito de Família, n. 12, jan./mar. 2002, p. 40-55.

3 O preconceito é bem retratado na gíria alemã que destinava à mulher o reino dos três K (Küche, Kinder, Kirche): cozinha, filhos e igreja. Tudo o mais era atribuído ao governo do homem.

4 Cf. RODRIGUES, Sílvio, Breve histórico sobre o direito de família nos últimos 100 anos, Revista da Faculdade de Direito da USP, v. 88, p. 246, 1993.

5 Cf. LÔBO, Paulo Luiz Netto, A repersonalização das relações de família, Revista Brasileira de Direito de Família, n. 24, jun./jul. 2004, p. 136-156.

6 Cf. VALASCO e MELLO FREIRE, apud ALMEIDA, Cândido Mendes de, Auxiliar Jurídico – Apêndice às Ordenações do reino, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985 (fac-símile da edição de 1869), v. II, p. 569.

7Esboço do Código Civil, Brasília: Ministério da Justiça, 1983, v. 1, p. 287.

8 Veja-se a sintomática afirmação do jurista maior do século XIX, TEIXEIRA DE FREITAS, na introdução à Consolidação das Leis Civis, op. cit., p. 101: "Como o Estado é uma reunião de famílias [...]".

9 Nesse sentido, PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, vol. V, atualiz. Tânia da Silva Pereira, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 171: "A quebra do dever de fidelidade apenas se caracteriza pela prática de relações sexuais com outra pessoa".

10 No direito americano, a concepção de privacidade como direito fundamental, no âmbito da família, culminou com a decisão Griswold em 1963, da Suprema Corte. Nela, declara-se o casamento como uma associação que promove um modo de vida, não o causa; uma harmonia de existência, não fatos políticos; uma lealdade bilateral, não projetos comerciais ou sociais. São situações cobertas pelo direito à privacidade, que não admitem a interferência do Estado ou de terceiros. Até mesmo o adultério pode ser uma escolha privada protegida pela Constituição. Cf. KRAUSE, Harry D., Family Law, St. Paul: West Publishing, 1986, p. 25 e 122.

11 Afirma-se que na França duas pessoas detinham o poder de graça: o Presidente da República e o marido enganado. Cf. GROSLIERE, Josete, De l’infidelité de la femme mariée, Revue Trimestrielle de Droit Civil, 89(2) avr./juin. 1990, p. 230.

12Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, t. III, p. 110.

13Direito de Família, Lisboa: Petrony, 1987, p. 345.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. As vicissitudes da igualdade e dos deveres conjugais no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 722, 27 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6929. Acesso em: 18 abr. 2024.

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