4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
O trabalho consistiu na análise de seis jurisprudências encontradas nos sites do Supremo Federal e dos tribunais de justiça de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul e do Tribunal Regional Federal da 5ª região, entre os anos de 2007 e 2018. Para realização das buscas, foram utilizadas como termos de busca “efetividade, “acesso à justiça”, “direito à educação”, “direito à saúde” e “reserva do possível”.
Tal pesquisa teve o escopo de analisar se as decisões proferidas pelos citados tribunais atendem aos preceitos jus filosóficos básicos do Realismo Jurídico Clássico, ou seja, se a justa distribuição das coisas, através da prática da justiça material, vem ocorrendo.
Aliado à pesquisa jurisprudencial, foi realizada a leitura da base principiológica, sobretudo do princípio da reserva do possível fática e jurídica, com vistas a compreender o embate que envolve a efetividade e eficácia dos direitos prestacionais, diante de obstáculos de ordem econômica e política.
Por último, foram colhidos dados recentes do Conselho Nacional de Justiça, que demonstram que o número de processos baixados em 2014 cresceu, mas não foi capaz de acompanhar a demanda. Tal fato (o congestionamento de processos pendentes na justiça) aliado à questão da falta de tutela judicial são responsáveis pela falta de efetividade da prestação jurisprudencial, como será destacado nas conclusões deste trabalho.
4.1 Compilado das decisões judiciais encontradas
Segue abaixo o compilado de seis decisões judiciais encontradas no período de 2007 a 2018 com sua interpretação e comentário abaixo:
Direito Constitucional. Direito à educação. Matrícula em escola pública. Criança portadora de paralisia cerebral. Educação especial. Falta de vaga. Inclusão em instituição de ensino particular. Despesas a serem arcadas pelo Município. Aplicação dos arts. 5º e 205 da Constituição Federal de 1988, arts. 53 e 54, III, da Lei nº 8.069/90 e arts. 3º, 58 a 60 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ("Lei Darcy Ribeiro"), nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996."Segundo dispõe o art. 53, V, do ECA, o poder público deve assegurar à criança e ao adolescente.
(BRASIL. V. TJRJ. 0014235-13.2009.8.19.0014 - Reexame Necessario. Relator: Des. Nagib Slaibi. Julgamento: 02/02/2011. Sexta Câmara Cível. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/. Acesso em 23/04/2018)
O julgado acima, proferido no dia 02/02/2011 pela sexta câmara cível do TJ-RJ (tribunal de justiça do Rio de Janeiro), ressalta a obrigatoriedade da matrícula das crianças e adolescentes na rede de ensino. Para tanto, menciona além da Constituição Federal, dois dispositivos infralegais (o ECA e a “Lei Darcy Ribeiro”, que também legislam sobre o assunto. Para tanto, conclui que a deficiência fática de provimento da rede pública não é escusa para que seja negado o direito à educação à criança com paralisia cerebral, a qual necessita de inclusão em instituição de ensino particular.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO EM RELAÇÃO AO DISPOSTO NOS ARTS. 6º, 23, INC. V, 208, INC. I, e 214, INC. I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. ALEGADA INÉRCIA ATRIBUÍDA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA PARA ERRADICAR O ANALFABETISMO NO PAÍS E PARA IMPLEMENTAR O ENSINO FUNDAMENTAL OBRIGATÓRIO E GRATUITO A TODOS OS BRASILEIROS. 1. Dados do recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística demonstram redução do índice da população analfabeta, complementado pelo aumento da escolaridade de jovens e adultos. 2. Ausência de omissão por parte do Chefe do Poder Executivo federal em razão do elevado número de programas governamentais para a área de educação. 3. A edição da Lei n. 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e da Lei n. 10.172/2001 (Aprova o Plano Nacional de Educação) demonstra atuação do Poder Público dando cumprimento à Constituição. 4. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão improcedente.
(BRASIL. V. STF. ADI 1.698. Rel. Min. Carmem Lúcia, j. 25.02.2010, Plenário, DJE de 16.04.2010. Disponível em: http://www.stf.jus.br/ portal/ peticaoInicial/ verPeticaoInicial.asp ? base= ADIN&s1=1698 &processo = 1698. Acesso em: 16/01/2018.)
Teve significativa repercussão essa ação direta de inconstitucionalidade por omissão impetrada pelos partidos políticos PT, PC do B e PDT em 29/10/1997, mas que só foi decidida doze anos depois no STF, em 2009. O pedido consistia na declaração de inconstitucionalidade e, consequentemente, na fixação de prazo para a adoção de medidas efetivas, em relação à omissão governamental na erradicação do analfabetismo. Com maioria dos votos, o STF decidiu pela improcedência do pedido, afirmando que o Poder Público não está inerte quanto ao direito à educação, pois editou leis e mantém diversos programas governamentais afetos ao setor educacional. Questão esta controversa, uma vez que, mesmo com as melhorias na educação, o Brasil ainda possui no ano corrente, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 11,8 milhões de analfabetos, cerca de 7,2% da população de 15 anos ou mais.
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MAL DE PARKINSON. MEDICAMENTOS ESPECIAIS. FORNECIMENTO PELO ESTADO. REGULARIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA RESERVA POSSÍVEL. INCIDÊNCIA. SEQÜESTRO DE VERBA PÚBLICA. DESNECESSIDADE. IMPROVIMENTO. 1. Comprovada pelo ente federativo estadual a atual regularização no fornecimento da medicação excepcional para os portadores do Mal de Parkinson, incabível o seqüestro de verba pública para atender a esse propósito. 2. O atendimento aos direitos sociais se sujeita ao princípio da reserva do possível, estando o seu adimplemento limitado às possibilidades orçamentárias do Estado. 3. Improvimento do Agravo de Instrumento.
(TRF-5 - AGTR: 67336 PB 0008842-80.2006.4.05.0000, Relator: Desembargador Federal Francisco Wildo, Data de Julgamento: 08/02/2007, Primeira Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça - Data: 14/03/2007 - Página: 678 - Nº: 50 - Ano: 2007.)
Nessa decisão, de relatoria do desembargador Francisco Wildo, cujo julgamento ocorreu em 08/02/2007, foi indeferido provimento ao agravo de instrumento que pleiteava o sequestro de verba pública para a distribuição e aquisição gratuita de medicamentos imprescindíveis ao tratamento de pacientes portadores de Mal de Parkinson no estado da Paraíba. A justificativa para a decisão, de relatoria do desembargador federal Francisco Wildo, é que o atendimento dos direitos sociais deve se sujeitar ao princípio da reserva do possível.
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA PARA FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL. Seja pela observância das cláusulas da reserva do possível e da reserva em matéria orçamentária, seja pelos princípios da isonomia, da seletividade e da distributividade, seja ainda pela realização dos objetivos da República Federativa do Brasil, de justiça social e redução das desigualdades sociais, não está o Estado obrigado a fornecer medicamentos não padronizados pelo SUS. Recurso conhecido e parcialmente provido.
(TJ-MG - AC: 10024081940736002 MG, Relator: Albergaria Costa, Data de Julgamento: 24/01/2013, Câmaras Cíveis Isoladas / 3ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 01/02/2013.Disponível em: https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/118271431/apela-o-c-vel-ac-10024113012645001-mg/inteiro-teor-118271466. Acesso em: 09/06/2018)
Em mais um julgado, desta vez proferido pela 3ª Câmara Cível do TJ-MG (tribunal de justiça de Minas Gerais), é possível visualizar a utilização do princípio da reserva do possível como argumento ante à ineficiência estatal em prover a tutela jurisdicional. Na fundamentação do acórdão, a relatora Albergária Costa ainda argumenta que a Constituição Federal não definiu o objeto do “direito à saúde”, não elucidando se tal direito abrangeria qualquer tipo de prestação afeta à saúde humana ou se apenas aquelas consideradas básicas e essenciais.
AGRAVO DE INSTRUMENTO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO – DEFENSORIA PÚBLICA – IMPLANTAÇÃO – OMISSÃO ESTATAL QUE COMPROMETE E FRUSTRA DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PESSOAS NECESSITADAS – SITUAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE INTOLERÁVEL – O RECONHECIMENTO, EM FAVOR DE POPULAÇÕES CARENTES E DESASSISTIDAS, POSTAS À MARGEM DO SISTEMA JURÍDICO, DO “DIREITO A TER DIREITOS” COMO PRESSUPOSTO DE ACESSO AOS DEMAIS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS – INTERVENÇÃO JURISDICIONAL CONCRETIZADORA DE PROGRAMA CONSTITUCIONAL DESTINADO A VIABILIZAR O ACESSO DOS NECESSITADOS À ORIENTAÇÃO JURÍDICA INTEGRAL E À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITAS (CF, ART. 5º, INCISO LXXIV, E ART. 134) – LEGITIMIDADE DESSA ATUAÇÃO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS – O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO – A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO ESTADO – A TEORIA DA “RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES” (OU DA “LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES”) – CONTROLE JURISDICIONAL DE LEGITIMIDADE DA OMISSÃO DO ESTADO: ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL, VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO) – DOUTRINA – PRECEDENTES – A FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA E A ESSENCIALIDADE DESSA INSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – “THEMA DECIDENDUM” QUE SE RESTRINGE AO PLEITO DEDUZIDO NA INICIAL, CUJO OBJETO CONSISTE, UNICAMENTE, na “criação, implantação e estruturação da Defensoria Pública da Comarca de Apucarana” – RECURSO DE AGRAVO PROVIDO, EM PARTE.
(BRASIL. V. STF. AI 598212 ED / PR. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 25/03/2014 Órgão Julgador: Segunda Turma. Disponível em:http://www.stf.jus.br /arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/ anexo / AI598212CM.pdf. Acesso em 23/03/2014.)
No julgado supracitado, o Supremo Tribunal Federal invoca a impossibilidade da utilização do princípio da reserva do possível como argumento para que seja negado um direito constitucionalmente previsto, que é o acesso ao judiciário e à defensoria pública aos necessitados. Ao contrário da maior parte das decisões jurisdicionais que não prezam pela tutela, neste julgado, o STF ressalta o papel do poder judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela constituição e não efetivadas pelo Poder Público.
Já no tocante ao direito ao acesso à justiça, o qual encontra-se insculpido no inciso XXXV, do artigo 5º da CF/88 com os seguintes dizeres “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, devemos entender que a lei não pode criar obstáculos ao acesso à justiça. Dessa forma, no que diz respeito à justiça do trabalho, as condenações de reclamantes ao pagamento de honorários de advogados das reclamadas, sobretudo em vultosas quantias constituem grave afronta à garantia constitucional do acesso à justiça. É o que podemos constatar em uma decisão que trouxe o seguinte fundamento:
“Na forma do caput e do §2º e 3º do art. 791-A da CLT, inserido pela Lei 13. 457/2017, julgo procedentes os honorários advocatícios no importe de 15% sobre o valor da condenação em favor das partes, observando-se a sucumbência recíproca. No caso, o reclamado somente foi sucumbente nas horas extras decorrente da não concessão do intervalo do art. 384 da CLT, condenação esta que fixo em R$ 50.000,00, razão pela qual condeno o réu ao pagamento de R$ 7.500,00. Já a reclamante foi sucumbente nos demais pedidos - R$ 450.000,00 -, razão pela qual a condeno ao pagamento de honorários sucumbenciais no importe de R$ 67.500,00.”[grifo nosso]
(Segunda Vara do Trabalho- Volta Redonda-RJ: 01003668020165010342. Magistrado: Thiago Rabelo da Costa. Data de julgamento: 01/02/2018. Disponível em: http://bd1.trt1.jus.br/xmlui/handle/1001/999769. Acesso em: 21/06/2018.)
4.2 Reserva do possível fática e jurídica e sua limitação à efetividade da tutela jurisdicional
Primeiramente, antes de definir o que seja o princípio da reserva fática e jurídica, faz-se necessário diferenciar prestação de tutela jurisdicional. Quando o Estado garante a realização do serviço judiciário, que se instrumentaliza por meio do processo para a solução da lide, ele está realizando a prestação jurisdicional. Segundo Humberto Theodoro Junior, na satisfação do direito à composição do litígio (definição ou atuação da vontade concreta da lei diante do conflito instalado entre as partes) consiste a prestação jurisdicional.
A tutela jurisdicional, por sua vez, é o amparo de que o Estado se utiliza para dirimir, pacificar e resolver conflitos seguindo um procedimento de aplicação de leis ao caso concreto, obtendo um resultado prático para o processo, com vistas a se aproximar da decisão “justa”. Assim, a tutela preocupa-se não apenas em declarar direitos, mas também em torna-los concretos, buscando meios para sua concretização. Nas palavras de José Roberto dos Santos Bedaque (2003, p.29):
Tutela jurisdicional deve ser entendida, assim, como tutela efetiva de direitos ou de situações pelo processo. Constitui visão do direito processual que põe em relevo o resultado do processo como fator de garantia de direito material. A técnica processual a serviço de seu resultado.
Dado o exposto, podemos concluir que a tutela vai além da prestação jurisdicional, uma vez que ela não se preocupa apenas em declarar direitos, mas também em resguardar in concreto o direito subjetivo da parte. Em alguns dos 6 exemplos de julgados que ilustramos no tópico 5.1 deste trabalho, foi possível perceber a efetividade da prestação jurisdicional, mas não podemos garantir que foi realizada a tutela efetiva dos direitos reconhecidos, uma vez que esta depende não apenas do judiciário, mas também dos poderes executivo e legislativo. E é justamente neste ponto que é necessário compreender a reserva fática e jurídica como justificativa utilizada para a ausência estatal em cumprir seu papel de provedor das necessidades da sociedade, ou seja, de realizar a justiça objetiva, tal qual defendida pelos realistas jurídicos clássicos.
A Reserva do Possível desdobra-se em reserva fática e jurídica. A fática representa a autonomia orçamentária e a falta de recursos do Estado. Assim, a juridicidade dos direitos sociais, ou seja, o cumprimento de uma decisão judicial com vistas a concretizar a justiça distributiva, é remetida à esfera programática, cuja concretização ficará a cargo do Poder Público, através da formulação de políticas públicas condicionadas à sua disponibilidade financeira.
Por sua vez, a reserva jurídica está ligada ao fato de que o despendimento de recursos depende de autorização orçamentária, portanto, legislativa. Desse modo, o magistrado pode proferir sua decisão, mas não pode participar do processo legislativo atinente ao orçamento público. Nesse diapasão, Ana Lúcia da Costa Barros (2003) conclui que a distribuição das coisas na sociedade jamais poderia ser sindicável pelo poder judiciário, pois tais prestações estão inseridas no poder discricionário do executivo em dar destinação das verbas públicas segundo seus critérios de conveniência e oportunidade.
Conforme já mencionamos, o princípio da reserva fática e jurídica é utilizado como principal argumento ante a ausência estatal em prover a efetiva tutela jurisdicional, condicionando tal inefetividade à falta de recursos públicos ou de autorização orçamentária, sendo ambos de competência outra que não do magistrado.