A reconstrução da dignidade da pessoa humana na sociedade brasileira:

entre ficção e realidade

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RESUMO: O presente artigo aborda o princípio da dignidade da pessoa humana, como uma garantia e direito fundamental de toda e qualquer pessoa, estando positivado na Constituição Federal do Brasil de 1988, inclusive tendo um status internacional, visto sob a óptica da literatura, a qual o coloca sob uma óptica ficta e real. Este estudo é de suma importância para a ciência social aplicada, uma vez que transcende normas positivas concentrando-se em problemas de interpretação que embasam doutrinas e jurisprudências, uma vez que a dignidade da pessoa humana não pode ser visualizada como uma mera norma ética ou relacionada aos ditames de boa-fé, mas sim como parâmetro que deve acompanhar as relações sociais, razão pela qual encontra proteção em vários dispositivos constitucionais pelo mundo, a fim de propiciar um direito mais humano. Serão expostas as visões de renomados autores sobre o tema, assim como as evoluções históricas que contribuíram para o surgimento da dignidade. Para tanto, enfatizou-se o estudo do princípio da dignidade da pessoa humana sob a óptica dos escritos literários Herta Müller (2011) e Primo Levi (1988), os quais trabalham com o processo de luta de sobrevivência como modo de fundamentar e conservar a sua dignidade como pessoa humana. O questionamento envolve a possibilidade deste princípio existir além da questão formal, a fim de se materializar no plano fático, tendo como impasses ou justificativas de mudanças as próprias alterações no ambiente sociocultural.

Palavras chave: Dignidade da Pessoa Humana; Evoluções; Surgimento; Literatura.

ABSTRACT:This article deals with the principle of the dignity of the human person, as a guarantee and fundamental right of every person, being positivado in the Federal Constitution of Brazil, including having an international status, seen from the perspective of literature. This study is of paramount importance to applied social science, since it transcends positive norms by focusing on problems of interpretation that underlie doctrines and jurisprudence, since the dignity of the human person can not be seen as a mere ethical or related norm to dictates in good faith, but rather as a parameter that should accompany social relations, which is why it finds protection in various constitutional devices throughout the world, in order to provide a more human right. The visions of renowned authors on the subject will be exposed, as well as the historical evolutions that have contributed to the emergence of dignity. In order to do so, the study emphasized the principle of the dignity of the human person from the perspective of the literary authors Herta Müller (2011) and Primo Levi (1988), who work with the process of survival struggle as a way of founding and preserving the dignity as a human person. The questioning involves the possibility of this principle to exist beyond the formal question, in order to be materialized in the factual plan, having as impasses or justifications for changes the very changes in the sociocultural environment.

         Key words: Dignity of the Human Person; Evolution; Emergence; Literature.


 1 INTRODUÇÃO

As mudanças sociais e a evolução histórica contribuíram de forma significativa para o surgimento da ideia de dignidade humana. Vivemos em uma época em que existe um parâmetro mínimo para se ter uma vida considerada digna, conforme, inclusive, já fora delimitado por nossa Suprema Corte, mas tais conquistas são sinônimas de uma luta antiga que ainda existe e persiste, seja de forma coletiva, seja no interior de cada ser humano.

A dignidade da pessoa humana possui características próprias e distintas, e atualmente está inserida na Carta Magna de 1988, embasando o Estado Democrático de Direito, especialmente no contexto pós ditatura.

A dignidade da pessoa humana atualmente está positivada no texto Constitucional de 1988, no artigo 1°, inciso III, e muito se tem discutido acerca dessa temática e sua aplicabilidade na vida cotidiana. Nesse sentido, o estudo sobre a dignidade da pessoa se faz pertinente porque todos sabem da sua existência e positivação na Constituição, seja na Constituição do Brasil, seja na de outros países. Cabe ressaltar que “a dignidade é essencialmente um atributo da pessoa humana pelo simples fato de alguém ‘ser humano’, se tornando automaticamente merecedor de respeito e proteção, não importando sua origem, raça, sexo, idade, estado civil ou condição socioeconômica (sic)” (MOTTA, 2013).

O presente trabalho tem como objetivo analisar o princípio da dignidade da pessoa humana no contexto de mudanças sociais e evolução histórica. Por meio deste estudo, mostra-se possível compreender a necessidade da existência de um parâmetro mínimo para se ter uma vida considerada digna. Acontece que esse parâmetro mínimo é resultado de conquistas pela dignidade da pessoa, fruto de uma luta antiga que ainda existe, seja de forma coletiva seja no interior de cada ser humano.

É possível estudar a dignidade da pessoa humana sob dois aspectos, um realista baseado no relato autobiográfico de Levi (1988) e um fictício, baseado na obra de Müller (2011). Para assim visualizar e compreender que são apenas visões diferentes do mesmo tema, pois, em certa medida, realidade e ficção se fundem e formam a sociedade presente. Uma sociedade excludente, ainda sem saber o que é dignidade para além do que está previsto em um texto, uma sociedade que se baseia em história e sofrimento.

Optou-se por uma pesquisa qualitativa, com enfoque em reflexões teóricas e discussões acadêmicas e científicas, uma vez que é possível estudar a dignidade sob dois aspectos, um realista e um fictício, para assim visualizar e compreender que são apenas visões diferentes do mesmo tema, pois em certa medida realidade e ficção se chocam e formam a sociedade em que vivemos. Uma sociedade ainda excludente, ainda sem saber o que é dignidade para além do que estar prevista em um texto, uma sociedade que se baseia em história e sofrimento.

Desse modo, torna-se importante desenvolver um estudo sobre este princípio, bem como demonstrar a existência ou ausência de preceitos mínimos existentes, suas formalidades e características, uma vez que a dignidade permeia as decisões jurídicas e acompanha as relações sociais, sendo assegurada em várias constituições pelo mundo. Assim, o presente trabalho encontra-se divido em duas partes. A primeira parte tem por escopo desenvolver a fundamentação teórica concernente à dignidade da pessoa humana, no qual se inclui aspectos gerais, evolução histórica, um estudo sobre o que vem a ser a dignidade da pessoa humana na sociedade. Na segundo parte, apresenta-se uma análise das obras do escritor italiano Levi (1988) e da escritora romena Müller (2011), obras estas que relatam a luta pela sobrevivência, por respeito e principalmente por reconhecimento, bem como acompanha a construção da dignidade da pessoa humana na sociedade e seus reflexos no tema objeto de estudo.


2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: uma breve reconstrução histórica

Desvendar segundo o dicionário (DICIO, 2016) é “retirar a faixa de pano que cobre os olhos”, o que equivale afirmar que para ser possível entender o que vem a ser a dignidade da pessoa humana propriamente dita, faz-se necessário entender o contexto de sua criação e demais aspectos. Destarte, a dignidade da pessoa humana é um tema que gera muito debate, uma vez que durante a história, a dignidade foi se consolidando e evoluindo, não para se tornar algo inalcançável e de conceito fechado, pelo contrário, para se consolidar como sendo inerente à pessoa sem nenhuma distinção.

Para Comparato (2015, p.24), quando se criam conceitos ligados à essência do ser humano ocorre, ao mesmo tempo, uma redução da condição inerente à própria pessoa. Não obstante, o mesmo autor reconhece a importância da conceituação que possibilitou o início da positivação dos direitos interligados ao conceito preexistente.

Diante deste panorama “Kant foi o primeiro a reconhecer que ao homem não se pode atribuir valor (preço), devendo ser considerado como um fim em si mesmo e em função da sua autonomia enquanto ser racional” (QUEIROZ, 2005, p.1). Com efeito, fica evidente que a dignidade da pessoa humana é capaz de envolver os valores de uma sociedade, ou levar a questionamentos essenciais quando ausente.

Tudo gira, assim, em torno do homem e de sua eminente posição no mundo. Mas em que consiste afinal a dignidade humana? A resposta a essa indagação fundamental foi dada, sucessivamente, no campo da religião, da filosofia e da ciência. A justificativa religiosa da preeminência do ser humano no mundo surgiu com a afirmação da Fé monoteísta. (COMPARATO, 2015, p.13)

        Comparato (2015, p. 24) esclarece que “a ideia de que os indivíduos e grupos humanos podem ser reduzidos a um conceito ou categoria geral, que a todos engloba, é de elaboração recente na História”.  Ainda, o autor analisa que “a oposição ética entre pessoas e coisas, sustentada por Kant, alarga e aprofunda a tradicional dicotomia, herdada do direito romano, entre personae e res.” (2015, p. 34).

No entendimento de Sarlet (2007), a dignidade da pessoa humana já passou por várias fases históricas e devido a tal fato evoluiu.  Barroso (2010, p.8) reforça essa linha argumentativa ao alegar “como intuitivo, que a noção de dignidade humana varia no tempo e no espaço, sofrendo o impacto da história e da cultura de cada povo, bem como de circunstâncias políticas e ideológicas”. Boff e Bortolanza (2010, p. 257) alegam que “o conceito de dignidade da pessoa é algo ainda muito discutido na sociedade contemporânea, sendo difícil encontrar uma única definição de tal princípio em razão de sua amplitude, caracterizado por sua “ambiguidade e porosidade.”

Sarlet (2007, p. 364) reconhece, no entanto, que “não restam dúvidas de que a dignidade é algo real”. Neste sentido, de reconhecimento da dignidade, Barroso (2010, p. 4) adverte que “a despeito de sua relativa proeminência na história das ideias, foi somente no final da segunda década do século XX que a dignidade humana passou a figurar em documentos jurídicos, a começar pelas Constituições do México (1917) e da Alemanha de Weimar (1919)”. No entanto, “foi durante o período axial da História, como se acaba de assinalar, que despontou a ideia de uma igualdade essencial entre todos os homens” (COMPARATO, 2015, p.24).

No sentido de existir respeito aos Direito Humanos, Piovesan (2003, p.30) ensina ainda que:

Em face do regime de terror, no qual imperava a lógica da destruição e no qual as pessoas eram consideradas descartáveis, ou seja, em face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, emerge a necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional.

Assim, em um período histórico baseado em lutas e questionamentos, a conceituação do que vem a ser dignidade da pessoa humana ainda encontra muita divergência na doutrina. Assim surgiram justificativas religiosas e políticas, tendo alguns autores gregos desenvolvido uma justificativa que englobava função social do ser humano.  A dignidade da pessoa humana foi positivada de forma diferente em cada Constituição, levando-se em consideração o contexto histórico e os anseios da sociedade.

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A Constituição da Alemanha, ao ser promulgada, atribuiu o status de república para a Alemanha, e foi votada em um contexto de lutas e golpes políticos. Destaca-se, que, “apesar das fraquezas e ambiguidades assinaladas, e malgrado a sua breve vigência, a Constituição de Weimar exerceu decisiva influência sobre a evolução das instituições políticas em todo Ocidente” (COMPARATO, 2015, p.204-205). Diante desse quadro de formação histórica, como esclarecido por Comparato (2015, p.205), afirmou-se ao tempo que “a estrutura da Constituição de Weimar é claramente dualista”, porque, ao mesmo tempo em que continha formas organizacionais, possuía um rol de direitos e liberdades.

Nesse mesmo sentido, a Constituição do México representou a consolidação do Estado de bem-estar social no sentido de se viabilizar a vida em coletividade cedendo lugar a uma cultura mais solidária. Mesmo que reconhecida historicamente por direitos trabalhistas, a Constituição Mexicana trouxe direitos de segunda geração ou dimensão, que seriam os direitos sociais inerentes à pessoa, e, implicitamente, o início da dignidade da pessoa humana. Contudo, Comparato (2015, p.192) evidencia que “na Constituição Mexicana de 1917 não se fazem as exclusões sociais próprias do marxismo: o povo mexicano não é reduzido unicamente à classe trabalhadora”.

Pinheiro (2006) entende que a Constituição da Alemanha e a Constituição do México representam um marco na forma de pensar e exteriorizar o pensamento por meio de manifestações essenciais para história como um todo. Porém, alerta para o fato de que a importância desses diplomas está além do texto e seus efeitos.

Na seara internacional global, cabe citar ainda a Declaração Universal dos Direitos Humanos. No final de 1945, período pós guerra mundial, os líderes das nações do mundo reuniram-se em São Francisco para formar a Organização das Nações Unidas, com o escopo de se promover por meio de uma única organização um foro definitivo para tratar de assuntos referentes à paz mundial.

Aprovada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, trouxe um enfoque político aos direitos humanos e aos princípios de igualdade e não discriminação. Já em seu preâmbulo e em seu artigo 1° nota-se uma preocupação em se enfatizar a promoção do princípio da dignidade da pessoa humana, como um dever mínimo a ser garantido pelo Estado.

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla.

Por fim, no contexto brasileiro o princípio da dignidade da pessoa humana constituiu-se sob o enfoque do Estado Democrático de Direito, o qual tem como fundamentos soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como pluralismo político (BRASIL, 1988), deve comportar espaço para as diversas visões da comunidade política, bem como de dar voz e participação a todos os membros da coletividade.

A Constituição da República Federativa do Brasil adotou uma série de princípios com o intuito de se garantir os preceitos democráticos que possam assegurar a paz social e a dignidade da pessoa humana. Dentre eles, pode-se citar o princípio da igualdade, da legalidade, da vedação à tortura, da liberdade, dentre outros, em consonância, por exemplo, com os valores já estampados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A compreensão das normas que efetivamente positivaram o princípio da dignidade da pessoa humana, tanto na esfera internacional quanto no Brasil, faz-se relevante para se compreender o quão recente este assunto é tratado em âmbito acadêmico, e que o significado de dignidade pode variar conforme o contexto e de jurisdição para jurisdição. Contudo, a palavra dignidade nos fornece uma linguagem adequada para adotarmos interpretações de garantias de direitos humanos fundamentais que podem, inclusive, manipular processos para luta por reconhecimento de um mínimo de dignidade.

Sob esse aspecto, faz-se possível uma análise da dignidade da pessoa humana sob a óptica da literatura, tendo com vertente as obras de Herta Müller (2011) e Primo Levi (1988), no intuito de se verificar como que a dignidade pode contribuir para interpretação e julgamento dos direitos humanos, cumprindo com seu papel fundamental positivado no ordenamento jurídico, o que será desenvolvido a seguir.

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Sobre as autoras
Carolline Leal Ribas

Instagram: @carollinelr

Karine Fernanda Martins

Pos graduanda em Direito Administrativo pela UNIFEMM

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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