3. FICÇÃO E REALIDADE: a busca pelo ideal mínimo digno humano
Entendendo ser possível estudar o Direito sobre os pilares da literatura, os autores, Thomé; Araújo, (2005 p.104) entendem que a literatura é a concretização do exercício da comunicação.
Se a literatura de uma nação entra em declínio a nação se atrofia e decai. O legislador não pode legislar para o bem público, o comandante não pode comandar o povo (se se tratar de um país democrático) não pode instruir os seus representantes a não ser através da linguagem.
Ao Direito é permitido fazer comparações através de obras literárias ou relatos, porque somente “a literatura possibilita a análise de temas ou assuntos por meio de trama que engendra. Ela, por meio da sensibilidade e argúcia do escritor, nos permite perscrutar os interstícios de uma gama indefinida de situações” (THOMÉ; ARAÚJO, 2005 p.104)
Pretende-se, portanto, fazer uma análise da obra É isto o homem? do renomado autor Levi (1988), e da obra Tudo o que tenho levo comigo de Muller (2011), voltadas para a ótica jurídica com contornos no tema da dignidade da pessoa humana, porque somente a junção de direito e literatura é que
permite-nos imiscuirmos nos labirintos mentais de uma personagem, insondáveis no plano exterior de sua existência, até colocar- nos em face de dramas sociais, políticos e religiosos, que são bem parecidos e ‘vivenciados’ ,quando nos são revelados pelas lentes da Literatura (THOMÉ; ARAÚJO, 2005 p.104)
Conceição (2013, p. 31) tece algumas considerações sobre a importância da obra de Levi (1988) e afirma que “oscila a lacuna entre a necessidade premente de narrar o que se viveu e a busca pouco frutífera de termos de uma língua capazes de descrever os fatos, reforçando o limite entre ficção e realidade”.
é um livro de relatos que buscaria, em um primeiro momento, sua pessoal libertação interior, sendo o texto audacioso na transmissão de uma mensagem quanto à liberdade de expressão das lembranças que descrevem o terror dos cativos de Auschwitz, uma busca que percorreria dois caminhos: o alívio da carga traumática da memória da testemunha e a memória no sentido de armazenamento de dados. (CONCEIÇÃO, 2013, p. 32).
Igualmente ocorre com a obra de Müller (2011), Tudo o que tenho levo comigo.
Nascida em 1953, numa região de minoria alemã na Romênia, Müller cresceu sentindo o peso do silêncio dos que, por cinco anos, existiram em tais campos. A mãe fora uma dessas pessoas. Em casa, não se falava sobre os acontecimentos nesses tempos sombrios, senão de forma velada, em conversas furtivas com outras pessoas deportadas. A autora não entendia o conteúdo delas, mas percebi o medo. (LOPES, 2012, p.156)
Na obra É isto um homem? do renomado autor italiano Primo Levi (1988), encontra-se o relato considerado mais vívido de toda a história da humanidade que reflete sobre a dignidade, um grito por reconhecimentos. O relato demonstra como é sobreviver sem ser considerado um ser humano. Tal fato é visualizado em vários trechos de sua obra, tal como aquele em que relata: “sofríamos com a sede e o frio; a cada parada, gritávamos pedindo água, ou ao menos um punhado de neve, mas raramente fomos ouvidos; os soldados da escolta afastavam quem tentasse aproximar se do comboio” (LEVI, 1988, p.19).
A luta por sobrevivência se torna uma busca por igualdade. Sobreviver apenas por possuir energias suficientes para seguir e executar ordens não basta. Sobrevive-se para não perder a essência de ser humano. A luta interior é exteriorizada, a força é demonstrada, clama-se por promover a dignidade em seus aspectos materiais, para que aqueles que a ignoram percebam que apenas a formalidade não basta.
O campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais não devemos nos transformar em animais; até num lugar como este, pode- se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento; e, para viver, é essencial esforçar-nos por salvar ao menos a estrutura, a forma da civilização. Sim, somos escravos, despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a todo custo, justamente porque é a última: a opção de recusar nosso consentimento. (LEVI, 1988, p. 55).
A sociedade ainda desrespeita as minorias. Muitos não possuem voz, muitos são considerados objetos e por mais que a dignidade da pessoa humana esteja positivada em diplomas legais, ainda somos uma sociedade que em muitos aspectos se aproxima do campo de concentração, e na organização dessa sociedade nos tornamos novamente escravos. Saber por quanto tempo ainda seremos uma sociedade representada por uma engrenagem é um ponto importante, mas se há uma resposta, não há como saber. Levi (1988) fez esse questionamento por várias vezes enquanto estava em um campo de concentração. Surpreendentemente, as pessoas a quem ele fazia essa pergunta, na ausência de respostas ou por temerem demais, riam. Ainda hoje quando se pergunta quanto tempo uma situação perdurará é muito provável escutarem-se os mesmos risos.
[...] Até quando? Os velhos habitantes do campo riem desta pergunta: uma pergunta pela qual se conhecem os recém-chegados. Riem, e não respondem: para eles, desde meses e anos o problema longínquo foi se apagando, perdeu toda a intensidade, perante os problemas do futuro imediato. (LEVI, 1988, p.47)
Diante da visão de Levi (1988), somos apresentados a um contexto rico de detalhes, e acompanhamos a passagem de tempo em dias, meses ou anos. Não importa o que acontecia, o autor não se permitia esquecer que ele é um ser humano e mesmo diante da incerteza do medo, e da forma de tratamento destinado, ele era possuidor de direitos e lutava para não se esquecer disso.
Diante do momento vivido e do grito interno, “a obra de Levi é forte o bastante para mostrar toda redução daquela matéria incorpórea e abstrata que faz do homem humano” (VOLTARELLI, 2010). A retirada dos direitos de personalidade, o tratamento que menospreza o ser humano, a supressão dos sonhos e a imposição do silêncio demonstra bem o relato do autor, ao registrar que “somos apenas uns animais cansados” (LEVI, 1988, p.60).
“Procurem não aceitar em seus lares o que aqui nos é imposto” (LEVI, 1988, p.60). Essa frase demonstra que o pensamento, bem como a transformação cultural e social iniciam-se nos lares. Quando se aceita o silêncio mata-se uma parte da humanidade. A fragilidade dos laços humanos gera a dificuldade de reconhecimento, o medo traz a desconsideração da pessoa, o silêncio relativiza práticas que em determinado momento eram consideradas kafkianas. Não mata imediatamente, mas como demonstra o autor, “talvez sobrevivamos às doenças e escapemos às seleções, talvez aguentemos o trabalho e a fome que nos consomem, mas, e depois?” (LEVI, 1988, p.77)
Fato é que desrespeitos, desigualdades, discriminações são inerentes à sociedade humana. Mas a dignidade também precisa ser vista como um aspecto inerente da vida de todos os seres, independente das mudanças sócias, dos contextos históricos e das peculiaridades locais. Permitir que uma pessoa seja objeto é imperdoável, porque “o caráter único e insubstituível de cada ser humano, portador de um valor próprio, veio demonstrar que a dignidade da pessoa existe singularmente em todo indivíduo. (...)” (COMPARATO, 2015, p. 43).
Quando se vive em sociedade, constroem-se barreiras mesmo que de forma defensiva, seja por imposição, seja por medo, deixamos de possuir algo denominado autonomia. Diante dessa construção, Barroso (2014, p.81) sustenta que a autonomia é o elemento que permite a criação da concepção de vida boa, ou boa vida, e ao oferecer meios de se buscar essa concepção de vida a autonomia seria o elemento ético da dignidade humana. É o fundamento do livre arbítrio dos indivíduos, que lhes permite buscar, de sua própria maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. A noção central aqui é a autodeterminação: uma pessoa autônoma define as regras que vão reger a sua vida.
Os próprios prisioneiros do campo que exigiam ser tratados não como propriedade começam a perder a razão, e os próprios prisioneiros iniciam um processo de hierarquização. Dentro desse universo construído, em que é possível restringir direitos, e se justifica a ausência de dignidade, “sucumbir é mais fácil: basta executar cada ordem recebida (...)” (LEVI, 1988, p.131). Destruir um comando não é mais a opção de muitos que ali habitam como prisioneiros. Esses internos, que foram tantas vezes humilhados e desrespeitados, montam de forma consciente ou não sua própria cadeia de hierarquização.
Em virtude do relato de Levi (1988), somos levados a acreditar nas questões sociais que perduram na história. Ainda há a dispensa de tratamentos diferenciados às pessoas, permitindo que muitos indivíduos sejam tratados como coisa ou propriedade. Tal fato é perceptível de diferentes formas, por exemplo, pela ausência da dignidade no trabalho, haja vista a impossibilidade de se identificar um ser humano, afinal “o trabalho liberta” (LEVI, 1988, p.25).
Classifica-se tendo por base o valor econômico das pessoas, inexistindo, portanto, o valor comunitário da dignidade. Nessa toada cria-se um discurso de justificação.
Das lições de Levi (1988), percebe-se que para existir a dignidade no plano material, ela deve ser tida como um norte e nunca como supressão da coexistência. Assim, pensar no outro é impossível sem o outro. A configuração dessa relação só se verifica após uma construção social, a vida em alteridade. Dessa forma, o autor em comento apresenta o valor comunitário, como última característica da dignidade.
Herta Müller é uma escritora renomada. Suas obras transcendem as gerações. Müller relata a vida de um ângulo capaz de demonstrar a construção social e individual das pessoas, as mudanças de pensamento, o medo por ser diferente, as perseguições. Na obra “Tudo que tenho levo comigo” (2011), uma ficção inspirada em um relato, é possível encontrar pontos similares com a modernidade.
A obra relata aproximadamente o ano de 1944, quando a Romênia, desiste de lutar contra a Alemanha de Hitler, dentro desse contexto, de necessidade de dominação, imposição, a autora demonstra como é ser Leopold Auberg, homossexual, possuidor de ideias contrárias as que lhe eram impostas, alguém que desejava a liberdade a todo preço. Faz-se necessário citar Sarlet (2007) para quem “é justamente neste sentido que assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um (...)” (SARLET, 2007, p. 378). Em contrapartida ao descrito por Sarlet (2007), Müller (2011, p. 9) confronta essa ideia ao demonstrar em sua obra que quando o Estado rompe com seus limites resta aos cidadãos apenas pensar “que o Estado me encarcerasse como um criminoso e que a família me repudiasse como uma desonra”.
No decorrer da obra percebe-se que o personagem principal, perdido dentro de si mesmo, sente medo não de ir para o campo de concentração trabalhar. De imediato ele deseja a viagem, a fuga, a falsa liberdade, pois dentro da própria família não lhe tratavam como ser humano, mas como um fantoche, e justamente por tal fato e tratamento recebido, em sua mala não havia apenas objetos materiais, existia a esperança de que alguém em algum lugar o visse como ser humano indiferente de suas escolhas ou ações incompatíveis com a época (MÜLLER, 2011). “Eu queria ir para longe da família, mesmo que fosse para o campo de trabalho” (MÜLLER, 2011, p.9).
Contudo, dentro do campo de concentração, Leopold Auberg, descobre que a liberdade buscada e esperada, na realidade o aprisionou em um ambiente onde não existem pessoas. Ali os prisioneiros são tratados como animais, marcados para o trabalho, escravos de alguns, a realidade do campo se resume a conseguir sobreviver (MÜLLER, 2011). “O fato de não se reconhecer humano, embora humano, gera uma experiência de dor, de fragmentação, de anulação de um sujeito que se encontra à mercê do poder e do controle do outro” (LOPES, 2012, p.157).
Na obra, somente os submissos conseguem sobreviver. Na passagem do tempo é necessário esquecer que a liberdade existe. Não se pensa o poder, a hierarquia, a organização do campo, os privilégios de alguns, como é demonstrado no trecho que segue. Tal cenário não é diferente do presenciado nos tempos hodiernos.
TurPrikulitsch nunca trabalha, em nenhum batalhão, em nenhuma brigada, em nenhum turno. Ele manda, nisso é ágil e depreciador. Quando sorri, trata-se de uma cilada. Se sorrirmos de volta, o que somos obrigados a fazer caímos no ridículo. Ele sorri porque anotou algo novo ao lado do nome na rubrica, algo pior. Entre os alojamentos na rua principal do campo de trabalho, eu me desvio dele, prefiro preservar uma distância que permita manter-me em silêncio. (...) Na barbearia, TurPrikulitsch é superior a mim. Ele diz o que tem vontade, nada é arriscado. Aliás, é até melhor quando nos ofende. Ele sabe que deve manter-nos submissos para que as coisas continuem como estão (MÜLLER, 2001, p. 21).
Dignidade existia apenas em um contexto formal, pois para sua existência no plano fático seria necessário enxergar o outro, as minorias, as maiorias, os seres independentemente de seus ideais, ou de suas escolhas, posto que todos são possuidores da essência humana. O discurso de justificação de sua ausência não pode ser aceito em nenhum contexto, devido ao fato de a dignidade não poder, em nenhum momento, ser confundida com submissão nem tampouco como posse. (SARLET, 2007). Diante das adversidades, das imposições, do absurdo, Leo, repetia em seu interior na tentativa de entender o porquê “nenhum de nós estivera na guerra; mas, para os russos, todos os alemães eram culpados dos crimes de Hitler” (MÜLLER, 2011, p.31)
A sociedade ainda reside na exclusão, como verificado pelo discurso de que a dignidade não é capaz de se materializar. A dignidade necessita do mínimo existencial para ser capaz de atingir o plano fático. Tal ato somente é possível se a interpretação for capaz de incluir e nunca excluir. As minorias se calam quando a dignidade não é materializada, quando os humanos não a querem compreender, gerando, por conseguinte, a falta de dignidade no trabalho, na família, ou em qualquer lugar (BARROSO, 2014).
Nesse cenário, o personagem principal começa a narrar uma espécie de tribunal de exceção. Não existem leis, não existe nada, a razão fica cega, o contexto se reverte, os mais fortes dominam aqueles que não eram vistos como seres humanos.
Ela existe porque o Anjo da Fome também é um ladrão, um ladrão que nos rouba o cérebro. O tribunal do pão não conhece preâmbulos ou perorações: vive apenas o momento presente. Totalmente transparente ou totalmente misterioso. De qualquer forma, a violência do tribunal do pão é diferente da violência sem fome. Não é possível apresentar-se diante dele com a moralidade de todos os dias (MÜLLER, 2011, p.76).
Müller (2011) demonstra que diante dos desafios, da ausência de materialização das leis, do mínimo existencial, o personagem sobrevive. Sua luta interna sobrepõe-se às adversidades, e quando os tratamentos não dignos são transformados em normal, a única coisa a fazer é tentar voltar. Para o personagem desse romance a vida não foi fácil, o trabalho forçado, a humilhação, o reflexo que o aproximava do ser que ele temia e sua transformação. Essa obra demonstra a importância de promover a dignidade em todas as áreas. Porque quando os interpretes não analisam as leis de forma a abarcar as diversas situações as próprias leis podem promover uma espécie de exclusão.
Quanto aos documentos internacionais a dignidade da pessoa pode possuir maior ou menor abrangência jurídica, ou até mesmo não existir de forma positivada. Para Wallestein (2007) a maioria dos países segue uma tendência determinada pela Europa, que pode gerar consequências capazes de afetar a economia, a cultura, os direitos, política e demais interações sociais, o autor reconhece a existência dos países que não seguem tal tendência, como ocorre com os países do oriente, ressalto que o próprio Wallestein (2007) critica o universalismo. Alguns doutrinadores defendem que a dignidade da pessoa humana “tornou-se uma ideia onipresente também no Direito Internacional” (BARROSO, 2014, p.29), e destacam que a dignidade é mencionada em vários tratados como, por exemplo, a “Carta da ONU (1945), a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965)” (BARROSO, 2012, p. 29), cada documento abrangendo e ressaltando a dignidade dentro de suas próprias peculiaridades, fato que gera dentro desse quadro, a existência de “uma discussão complexa sobre a dignidade se deu no caso Ômega, no qual a Corte decidiu que a dignidade humana pode ter diferentes significados e alcances dentro das jurisdições domésticas da União Européia” (BARROSO, 2012, p.12).