O casamento fadado ao fracasso: reforma penal e democracia pluralista
Façamos uma breve revisão dos principais pontos abordados. Como vimos, a condição de aprovabilidade de uma lei, no seio da democracia pluralista, está ligada diretamente à capacidade desta lei de atender aos interesses dos parlamentares e dos grupos de pressão. Vimos que a lei penal se caracteriza pela precisão e pela objetividade, e que a história de sua feitura é marcada por momentos de ruptura político-institucional. Ademais, em nenhum dos contextos históricos em que foram feitos os códigos penais brasileiros houve um meio fundamentalmente democrático e pluralista de participação.
A globalização é um processo dinâmico que se caracteriza pela progressiva aproximação de laços econômicos, culturais e políticos entre os Estados-Nação. Em tempos de outrora, a soberania dos países se traduzia na capacidade de impor sua vontade em um determinado território através de sua normatividade. Esta teoria, inaugurada por Jean Bodin, trazia o corolário de que não era necessário que os Estados conjugassem suas ordenações com os padrões advindos de esferas internacionais.
Com a globalização, principalmente a partir da década de 90, notamos que os países têm de se adequar a esta nova realidade, pois a tríade Território-Lei-Estado encontra-se relativizada. Tal realidade é marcada pela intensa interação de bens, serviços, costumes e culturas, de modo que um país não pode mais deixar fechado seu ordenamento jurídico. A participação na esfera internacional passa, necessariamente, pela reestruturação nacional.
Surge, assim, a necessidade de realização de reformas. Estas reformas têm o escopo de adequar os padrões jurídicos, de modo a conjugar as esferas nacional e internacional. Traduz-se, portanto, em um verdadeiro movimento de adequação, reordenação e harmonização destas esferas. Nos debates congressistas, já está em voga a possibilidade de realização de uma reforma penal. Vejamos, pois, se esta reforma é possível, ceteris paribus, sob uma perspectiva estruturalista.
Ao retomarmos as características estruturais de precisão e concisão do tipo penal, podemos perceber uma incongruência marcante, que impossibilita a sua realização. A teoria da formulação explicitada nos mostra que as leis só são aprovadas, ou seja, elas só têm condição de aprovabilidade, se atenderem a diversos interesses, adquirindo um caráter abrangente e impreciso.
Ora, a reforma penal não poderia ser realizada de maneira concreta e eficaz em um contexto em que a lei penal seria desfigurada em nome da abrangência e da imprecisão. Em outras palavras, seria inviável formular um tipo penal num contexto cujo imperativo é oposto a este tipo: a abrangência.
Analisando a problemática estruturalmente, notamos que uma reforma penal nos moldes pluralistas seria um verdadeiro processo de abertura a interpretações e a lacunas na lei penal, e esta lei, como vimos, têm de atender aos critérios de objetividade e de clareza para garantir a segurança jurídica. As bases do princípio da legalidade estariam abaladas.
Não obstante, segundo Zaffaroni et al., "não é de estranhar que [...] leis penais inexplicáveis sejam criadas, motivadas em meio a todos esses impulsos, os quais, por serem contraditórios, tornam-se irredutíveis a qualquer racionalidade, inclusive a meramente funcional".
Estas são as razões pelas quais o casamento entre a reforma do código penal e a democracia pluralista é fadado ao fracasso.
Conclusões
Chegamos, assim, a três conclusões: primeiramente, constatamos um freio ao processo de globalização; em segundo lugar, constatamos a impossibilidade histórica da produção de uma lei penal estruturalmente perfeita; e, por último, observamos o surgimento do poder judiciário como um poder legislativo supletivo, caso seja realizada a reforma.
A globalização, muito embora seja um processo imperativo de mudanças e de reformas no intuito de adequar os padrões sociais a uma nova realidade, tem um freio. Ou seja, diante da impossibilidade constatada da reformulação das leis penais no seio de uma democracia pluralista, o processo de reformas na globalização não é aleatório, inconseqüente ou arbitrário. Para ser mais claro, os países democráticos são os que mais recebem influência deste processo, mas também são os mais impossibilitados, estruturalmente, de realizar uma reforma penal com base no critério da objetividade.
Não obstante, a história dos códigos penais no Brasil já nos indica que, em um contexto socialmente estável, não se realizou qualquer reforma deste tipo. Foram em momentos de ruptura político-institucional que estas reformas ocorreram, o que não existe atualmente. Vivemos em uma democracia consolidada há mais de 15 anos, sem qualquer ameaça de mudança radical, impossibilitando qualquer atitude desta grandeza.
Por fim, a partir do momento em que se realiza uma reforma penal nos moldes da democracia pluralista, a lei penal adquire uma abrangência que a descaracteriza com relação aos seus objetivos precisos. Deste modo, nas palavras do Ministro Nelson Jobim, o poder judiciário, ao aplicar esta lei abrangente no caso concreto, torna-se um verdadeiro "poder legislativo supletivo". Ou seja, diante da abrangência da lei e da necessidade de dotá-la de objetividade, o judiciário a aplica de maneira casuística, já que ela é passível de diversas interpretações, propiciando a insegurança jurídica.
Cresce, portanto, a prática do controle de constitucionalidade difuso com uma margem de insegurança jurídica. O Princípio nullum crimen nulla poena sine legem certa encontrar-se-á prejudicado, na medida em que, no mesmo caso, um juiz poderia condenar ao passo que o outro não. A condenação passará pelo crivo da casualidade, e esta não cabe ao direito.
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ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003
Notas
01
No livro Sociologia Geral02
No livro Identidade Cultural na Pós-Modernidade03
No artigo A Global Society?04
No artigo Globalization, Sovereignty, and the Rule of Law: From Political to Economic Constitucionalism?,05
"soberania complexa"06
No livro Economia e Sociedade07
"globalização muda a arquitetura interna do Estado"08
"enquanto no mesmo momento quebra as fronteiras entre a política e o direito doméstico e internacional"09
"não é possível colocar o gênio da soberania de volta na garrafa convencional do Estado"10
No livro Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil11
No livro Democracia liberal: origens e evolução12
No livro Dicionário de Política13
Constituição da República Federativa do Brasil14
No artigo A Constituição Brasileira de 1988: subsídios para comparatistas15
No artigo René Capitant y Carl Schmitt frente al parlamentarismo: de Weimar a la Quinta República16
No livro Parlamentarisme e démocratie17
"o essencial do parlamento é o intercambio público de argumentos e contra-argumentos, os debates públicos e a discussão pública"18
"o parlamento abdica aí de sua base intelectual e todo sistema perde sua razão"19
"o que se trata, segundo Schmitt, é de criar, no seio do Parlamento, uma pluralidade que permita instalar, mediante o referido sistema de mediação, um equilíbrio"20
No livro O Risco do Político: crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl Schmitt21
No livro Théorie de la Constitution22
"o compromisso consiste com efeito aqui em encontrar uma fórmula que satisfaça todas as exigências contraditórias e deixa irresolvidos os verdadeiros pontos de obstáculo graças a uma expressão ambígua"23
"O compromisso não traz portanto consigo uma resolução do fundo de um problema graças às concessões mutuas, o acordo consiste (...) em uma fórmula dilatada que satisfaz as reivindicações"24
No livro Democracia e os Três poderes no Brasil25
No livro Princípios básicos de Direito Penal,26
No Livro Manual de Direito Penal27
No livro Direito Penal Brasileiro - I