Posse e detenção

24/10/2018 às 16:50
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Pretende ver a posse e a detenção sob nova percepção.

 

 

Distinção

 

O fenômeno da posse, à evidência, antecede o da propriedade. Antropólogos e arqueólogos ensinam que a propriedade privada somente surgiu nas sociedades agrícolas, que começaram a emergir por volta de 12 mil anos atrás. Antes, nas sociedades de bandos de caçadores-coletores desconhecia-se a propriedade, e até a posse tinha uma dimensão comunal.

            Embora estudada desde a Antiguidade (sobretudo em Roma), a posse somente no século 19, com Savigny e Ihering, mereceu teorizações que sistematizaram seus aspectos relevantes.

            De modo sucinto, essas percepções podem ser vistas assim: para Savigny, a posse resulta da cominação de dois elementos: “corpus” (o apoderamento da coisa) e “animus” (apoderar-se físico com intenção dono); para Ihering, a posse era mero exercício dos poderes da propriedade em relação a uma coisa.

            Não é descabido afirmar que a divergência entre duas percepções é mais aparente do que real. A rigor, ambos os doutrinadores disseram a mesma coisa: a intenção de ter como sua a coisa apoderada não ser buscada no interior do detentor; o “animus” se exterioroza pela conduta de quem se apoderou da coisa (portando, na exteriorização por atos), manifestada pelo exercício dos atos que são próprios de um dono (revelando, assim, ter a coisa como sua).

            De certo, fazendo vista grossa do que a posse efetivamente é, a doutrina tem envolvido a noção numa nebulosidade intensa que, em vez facilitar, dificulta grandemente seu entendimento. Veja-se, por todos e, por exemplo, considerações como estas:

            A natureza da posse é tema dos mais controvertidos, e isso por estímulo do modo tradicional de visualização da matéria:

Qualquer direito subjetivo tem origem em um fato jurídico. Todavia, a polêmica despertada pela natureza da posse – fato ou direito – é intensificada pela inexistência de uma terminologia capaz de distinguir o fato jurídico que lhe dá origem do direito subjetivo que o secunda. Exemplificando: a morte (fato jurídico stricto sensu) provoca o direito subjetivo de suceder; o contrato (negócio jurídico) desencadeia o direito subjetivo ao credito. Nada obstante, na matéria em relevo, o fato jurídico posse desencadeia o direito de possuir, independentemente de qualquer cogitação sobre a propriedade. (Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosevald. Direitos reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ed. 2, p. 34-35)

            Mas se encontra sobre o tema opinião sincera como esta:

A expressão posse é ambígua e designa tanto o fato jurídico que, na norma, é descrito como antecedente do direito aos interditos ou à aquisição por usucapião como a faculdade de agir em defesa de seus interesses, quando ameaçados ou lesionados.

[...]

E nesse sentido da faculdade de agir também se emprega a expressão “propriedade”. A qual desses significados corresponderia a essência do conceito é questão metafísica, sem qualquer relevância tecnológica. (Fábio Ulhoa Coelho. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 16/17)

            A realidade é que a compreensão do que seja posse não requer mais do que se emprega para se entender qualquer outro direito: poder (ou poderes) de agir nascido de um fato que, por força de uma norma jurídica, o constitui. Sem dúvida, a posse é um direito como qualquer outro, e o que tem empanado essa percepção é a teimosa resistência à aceitação disto: a posse é um direito; um não-direito não tem disciplina jurídica. Pontue-se que algo que é exercitável e defensável por força da lei é rigorosamente um direito, como qualquer outro.

            A aceitação disso facilita a apreensão do real significado da posse, abrindo  caminho ao rigoroso tratamento terminológico do tema e, na mesma trilha, permitindo o abandono de classificações descabidas, ou mesmo metafísicas e, por isso, estéreis. (A ciência jurídica, para adquirir foros de cientificidade, peculiar a todo saber moderno, precisa despir-se do bizantinismo pré-moderno, afastando-se das discussões metafísicas.)

            Sem exagero, pode-se dizer que a compreensão do núcleo relevante da noção de posse não exige mais do que isto:

            a) apoderamento e detenção: quem detém uma coisa em razão de um direito pessoal ou real (algum direito real limitado ou algum direito pessoal que confira ao detentor poder de usar a coisa e dela gozar), não a possui, apenas titulariza a detenção dela (a situação jurídica que autoriza a detenção da coisa exclui qualquer pretensão do detentor de tê-la como sua); também está com a coisa em cumprimento de ordens ou em razão de simples tolerância de outrem (a situação jurídica de dependência do detentor da coisa em relação a outrem, que se conduz como dono, implica exclusão de pretensão de dono, da parte do detentor);

            b) uso do termo “posse indireta”: o uso da expressão “posse indireta”, além de desnecessário, embaralha a apreensão da noção de posse; de fato, se possuir é apoderar-se da coisa como sua, quem a detém por força de um negócio jurídico (locação, alienação fiduciária etc.) não é tecnicamente possuidor, mas, sim, apenas detentor. Daí porque nem o locador de uma coisa nem o credor fiduciário da coisa alienada em garantia é possuidor indireto; é, sim, dono da coisa e, como tal e porque assim a lei estabelece, tem direito de reavê-la, findo o direito limitativo de sua propriedade resolúvel;

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            c) exata compreensão de posse justa e posse injusta: não existem essas figuras – a posse é simplesmente apoderamento da coisa como se fosse sua; a injustiça no apoderamento impede a formação da posse; não pode ostentar a condição de possuidor quem está com a coisa de modo clandestino (que nada exterioriza quanto a ter a coisa como sua) ou violento (conduta socialmente reprovável, que deve cessar para que se inicie a posse) (CC, arts. 1.200 e 1.203).

Aplicações

Aplicando essas noções basilares, tem-se, mais a mais, que o adquirente de uma coisa móvel, não tem sua posse antes de se dar a tradição dela (a transmissão física da coisa); mas, como o vendedor se obriga a transferir a coisa contra o pagamento do preço, o adquirente pode mover-lhe ação para ter a coisa consigo – que não é possessória, e nela não discute posse, mas o direito de ter a coisa consigo em decorrência da obrigação assumida, pelo vendedor, de transferir o domínio. Se condenado a tal, o vendedor não satisfaz voluntariamente a obrigação, será o caso de executá-lo no mesmo processo (sincrético). A mesma coisa se dá em relação ao adquirente de coisa imóvel: efetivado o registro imobiliário do instrumento de aquisição, tem-se (por ficção legal) por operada a transmissão do domínio. Se houver recusa na entrega do imóvel, o comprador, já titular do domínio, poderá reivindicá-lo. O credor fiduciário, se houver atraso no pagamento das prestações da quantia emprestada para aquisição da coisa, pode requerer, porque proprietário dela, a devolução do bem, após desconstituída a relação contratual em razão da qual o devedor se investiu na detenção dela (a lei fala em busca e apreensão para favorecer as instituições financeiras que adoram ganhar muito e fácil).

            Assim, sem a costumeira repetição do “quem disse o quê”, numa postura escolástica de absoluto acatamento de opiniões antigas porque emanadas de autoridades do passado, apreendem-se os aspectos relevantes do fenômeno jurídico posse e, com o instrumental próprio da ciência do direito, pode-se formular a terminologia precisa ao seu trato. E, com destemor, chega-se ao que realmente interessa: o desnudamento de um autêntico direito real – isso mesmo, um poder jurídico sobre coisa física instituído por lei –, nascido do ato de apoderamento dela, tendo-a como sua, em situação socialmente aceitável e, por isso, juridicamente admissível.

            Em conclusão, acresça-se que, na disciplina do tema posse, o Código Civil (CC), tanto o atual quanto o anterior, carrega muito dos defeitos de percepção da doutrina. Mostrando isso seguem considerações em torno do normativo contido nos seguintes artigos de lei do atual CC, centrais ao tema:

Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.

Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto.

            Dizer que é possuidor todo aquele que tem de fato o exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade é claramente insuficiente à conceituação de posse. Como enquadrar um detentor (o locatário ou o devedor fiduciante), que exerce de fato poderes inerentes ao domínio, mas, a toda evidência, não é possuidor (não tem a coisa consigo como sua)? É incontornável, assim, que o conceito de posse não pode afastar de seu cerne o “animus”: o possuidor, além de exercer poderes inerentes ao domínio, deve ter o ânimo de ter a coisa como sua; à manifesta falta do ânimo de dono, não é possuidor quem detém a coisa em razão de cumprimento de ordens ou instruções de outrem. Por tudo isso, os dois artigos de lei que encimam este comentário ostentam insuficiências gritantes em suas conceituações de possuidor e detentor. Veja-se que o conceito de detentor do art. 1.198 é muito curto; não cobre aquele que detém a coisa em razão de algum direito pessoal ou real.

            Resta ver que a disposição do artigo 1.197, embora querendo trabalhar o conceito de posse, embute germe de sua destruição: o dito possuidor indireto não é – nem pode ser – possuidor, pois lhe falta o ânimo de dono – não tem, nem pode ter, esse ânimo, posto que detém a coisa em virtude de um direito pessoal ou real. Em suma, não existe posse indireta; há, sim, detenção, conferida por lei.

            As ações possessórias podem ser conferidas ao detentor sem ter de dizer que ele seja – como de fato não é – um possuidor indireto. A expressão “posse indireta” distorce o conceito de posse (com clara perda da precisão terminológica – sem a qual não se pode saber o quê se refere a quê).

            Por fim, enfatize-se que o usucapião não ampara quem não seja um estrito possuidor. A ele não podem recorrer, por óbvio, todos os que tenham mera detenção da coisa.

 

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Sobre o autor
Erivaldo Santana

Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade do Ceará. Ex-Promotor de Justiça do MP do Ceará. Juiz inativo do Trabalho do TRT7. Integrante do escritório de advocacia Santana e Basílio, em Brejo Santo/CE. E-mail: [email protected]

Informações sobre o texto

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