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O sigilo bancário como corolário do direito à intimidade

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5 – SIGILO BANCÁRIO NO DIREITO COMUNITÁRIO

O advogado paraense Zenóbio Simões de Melo [40] nos chama a atenção para a política pensada pela União Européia para uniformizar, nos próximos anos, os modelos estudados, pelo menos no que se refere aos países que a integram.

Tais assertivas encontram fundamento no que foi decidido durante o conselho europeu de junho de 2000, em Santa Maria da Feira. Na ocasião, o jornal "O Estado de São Paulo" [41] assim noticiou o fato:

"Numa das mais importantes decisões adotadas durante o Conselho Europeu que marca o fim da presidência portuguesa da União Européia (EU), seus quinze países aprovaram um projeto de harmonização fiscal. No ponto mais polêmico, o pacote deverá acabar com o sigilo bancário até 2010. ... foi uma negociação. ... Áustria e Luxemburgo não aceitavam a princípio acabar com o sigilo bancário. A justificativa austríaca é que este é um princípio que faz parte da constituição do país há 200 anos. Para aceitar o acordo, o país exigiu a manutenção do sigilo nos bancos austríacos para quem resida no país".

Percebe-se, com base nesses dados, que, nos próximos dez anos, estaremos diante de uma grande quebra de paradigma no que se refere ao sigilo bancário, uma vez que a decisão implementada pela União Européia fatalmente refletirá no restante do mundo.


6- NATUREZA JURÍDICA

Por absurdo que possa parecer, ainda há, na doutrina, discussões no que diz respeito à natureza do dever de sigilo dos banqueiros, se ele é jurídica ou não. Para Rafael Jimenez de Parga Cabreira [42] a principal natureza do sigilo é moral, em razão de o banco possuir o dever moral de não revelar os segredos de seus clientes, não apenas para defender os interesses destes, como também para salvar a sua própria reputação.

No entanto, essa argumentação não merece acolhida ante ao simples fato de que o sigilo bancário encontra-se, hoje, reconhecidamente presente em todos os ordenamentos jurídicos do mundo. Naqueles em que não está positivado, ainda assim integra o direito, em razão do reconhecimento dos tribunais, como é o caso da Alemanha.

Ademais, o fato de o segredo constituir um dever moral do banco não descaracteriza o seu caráter jurídico, uma vez que o direito não contrasta com a moral. Ao contrário, a integra.

Aceitas essas considerações, passemos a discutir as teorias que buscam explicar a natureza jurídica do sigilo:

6.1 - Teoria contratualista

Bastante aceita em países que não têm regra expressa, como Inglaterra e Itália, a teoria contratualista defende que o sigilo bancário decorre da relação contratual formada voluntariamente ente o banco e o cliente, através da qual a instituição financeira se compromete a guardar segredo das operações que realizar, ainda que não haja cláusula nesse sentido. Seus defensores atestam que ela se inspira nos usos, nos costumes e na boa-fé, aplicáveis na interpretação dos contratos comerciais.

Questiona-se muito qual seria a espécie de tal contrato. Na Itália, prevalece a idéia de que se trata de um contrato de mandato em decorrência de o artigo 1.856 do Còdice Civile estatuir que o banco responde, segundo a regra do mandato, pela execução dos encargos recebidos do correntista de outro cliente.

Na França, por outro lado, prevalece a associação do sigilo bancário à figura do depósito, por entender-se que o banco, além de ser depositário dos bens dos clientes, é, também, depositário de seus segredos.

Sérgio Carlos Covello [43] observa, no entanto, que nenhuma das duas idéias satisfaz completamente a questão. Quanto à primeira, porque nem toda relação cliente-banco configura um mandato. Se por um lado pode-se interpretar as figuras da conta-corrente e da cobrança de título de depósito de administração como contratos de depósito, o mesmo não pode ser dito em relação aos empréstimos. No que se refere à segunda, o erro consistiria no fato de os contratos de custódia terem natureza real e só se aperfeiçoarem com a entrega de alguma coisa material, o que afasta a figura do segredo, que possui natureza imaterial.

Há ainda quem prefira qualificar o segredo como um contrato inominado ou sui generis, o que nos parece uma tentativa forçada de estabelecer essa regra a qualquer preço.

De uma maneira geral, as principais críticas a essa doutrina residem no fato de os bancos raramente assumirem, de maneira clara, a obrigação de segredo. Mesmo a tese da cláusula implícita vem sendo atacada por não explicar nem o sigilo que o banco deve manter, mesmo que o contrato não chegue a consumar-se, nem o sigilo que deve ser mantido para com terceiros estranhos à relação jurídica das partes.

6.2 – Teoria consuetudinária

Busca o fundamento do sigilo bancário no uso tradicional e universalmente observado pelos bancos ao longo da história. No Brasil, o grande defensor dessa idéia foi Lauro Muniz Barreto [44], que defendia que, por serem os contratos bancários atos de comércio, devem ser interpretados em conformidade com os usos e costumes da prática comercial, nos termos do artigo 131 do Código Comercial e, em outra premissa, a de que, sendo o sigilo bancário uma prática costumeira no comércio bancário, deveria estar presente na interpretação dos contratos dessa natureza.

É de fácil percepção a semelhança entre esta teoria e a contratualista, vez que ambas partem da mesma premissa para criar teorias complementares. Por vezes os autores chegam a confundi-las ou uni-las em suas definições, como na que transcrevemos [45] a seguir:

O banqueiro deve guardar o segredo, tanto sobre as operações tratadas com seu cliente como sobre o esclarecimento dado por este em vista de sua realização. É uma obrigação que decorre dos usos e cujo descumprimento pode gerar a responsabilidade contratual do banqueiro.

Os opositores dessa doutrina refutam-na em virtude de o costume não gerar direitos, mas apenas os expressar. E, em conseqüência, essa teoria não é capaz de explicar a razão do sigilo bancário, mas tão somente a sua fonte formal.

Além disso, se esse pensamento pode, em tese, dirimir as dúvidas quanto à natureza do sigilo em países que não possuem um dispositivo legal a este respeito, o mesmo não pode ser dito nos que possuem.

6.3- Teoria da boa-fé

Encontra fundamento no fato de o sigilo bancário, por sua própria natureza, estar vinculado ao caráter fiduciário da atividade bancária.Critica-se essa corrente por ser apenas uma nova roupagem da teoria contratualista.

Ademais, a boa-fé constitui-se em uma obrigação acessória que se impõe aos negócios jurídicos em geral, restando difícil, por isso, encontrar nela o fundamento de um outro dever.

6.4- Teoria do sigilo profissional

Muito comum no sistema europeu continental, sobretudo porque na maioria dos países que o integram não há previsão legal de sanção penal para o descumprimento do sigilo bancário. Aos que violam esse dever aplicam-se, por conseguinte, as penas cominadas para a violação de segredo profissional. Entendemos não merecer esta teoria as mais profundas considerações por estar indissociavelmente ligada e, diríamos até, inserida dentro da teoria do direito à privacidade, haja vista estar o sigilo profissional incluso na esfera íntima e pessoal tanto da pessoa obrigada a guardá-lo como daquela sobre o qual ele versa.

6.5 – Teoria do direito à intimidade dos bancos

Teoria moderna surgida na Itália, busca justificação para o sigilo bancário no direito à intimidade da empresa de crédito. Em outras palavras, os defensores dessa idéia sustentam que a instituição financeira tem legítimo interesse de se recusar a revelar a terceiros a movimentação financeira dos seus clientes, assim como os fatos a ela relacionados.

Francisco Capriglione, citado por Sérgio Carlos Covello [46], defende encontrar essa teoria fundamento legal no artigo 10 da lei bancária italiana que impõe ao Banco Central e a seus funcionários o segredo sobre notícias, informações e dados respeitantes à empresa de crédito. Isso se traduz numa suposta proteção da esfera de reserva do estabelecimento bancário, equiparável à proteção do segredo científico e industrial, também prevista pelo direito italiano.

De uma maneira geral, pode-se dizer que os defensores dessa corrente doutrinária vêem, no direito de sigilo, um direito do banco, por ser a garantia de fidúcia e de discrição indispensável para que este arrecade novos clientes.

Essa concepção teórica, apesar de não ser bem aceita pela doutrina brasileira, tem respaldado alguns julgados de nossos tribunais, senão vejamos:

MANDADO DE SEGURANÇA - INFORMAÇÕES DECORRENTES DE QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO – INSTITUIÇÃO BANCÁRIA – LEGITIMIDADE ATIVA – INTERESSE DE AGIR – EXISTÊNCIA – O mandado de segurança consubstancia remédio constitucional destinado a proteger direito líquido e certo contra ato ilegal ou abusivo de poder emanado de autoridade pública. Se o ordenamento jurídico constitucional somente autoriza a quebra judicial do sigilo bancário desde que justificada a necessidade da medida para fins de investigação criminal, tem interesse de agir a instituição bancária que, ao reputar ilegal a ordem, pretende ver reconhecido perante o Poder Judiciário seu direito líquido e certo em não prestar as informações bancárias solicitadas. (ROMS nº9.918-Paraná, STJ, Relator Ministro Vicente Leal, publicado em 30 de outubro de 2000)

Cumpre observar, no entanto, que há decisões em sentido oposto como, por exemplo, a proferida no julgamento do Recurso Especial 2001/0054455-3, pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Nela em que a Ministra Nancy Andrighi decidiu que pedido de exibição de documentos formulado por correntista em face de instituição bancária que ameaça inclusão do número do seu CPF no Cadastro de Cheques sem Fundos, em virtude da emissão de cheque devolvido por insuficiência de fundos, não viola o sigilo bancário, como alegara o banco em sua defesa. Em seu voto, a Ministra se manifestou sobre o assunto da seguinte forma:

Ainda que o cheque não houvesse entrado em circulação, não se teria sentido obstar a exibição desse e dos outros documentos requisitados pela recorrida sob o argumento de que esses estariam protegidos pelo sigilo bancário, pois não há como estabelecer o sigilo das transações efetivadas entre pessoas que mantêm um vínculo contratual que, no caso, se traduz na manutenção de conta corrente pela recorrida junto ao banco credor.

Assim sendo, inexiste violação ao art. 38, §7º, da Lei 4595/64.

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Ao negar o direito do banco de opor o sigilo ao cliente, a Ministra deixa transparecer que o sigilo bancário não se constitui em um direito da instituição e sim do cliente. Nesse sentido se manifestou Sérgio Carlos Covello [47] , in verbis:

Certamente, o Banco tem o direito de proteger sua esfera privada, que se integra de técnicas operacionais, projetos, esquemas de trabalho, rol de clientes etc., mediante o exercício de um ‘jus excludiendi alios’ caracterizador do sigilo. Mas isso não significa que o sigilo bancário decorra deste direito. Não é para proteger a intimidade do Banco que existe o sigilo bancário e sim para proteger a intimidade do indivíduo. Não fora assim, o Banco poderia livremente fornecer informação sobre seu cliente, sem sofrer sanção, porque estaria exercendo o legítimo direito de abrir mão de um aspecto de sua intimidade.

6.6 – Teoria da complexidade do vínculo

Arnoldo Wald [48] chama a atenção para essa nova teoria segundo a qual, além dos direitos e das obrigações principais, existem deveres secundários para ambos os contratantes que decorrem da regra geral da boa-fé, exigindo que a atuação de uma parte não cause danos à esfera jurídica da outra. Assim, o sigilo bancário nada mais seria que um dever acessório na relação jurídica.

Pedimos vênia para discordar do renomado autor por entender que essa nova teoria nada mais é que o resgate da teoria da boa-fé com nova roupagem, aplicando-se a ela as mesmas críticas já efetuadas.

6.7 – Teoria do direito à privacidade

Doutrina bastante difundida em todo o mundo e que propaga ser o sigilo corolário do direito à intimidade, o qual, por sua vez, integra o direito da personalidade. Da Alemanha, temos a teoria das esferas ou círculos concêntricos, que compõe a intimidade na esfera maior e o segredo no círculo de menor raio, o que resulta na observação de que este integra aquela. Na Suíça, país conhecido pela rigidez com que trata o tema, o fundamento apontado para o sigilo bancário é a intimidade do cidadão, encarada como direito essencial do indivíduo. Demonstrando o rigor como tal pensamento encontra-se presente na cultura do povo suíço, Sérgio Carlos Covello [49] observa que "não é o artigo 47 da lei bancária suíça que determina o segredo aos bancos e sim o direito privado numa norma de maior transcendência". Conclui ainda afirmando que é o respeito à personalidade, tido como um dos traços básicos da democracia, que impõe às instituições de crédito o dever de silêncio sobre as operações que intermediam. Também na Itália e Argentina há uma forte corrente doutrinária apregoando ser o sigilo bancário uma das facetas dos direitos à intimidade ou à privacidade e, portanto, um direito da personalidade.

No Brasil, cumpre observar que a ampla maioria da doutrina especializada sustenta essa bandeira. Entre os adeptos dessa teoria em nosso país, merecem especial destaque Sérgio Carlos Covello [50], Nelson Abrão [51], Roberto Quiroga Mosquera [52] e Arnoldo Wald [53].

A esse respeito, o eminente Ministro potiguar José Augusto Delgado [54] assim se manifestou:

O sigilo bancário diz respeito à intimidade e privacidade das pessoas?

A resposta é, optando por convencimento influenciado pelas idéias da corrente predominante, positiva.

O nosso entendimento é no sentido de que o direito à intimidade integra os direitos da personalidade e visam proteger o direito à inviolabilidade do domicílio, da correspondência, das comunicações de qualquer espécie, dos dados pessoais computadorizados, do sigilo bancário. O mesmo acontece com o direito à privacidade.

(...)

A concepção do sigilo bancário no âmbito do direito à intimidade e à privacidade visa garantir ao homem o mínimo capaz para que lhe seja assegurada a sua condição humana, protegendo-o das ingerências alheias, como apregoa a Conferência Nórdica sobre o Direito à Intimidade, realizada em Estocolmo , na data de maio de 1967, ao fazer inserir, no documento que publicou, a seguinte definição ‘O direito à intimidade é o direito do homem de viver em forma independente a sua vida, com um mínimo de ingerência alheia’.

Há, entretanto, corrente contrária que entende não constituir o sigilo bancário derivação do direito à privacidade, não integrando o rol dos direitos da personalidade e, portanto, não encontrando guarida em nossa Carta Magna. Veja-se, neste sentido, o posicionamento de Maria José Oliveira Lima Roque [55] que, após argumentar serem os direitos da personalidade o mínimo necessário para que a personalidade se desenvolva plenamente, sendo imprescindíveis para dar a cada pessoa uma identidade própria, argüiu nascerem todos com direito à vida, à saúde, a um nome, a professar uma fé, à integridade física, à honra, a ter vida íntima, etc., enquanto ninguém nasce com direito ao sigilo bancário.

A autora questiona ainda a inclusão do sigilo bancário no rol dos direitos da personalidade em razão de o Estado não poder sequer garantir a todos o direito de ser cliente de um banco, haja vista ser o banco quem seleciona seus clientes. Portanto, é contraditório falar em direito ao sigilo bancário como inerente a todos os cidadãos. Ademais lembra que, segundo a teoria clássica dos direitos da personalidade, estes seriam oponíveis a todos e irrenunciáveis, o que não ocorre com o sigilo bancário, que não apenas comporta exceções como é renunciável.

Maria José de Oliveira Lima Roque vai ainda além, refutando a possibilidade de se incluir o sigilo bancário entre os direitos da personalidade como um corolário do direito à intimidade, aduzindo o seguinte:

Acresça-se que por intimidade entende-se tudo o que está adstrito à cidadela interior de cada um, tudo que não produza reflexo no mundo social. Se a movimentação patrimonial de alguém gera nova relação de direitos com outros titulares, deixa de ser assunto de mera intimidade.

Essa tese, no entanto, não tem encontrado respaldo nos tribunais superiores de nosso país, que vêm reiteradamente decidindo pela inclusão do sigilo bancário no rol dos direitos da personalidade, como derivado do direito à privacidade, senão vejamos:

SIGILO BANCÁRIO. DIREITO À PRIVACIDADE DO CIDADÃO. QUEBRA DO SIGILO. REQUISITOS LEGAIS. RIGOROSA OBSERVÂNCIA. A ordem jurídica autoriza a quebra do sigilo bancário, em situações excepcionais. Implicando, entretanto, na restrição do direito à privacidade do cidadão, garantida pelo princípio constitucional, é imprescindível demonstrar a necessidade das informações solicitadas, com estrito cumprimento das condições legais autorizadoras. (STJ – Resp. 124.272/RO – Rel. Min. Hélio Mosimann – J. em 11.12.1997 – DJ 02.02.1998 – BIJ 174/ 13.631)

Recentemente, por ocasião do julgamento do MS 21.729-4/DF, tivemos a oportunidade de ver a manifestação de todos os então ministros do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. Na seqüência temos um pequeno extrato dos seus pronunciamentos:

Na ocasião, o Ministro Marco Aurélio de Mello assim se pronunciou: "(...)Tenho que o sigilo bancário está sob a proteção do disposto nos incs. X e XII do art. 5º da CF. Entendo que somente é possível afastá-lo por ordem judicial".

O Ministro Maurício Correia, atual presidente de nossa Corte maior, e o Ministro Celso de Melo demonstraram também comungarem com tal entendimento ao assim se pronunciarem:

(...)Também eu entendo que no contexto da inviolabilidade destes direitos à intimidade e à vida privada assegurados pela Constituição aos brasileiros e aos estrangeiros aqui residentes, estão contidos os desdobramentos do direito à privacidade, entre os quais, inexoravelmente, o direito ao sigilo bancário e ao fiscal. Esse direito individual está assegurado de tal forma que não se permite, sequer, que a sua abolição seja objeto de deliberação em proposta de emenda à Constituição (art. 60, §4º, IV). Ministro Maurício Correia

(...) agora em virtude dos textos expressos da Constituição e especialmente da interpretação sistemática dos incs. X e XII do art. 5º da CF, ficou evidente que a proteção ao sigilo bancário adquiriu nível constitucional, impondo-se ao legislador, o que, no passado, podia ser menos evidente. (...) A relevância do sigilo bancário – que traduz uma das projeções realizadoras do direito à intimidade – impõe, por isso mesmo, a cautela e a prudência ao Poder Judiciário na determinação da ruptura da esfera de privacidade individual que o ordenamento jurídico, em norma de salvaguarda, pretendeu submeter à cláusula tutelar de reserva constitucional (CF, art. 5º, X). Min. Celso de Mello.

O Ministro Ilmar Galvão, por sua vez, adotou, no referido julgado, uma posição que poderia ser tida como mista, não fosse o nosso entendimento de que o sigilo bancário constitui-se em espécie do gênero sigilo profissional. Eis o seu pronunciamento:

A Constituição, ao dizer, no art. 129, VI, que tem o Ministério Público a atribuição de requisitar informações e documentos para instruir os procedimentos administrativos de sua competência, não investiu o órgão do poder de devassa. Competência dessa natureza, por interferir no direito fundamental de privacidade, consagrado no art. 5º, X, da CF, haveria de vir expressa, não podendo resultar de interpretação ampliativa do mencionado inciso do artigo 129, nem, muito menos, de disposição da lei complementar destinada a regulamentá-lo, já que constitui restrição a dois postulados básicos, quais sejam, os valores da privacidade e da intimidade, e o dever de sigilo sobre conhecimento decorrente do exercício profissional(incs. X e XIV do art. 5º da CF).

Já o Ministro Carlos Velloso apenas confirmou o entendimento manifestado outrora:

Em voto que proferi na Pet. 577/DF, caso Magri, sustentei a tese de que o sigilo bancário protege os interesses privados: ele é espécie do direito à privacidade, que é inerente à personalidade das pessoas a que a Constituição consagra no art.5º, X, além de atender a uma finalidade de ordem pública qual seja a proteção do sistema de crédito.

O voto do então Ministro Francisco Rezek, hoje integrando a Corte Internacional de Justiça, causou surpresa e estraneza, pois, contrariando precedentes do próprio STF e entendimento doutrinário amplamente majoritário, entendeu que o sigilo bancário não se constitui em um direito à intimidade ou à privacidade, in verbis:

(...) O inciso X do rol de direitos fala assim numa intimidade onde a meu ver seria extraordinário agasalhar a contabilidade, mesmo a das pessoas naturais, e por melhor razão a das empresas. (...) É possível que os dados bancários, em certos casos, deixem entrever aspectos da vida privada, como ocorreria, por exemplo, na revelação de gastos com especialidades médicas de certas enfermidades ou despesas com pessoas das relações afetivas mais íntimas, que o cliente queira manter em segredo. Isso, contudo, é exceção, porque, em regra, as operações e serviços bancários não podem ser referidos à privacidade, no sentido de que é protegido no inciso X do art. 5º da Constituição. Assim, os dados bancários concernentes a pagamentos de compra de imóveis, os financiamentos para aquisição de casa própria ou os financiamentos públicos para o desenvolvimento de atividades produtivas são alguns exemplos de informações que não se inserem no núcleo irredutível da privacidade.

Tal entendimento encontrou respaldo no voto do Ministro Sepúlveda Pertence, para quem "o sigilo bancário só existe no direito brasileiro por força de lei ordinária". Em seqüência o Ministro completou seu raciocínio nos seguintes termos:

Não entendo que se cuide de garantia com status constitucional. Não se trata de intimidade protegida no inciso X do art. 5º da CF. Da minha leitura, no inciso XII da Lei fundamental, o que se protege, e de modo absoluto até em relação ao Poder Judiciário, é a comunicação "de dados" e não os "dados" o que tornaria impossível qualquer investigação administrativa, fosse qual fosse.

Observamos, no entanto, que esse entendimento é isolado na atual composição do Excelso Pretório. Prevalece também lá o entendimento de que o sigilo bancário integra o direito à intimidade e à vida privada, portanto, encontra amparo constitucional.

Ressalva seja feita, entretanto, ao fato de que, desde a data em que foi prolatada a paradigmática decisão em comento houve plena reformulação composição do Tribunal, que passou a ser integrado pelos Ministros Gilmar Ferreira Mendes, Nelson Jobim, Ellen Gracie, além dos recém-indicados Carlos Ayres de Brito, Joaquim Benedito Barbosa, Antônio Cézar Peluso e Eros Grau, o que pode resultar em mudança no entendimento acima exposto. Além do que, encontram-se em tramitação cinco ADINs [56] que tratam da matéria do sigilo bancário distribuídas para o Ministro Sepúlveda Pertence, o que lhe conferirá uma ótima oportunidade de defender sua tese para os novos ministros.

De qualquer sorte, aproveitamos a ocasião para registrar a nossa opinião no sentido de ser o sigilo bancário uma derivação do direito à intimidade e à vida privada, em razão de ser possível estabelecer o panorama sobre a vida de um indivíduo através de simples análise de seus dados financeiros. Um simples extrato de conta corrente ou cartão de crédito se mostra capaz de revelar importantes informações sobre a vida de um cidadão, tais como hábitos de consumo, controle financeiro, situação econômica, relações extramatrimoniais e até mesmo estado emocional, haja vista não serem poucas as vezes em que uma situação psicológica ruim resta refletida nos seus gastos pessoais.

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Sobre o autor
Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho

Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutor em Direito pela Université de Nantes (França). Professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas. Professor, Coordenador de cursos de pós-graduação e membro do Conselho Curador da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti. O sigilo bancário como corolário do direito à intimidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 735, 10 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6988. Acesso em: 22 dez. 2024.

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