Contrato de mútuo feneratício: análise da cobrança de juros acima da taxa permitida em lei por particulares e pelas instituições bancárias

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A cobrança de juros acima da taxa permitida pela lei, pelas instituições financeiras, não se configura abusividade, crime de usura, ou agiotagem, desde que, conforme entendimento do STJ, seja respeitada a taxa média do mercado.

RESUMO: O presente artigo versará sobre o contrato de mútuo feneratício, ao analisar em particular a sua forma onerosa no que concerne a contratos de empréstimo realizados por particulares e pelas instituições bancárias, em que a da taxa de juros é estipulada acima da taxa máxima permitida em lei. Realizar-se-á uma abordagem da evolução histórica do contrato de mútuo e de sua disciplina e regulamentação pela legislação brasileira. Em seguida, serão estudados os juros, buscando definir sua conceituação, origens históricas e são analisadas, do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial, as taxas de juros estipuladas nos contratos de mútuo feneratício e o limite máximo estabelecido pela lei. Quanto à estipulação de taxas abusivas, maiores do que a taxa prevista em Lei, será tratada pelo artigo a agiotagem, enquanto crime contra a economia popular, considerando as implicações dessa prática no âmbito do Direito Civil e do Direito Penal. Por fim, em relação à cobrança de juros excessivos por instituições bancárias nos contratos de empréstimo concluir-se-á pela análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, que afirmam que a abusividade das taxas de juros nos contratos com essas instituições têm como parâmetro a taxa máxima média do mercado, podendo até mesmo ultrapassar o teto máximo previsto pela lei sem configurar agiotagem.

PALAVRAS-CHAVES: mútuos feneratícios; agiotagem; instituições financeiras; juros legais.

ABSTRACT:This article deals with the loan agreement, analyzing in particular its onerous form with respect to loan agreements made by individuals and banks, where the rate of interest is stipulated above the maximum rate allowed by law. Will be taken an approach to the historical evolution of the loan contract and its discipline and regulation by Brazilian legislation. Then, interest rates will be studied, seeking to define their conceptualization, historical origins and the interest rates stipulated in the loan agreement and the maximum limit established by the Law are analyzed, from a doctrinal and jurisprudential point of view. As for the stipulation of  abusive rates, more than the rate provided by law, by particulars or 'moneylenders' is treated by the article as a crime against the popular economy, considering meawhile all the implications of this practice in the field of Civil Law and Criminal Law. Finally, in relation to the collection of excessive interest by banking institutions in the loan agreements, it is concluded by the analysis of the jurisprudence of the Federal Supreme Court and the Superior Court of Justice that the abusiveness of interest rates in the contracts with these institutions have as a parameter the market Maximum average rate, and may even exceed the maximum ceiling provided by the Law without setting up wrongfulne.

KEYWORDS: Loan agreement; moneylendig; bankig institutos; legal interest.


INTRODUÇÃO

Como as necessidades da vida se multiplicam e nem todas as pessoas têm posse que lhes permitam satisfazê-las, é comum se emprestar de amigos, de parentes ou, modernamente, de instituições financeiras, os bens e valores que estes possuem em excesso, com a promessa de restituição. Desta forma, o Código Civil de 2002 (CC/2002) designa, com o vocábulo empréstimo, dois contratos de reconhecida importância: o comodato e o mútuo, que consistem na entrega de coisa infungível ou fungível, respectivamente, com a obrigação de restituir (GONÇALVES, 2012).

O contrato de mútuo feneratício é uma subespécie do mútuo, que consiste em um empréstimo de dinheiro, com a cobrança de juros. Destarte, o CC/2002 estipula um limite para a taxa de juros, objetivando inibir os mútuos feneratícios usurários, como a agiotagem, que cobram juros superiores à taxa legal e que geram o enriquecimento ilícito de uma das partes.

Diante disso, cabe questionar o porquê é permitido às instituições financeiras cobrarem juros que excedem às taxas legais previstas no CC/2002 sem configurar abusividade ou agiotagem. Assim, a fim de responder a tal questionamento, o presente artigo visa analisar os dois extremos: os contratos de mútuo feneratícios que obedecem aos juros legais e aqueles que excedem aos limites dos juros legais. Essas análises serão feitas por meio do método dedutivo, com o procedimento histórico e auxílio de pesquisa bibliográfica, documental e jurisprudencial.

A abordagem deste tema é importante, visto que, embora seja atual e presente no cotidiano de muitos, é escasso produções bibliográficas referentes ao mesmo. Assim, o presente artigo poderá ser uma fonte de conhecimento para aqueles que querem compreender melhor o porquê é permitido às instituições financeiras cobrarem juros superiores aos legais e, ainda, fornecerá substrato ao estudo de outros temas interligados a este.


1. O CONTRATO DE MÚTUO FENERATÍCIO

O mútuo feneratício é uma subespécie do mútuo, espécie de empréstimo tratado especificamente nos artigos 586 a 592 do Código Civil Brasileiro de 2002 (CC/2002). Preceitua o artigo 586 do CC/2002 que o mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis, e o mutuário fica obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em mesmo gênero, quantidade e qualidade. Ou seja, o objeto de empréstimo deste contrato é necessariamente fungível (GONÇALVES, 2012).

Devido a isso, o contrato de mútuo pode ser conceituado como um empréstimo para consumo, considerando que o mutuário não é obrigado a restituir a própria coisa que recebeu, e sim outra equivalente. Também pela natureza fungível do bem emprestado, sua propriedade é transferida ao mutuário, que dele pode não somente usar e gozar, mas também dispor. Ao se tornar dono da coisa, porém, aquele que a tomou em mútuo sofrerá exclusivamente todos os riscos de perda ou danos que a mesma venha a sofrer, estando o mutuante livre de responsabilidade desde a tradição (GONÇALVES, 2012).

A tradição é critério indispensável para que se aperfeiçoe o contrato de mútuo, e antes que ela ocorra não se considera concluído o contrato. Em virtude disto, considera-se o mesmo como sendo de natureza real (STOLZE; FILHO, 2014). O mútuo também é unilateral, uma vez que aperfeiçoado, somente gera obrigações a uma das partes; temporário, por ser fixado por prazo determinado; não solene, por não haver forma prescrita em lei para realizá-lo e pode ser gratuito ou oneroso. Segundo Gonçalves, “o mútuo é considerado, tradicionalmente, contrato gratuito, embora o empréstimo de dinheiro seja, em regra, oneroso, com estipulação de juros, sendo por isso denominado mútuo feneratício” (GONÇALVES, 2012, p.346).

O mútuo feneratício é uma modalidade de contratação unilateral onerosa (STOLZE; FILHO, 2014) em que o bem mutuado é o dinheiro e o mutuário é obrigado a pagar juros, como versa o CC/2002 em seu artigo 591: “destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual” (BRASIL, 2002). O CC/2002 traz ainda em seu artigo 592, II, disposição concernente ao prazo do mútuo, que deve ser de pelo menos trinta dias se tratando de dinheiro.

Embora seja comumente utilizada entre pessoas físicas, esta modalidade de empréstimo ganha destaque no mundo dos negócios, sendo amplamente oferecida pelos bancos e impulsionando o desenvolvimento e o progresso. (GONÇALVES, 2012). A respeito disso, afirmam Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho (2014, p.184): “No âmbito do mercado financeiro, as instituições de crédito frequentemente figuram no pólo ativo da relação, emprestando dinheiro.”

1. 1. A evolução histórica do mútuo feneratício

Antes da existência do mútuo feneratício em sua forma atual, ou seja, uma espécie de empréstimo pelo qual se cobram juros, tendo estes seu limite fixado em lei, a cobrança de rendimentos por certa transação sofreu uma série de modificações e foi aceita – ou não – de diferentes maneiras e com diferentes regras em determinados períodos da história. Nesse sentido, Olívia Ricarte ao citar Gonçalves preleciona que:

Nas citações mais antigas, os juros eram pagos sob a forma de sementes ou de outros bens. Muitas das práticas existentes originaram-se dos antigos costumes de empréstimo e devolução de sementes e de outros produtos agrícolas.

(...) em 475 A.C. já existia uma firma de banqueiros internacionais, com escritórios centrais na Babilônia. Sua renda era proveniente das altas taxas de juros cobradas pelo uso de seu dinheiro para o financiamento do comércio internacional. (GONÇALVES, 2005, apud RICARTE 2011)

Ricarte (2011) acrescenta ainda que haja relatos a respeito de juros contidos nas mais antigas leis, como a Lei das doze tábuas, o Código de Hamurabi, o Código de Manu, a Bíblia e o Alcorão.

A cobrança de juros, aceita desde muito tempo em algumas sociedades, tinha livre estipulação no Direito Romano e encontrou barreiras no Direito Canônico, como citam Stolze e Filho (2014). Sobre isso, expressa Alencar (2006) apud Ricarte (2011):

Os juros surgiram, entre os povos da antigüidade, como uma compensação pelo uso do capital alheio. A cobrança dos juros, condenada pelos Concílios de acordo com a doutrina da Igreja, não foi admitida na maioria das legislações européias anteriores à Revolução Francesa. Em reação, inspirando-se na lição de Calvino, os autores protestantes, de um lado, e os economistas e filósofos franceses do século XVIII, liderados por Montesquieu, por outro lado, consideraram cabível a compensação pela utilização do capital alheio, desde que estabelecida em bases moderadas e não configurando a usura. (sic).

Desde então, os juros e suas regras de estipulação foram evoluindo e se modificando, até chegarem aos conceitos atuais. Em consonância com Stolze e Filho (2014), os juros são frutos civis, rendimentos que provêm do capital emprestado e podem se enquadrar nas modalidades compensatória ou moratória.

No Brasil, quando na época de vigência do Código Civil de 1916, para que houvesse onerosidade no mútuo, esta deveria ser expressa, ainda que se tratasse de empréstimo de dinheiro. Posteriormente, com a evolução da sociedade e das concepções a respeito dos juros, e considerando que na atualidade empréstimos de dinheiro não são realizados de forma gratuita, o Código Civil de 2002 trouxe significativa mudança ao tratar expressamente desta espécie de mútuo.

1.2. Os juros compensatórios e o contrato de mútuo feneratício

Conforme Gonçalves (2011), juros representam o pagamento pela utilização de capital alheio, sendo considerado como frutos civis da coisa.

São considerados como espécie de juros os compensatórios, que consistem naqueles devidos como compensação pela utilização de capital pertencente a outrem. Esclarece-se que esses juros são cobrados nos contratos de mútuo oneroso, em que o bem mutuado é o dinheiro (art. 591 do CC/2002).

Em relação aos juros compensatórios nos contratos de mútuo feneratício, o CC/2002 assim disciplina: “Art. 591 – Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.”

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Com base nesse dispositivo, conclui-se que a taxa máxima de juros compensatórios é aquela a que se refere o art. 406, o qual diz: “Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.”

Observa-se, diante do artigo supra mencionado, que a taxa de juros moratórios pode ser convencionada entre as partes. Mas quando a taxa não houver sido ajustada, deverá ser aplicada a mesma taxa de juros vigente para a mora dos tributos devidos à Fazenda Nacional.

Atualmente, a Fazenda Nacional vem adotando a taxa denominada SELIC — Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, prevista no art. 39, § 4º, da Lei n. 9.259/95, taxa esta que visa combater a inflação (GONÇALVES, 2011).  A despeito disso, o Código Tributário Nacional, antes da criação da SELIC, indicava que os juros incidentes sobre os tributos federais teriam taxa de 1% ao mês (SILVESTRE, 2014).

Entretanto, a referida taxa traz embutida a correção monetária, não constituindo, pois, forma de fixação apenas dos juros moratórios. Por este motivo, alguns defendem a aplicação generalizada da taxa de juros do art. 161, caput e § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, 12% ao ano (GONÇALVES, 2011).

Observa-se que há decisões dos tribunais que optam pela aplicação da taxa de 1% ao mês. Essa corrente encontra apoio na Conclusão n.20 aprovada na Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, em Brasília, em setembro de 2002, cuja primeira parte proclama: “A taxa dos juros remuneratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do CTN, ou seja, 1% ao mês...”. Nesse sentido: “A taxa de juros a ser aplicada, com o advento da nova legislação civil, é a de 1% ao mês, a partir da citação, em conformidade com o Enunciado 20, das Jornadas de Direito Civil, segundo o qual a taxa de juros a que se refere o art. 406 do Código Civil é a do art. 161 do CTN, ou seja, 1% ao mês”[3].

Decisão nesse mesmo sentindo foi a proferida pela MMª Juíza da 1ª. Vara Cível da comarca de Montes Claros, em 2014, que acatou parcialmente o pedido do J.R.F., que entrou com uma ação de execução de título extrajudicial contra J.M.P.R., a fim de receber cheque com taxa de juros moratórios de 5% ao mês. Por considerar ser uma taxa de juros muito superiores à taxa legal, a MMª Juíza reduziu os juros incidentes sobre o valor emprestado para 1% ao mês[4].

Segundo Gonçalves (2011), porém, a taxa SELIC vem sendo sufragada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), a partir do posicionamento firmado pela sua Corte Especial por ocasião do julgamento dos Embargos de Divergência 727.842-SP, em 20 de novembro de 2008, no seguinte sentido:

1. Segundo dispõe o art. 406 do Código Civil, “Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”.

2. Assim, atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia — SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da Lei 8.981/95, 39, § 4º, da Lei 9.250/95, 61, § 3º, da Lei 9.430/96 e 30 da Lei 10.522/02)[5]

Percebe-se, portanto, que há um a divergência sobre qual taxa aplica-se sobre os juros moratórios. Dessa forma, por incidirem aos mútuos feneratícios os juros compensatórios, cujo parâmetro de limitação é o juro moratório previsto no art.406, aplicar-se-á nesse tipo de contrato a taxa SELIC ou a de 12% ao ano (SILVESTRE, 2014). 

Salienta-se, por fim, que a leitura do art.406 não deve ser isolada e, sim, em conjunto com a Lei da Usura (Decreto n. 22.626, de 7.4.1933), posto que, este artigo dá margem a juros convencionais, dessa forma, se não houver uma análise conjunta, poderia os juros convencionais serem excessivos, gerando, assim, um enriquecimento sem causa, o que é vedado em lei. Segundo o Decreto n. 22.626/33, “é vedado estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal”.

Conforme Gonçalves (2011, p.663), os juros compensatórios podem ser convencionais. Contudo, embora a Lei da Usura limite o pacto de juros convencionais compensatórios ao dobro da taxa legal, isso não se aplica aos juros compensatórios do contrato de mútuo, pois, o mesmo está subsumido ao art. 591 do CC/2002 que tem como limite os juros moratórios dos tributos devidos à Fazenda Nacional (PORTELA, 2016).

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Sobre os autores
Denise Camilo Soares Carmo

Graduanda no Curso de Direito na Universidade Estadual de Montes Claros

Lucas Silva Vieira

Discente do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES.

Rodrigo Dantas Dias

Advogado militante, Mestre em Direito Público, Pós graduado em Direito Processual, Direito Econômico e Direito Empresarial, professor de ensino superior em cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência em nas áreas do Direito Público e Privado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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