Contrato de mútuo feneratício: análise da cobrança de juros acima da taxa permitida em lei por particulares e pelas instituições bancárias

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2. Agiotagem

Historicamente, o mútuo em dinheiro é marcado por restrições legais devido à preocupação do legislador em coibir a prática usurária que é considerada crime. (LOBO, 2012). Nesse sentido, o CC/2002 estabelece em seus artigos 406 e 591 que, destinando-se o mútuo a fins econômicos, a taxa de juros cobrada não poderá exceder a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional (BRASIL, 2002).

Diante disso, define-se a Agiotagem como a prática de empréstimos em dinheiro com a cobrança de juros excessivos, superiores à taxa permitida em lei, tornando-se um crime contra a economia popular.

Visto que o ordenamento jurídico brasileiro é contrário ao enriquecimento sem causa, a estipulação de juros usurários é considerada nula, devendo o juiz ajustá-la ao limite legal e ordenar a devolução do numerário cobrado em excesso (LOBO, 2012) pelo mutuante ao mutuário. Dito isso, fica evidente que o valor emprestado deverá ser devolvido/pago ao agiota, mas com a incidência legalmente permitida de 12% ao ano ou a SELIC.

APELAÇÃO. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE MÚTUO FENERATÍCIO ENTRE PARTICULARES. INADIMPLEMENTO DA DEVEDORA. (...) A celebração de mútuo feneratício entre particulares não é vedada pelo ordenamento pátrio, desde que inexista violação dos dispositivos legais que regem a matéria. Segundo o art. 184 da Lei Civil, respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não prejudicará a sua parte válida, devendo ser extirpados do contrato os juros que excedam os patamares previstos em lei. Correção monetária a partir do vencimento da dívida. Negado provimento ao recurso, com a manutenção da sentença. [6]

Ademais, ressalta-se que há decisões no sentido de nulidade da execução, desde que provada a prática de agiotagem, por falta de título executivo “líquido, certo e exigível”.  Observe:

APELAÇÃO CÍVEL – EMBARGOS À EXECUÇÃO – TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL – NOTA – PROMISSÓRIA NULIDADE DO TÍTULO – PRÁTICA DE AGIOTAGEM – COMPROVAÇÃO – TÍTULO INÁBIL A ENSEJAR O PROCESSO EXECUTIVO – Comprovando a parte embargante a nulidade da promissória que ensejou a execução, devido à comprovação da prática de agiotagem, não é o título cambial, título executivo hábil a ensejar o processo executivo, por não ser líquido, certo e exigível. [7]

EMENTA: EMBARGOS DO DEVEDOR - PRÁTICA DE AGIOTAGEM - VEROSSIMILHANÇA NAS ALEGAÇÕES - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - POSSIBILIDADE - INTELIGÊNCIA DO ART. 1º E 3º DA MP n.º 2.172-32 - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO SUBJACENTE - COBRANÇA DE JUROS ABUSIVOS - PERDA DA LIQUIDEZ, CERTEZA E EXIGIBILIDADE – SENTENÇA MANTIDA. Comprovada a prática de agiotagem pela cobrança extorsiva de juros, perde a nota promissória a liquidez, certeza e exigibilidade, do que decorre a carência de execução. [8]

Urge ressaltar, por fim, que nem todos os contratos de mútuos feneratícios que não obedecem ao limite de taxa legal configuram-se agiotagem, pois, conforme a Súmula 383 do Superior Tribunal de Justiça: “A estipulação de juros remuneratórios superior a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade”. Infere-se, assim, que a abusividade destes, que configura agiotagem, só pode ser declarada, caso a caso, pelo Pode Judiciário (GONÇALVES, 2011).

2. 1. Implicação da agiotagem no direito civil e penal

A agiotagem, que é a cobrança de juros acima do limite legal, de acordo com o artigo 4º da Lei 1521/51, é considerada um crime contra a economia popular, definido como usura pecuniária ou real:

Art. 4º. Constitui crime da mesma natureza a usura pecuniária ou real, assim se considerando:

Cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro superiores à taxa permitida por lei; cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada por moeda estrangeira; ou, ainda, emprestar sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito;  Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, de cinco mil a vinte mil cruzeiros.  (BRASIL ,1951).

Na esfera Civil, com base no artigo 586 do CC/2002 e na proibição do enriquecimento sem causa ou ilícito, deve o mutuante pagar o que deve ao agiota, muito embora questione esse dever legal. O valor devido incidirá sobre o valor do empréstimo que poderá ser acrescido dos juros dentro do limite legal, ou seja, pelo limite de 12% ao ano ou da taxa SELIC. Caso tenha ocorrido a cobrança acima desse limite, o juiz poderá ordenar a restituição em dobro da quantia paga em excesso, com juros legais a contar da data do pagamento indevido (LOBO, 2012)

 Além disso, a agiotagem pode ser enquadrada também como crime contra o Sistema Financeiro Nacional, conquanto o agiota atue no mercado financeiro sem autorização do Banco Central (LEITE, 2012):

Art. 7º Emitir, oferecer ou negociar, de qualquer modo, títulos ou valores mobiliários:

IV - Sem autorização prévia da autoridade competente, quando legalmente exigida:

 Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa. ”(BRASIL, 1986).

O crime supra mencionado será julgado pela Justiça Federal, enquanto que o crime contra a economia popular será julgado pela Justiça Estadual.

Ressalta-se que cabem ainda ao agiota as sanções penais cometidas pelo abuso da sua atividade, pois, não raras vezes, há na realidade uma cobrança de créditos através do uso da força (coação), violência (lesão corporal) e até mesmo de ameaças de morte. Sendo isso inadmissível, pode ser tais atitudes enquadradas como infração penal, sendo necessária a denúncia à autoridade competente.

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3. Mútuo feneratício realizado por instituições bancárias e cobrança de juros acima da taxa legal

Sendo o mútuo feneratício um contrato oneroso quando há cobrança de juros, a lei estabelece expressamente um limite máximo da taxa de juros. Conforme já explanado, a agiotagem se configura quando os juros cobrados são superiores à taxa permitida pela lei. A abordagem agora é se essa regra se aplica do mesmo modo às instituições bancárias, pois estas têm um papel crucial na economia moderna, pois: “o mútuo oneroso, mediante o pagamento de juros, é responsável pelo desenvolvimento do comércio bancário. Várias modalidades de empréstimo foram incrementadas, como o empréstimo por desconto de títulos à ordem, o contrato de financiamento, a abertura de crédito e a conta corrente.” (GONÇALVES, 2012, p.352)

Ao analisar o artigo 591 do Código Civil – que define o limite da taxa de juros no mútuo feneratício – e sua aplicação ás instituições bancárias, Maria Helena Diniz ensina:

O limite imposto pelo artigo sub examine não deveria alcançar o mútuo bancário, que, ante sua especialidade, é regido por normas do BACEN e resoluções editadas pelo CMN; mas há quem ache que o referido dispositivo legal tem incidência sobre ele, estendendo-se inclusive aos mútuos destinados a fins econômicos feitos por instituições financeiras por serem onerosos. O mútuo bancário apenas subsidiariamente é disciplinado por normas do Código Civil. (DINIZ, 2004, p.453)

O Decreto 22.626 de 1933, também conhecido como “Lei da Usura”, ainda em vigor em seu artigo 1º assim diz: “É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal.” (BRASIL, 1933). Porém, tal decreto conflitava com a Lei 4595/1964 que dispôs competir privativamente ao Conselho Monetário Nacional a limitação das taxas de juros. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende em sua súmula de número 596 que “As disposições do Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional”. No caso, a Lei 4595/64 seria uma norma especial, que regulamentaria as taxas de juros nos contratos mantidos com as instituições bancárias, sem, no entanto, revogar o Decreto 22.626/33, que se aplicaria aos juros remuneratórios decorrentes dos demais contratos.

O Recurso Especial de número REsp 890460 / RS do STJ afastou a incidência do artigo 591 do Código Civil nos contratos bancários, como se verifica em sua ementa:

CIVIL. AÇÃO REVISIONAL. CONTRATO DE FINANCIAMENTO COM GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CAPITALIZAÇÃO DOS JUROS. ANUALIDADE. ART. 591 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INAPLICABILIDADE. ART. 5º DA MEDIDA PROVISÓRIA N. 1.963-17/2000 (2.170-36/2001). LEI ESPECIAL. PREPONDERÂNCIA.

I. Não é aplicável aos contratos de mútuo bancário a periodicidade da capitalização prevista no art. 591 do novo Código Civil, prevalecente a regra especial do art. 5º, caput, da Medida Provisória n. 1.963-17/2000 (2.170-36/2001), que admite a incidência mensal.

II. Recurso especial conhecido e provido. [9]

Flávio Taturce (2015) ao analisar o entendimento jurisprudencial sobre o assunto diz: “Mesmo não concordando com as premissas dos julgamentos, é de se concluir que, para essa mesma jurisprudência, o art. 591 do Código Civil não será aplicado aos contratos bancários, valendo as regras do mercado. Esse é o entendimento que, infelizmente, deve ser considerado majoritário”. (TARTURCE, 2015, p.735)

No sentido de que a mera ultrapassagem da taxa máxima de juros nos mútuos onerosos, não caracteriza por si só a conduta proibida pela lei, o STJ editou a súmula de número 382 que enuncia que: “A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade”.

Todavia, a cobrança de juros pela instituição bancária acima da taxa média de mercado, no entender do STJ, configura-se uma prática abusiva, conforme emente do Recurso Especial n°.1036818:

EMENTA PROCESSUAL CIVIL E BANCÁRIO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL. EMPRÉSTIMO PESSOAL. JUROS REMUNERATÓRIOS. ABUSIVIDADE. CONSTATAÇÃO. LIMITAÇÃO à TAXA MÉDIA DE MERCADO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. - Cabalmente demonstrada pelas instâncias ordinárias a abusividade da taxa de juros remuneratórios cobrada, deve ser feita sua redução ao patamar médio praticado pelo mercado para a respectiva modalidade contratual. – Não se configura o dissídio jurisprudencial se ausentes as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados. Art. 541, parágrafo único, do CPC e art. 255, parágrafos, do RISTJ. Recurso especial não conhecido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, não conhecer do recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti e Ari Pargendler votaram com a Sra. Ministra Relatora.Brasília (DF), 03 de junho de 2008.[10]

Assim sendo, pode-se concluir que maioria da doutrina concorda e é entendimento pacífico na jurisprudência que o mútuo feneratício realizado por instituições bancárias é regido por normas especiais, sendo possível a cobrança de juros acima da taxa permitida pela Lei, por essas instituições, sem configurar abusividade, crime de usura, ou agiotagem, desde que conforme entendimento do STJ seja respeitada a taxa média do mercado.

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Sobre os autores
Denise Camilo Soares Carmo

Graduanda no Curso de Direito na Universidade Estadual de Montes Claros

Lucas Silva Vieira

Discente do Curso de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES.

Rodrigo Dantas Dias

Advogado militante, Mestre em Direito Público, Pós graduado em Direito Processual, Direito Econômico e Direito Empresarial, professor de ensino superior em cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência em nas áreas do Direito Público e Privado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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