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A Lei n. 13.655/2018 e as alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

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3. Dever de consideração dos obstáculos e dificuldades reais do administrador público na interpretação de normas administrativas e regras para a aplicação de sanções a agentes públicos

A lei impõe, ademais, às autoridades encarregadas do julgamento de causas que demandem a interpretação de normas sobre gestão pública, o dever de considerar “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.” (BRASIL, 2018, p. 1) É o teor do caput do novo art. 22, da LINDB, o qual prevê, ainda, em seu § 1º que, “Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”. (BRASIL, 2018, p. 1)

Tal norma, evidentemente, não pode servir de escudo para o administrador ímprobo, relapso ou negligente. Verifica-se, do texto legislativo, preocupação excessiva com a defesa de certas posições administrativas, como se as esferas administrativa e judicial, na apreciação da regularidade das condutas, já não atentassem para as circunstâncias que impõem, limitam ou condicionam o comportamento dos agentes públicos. O direito público possui vasto número de princípios próprios, muitos dos quais favoráveis ao administrador, tais como a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos e a supremacia do interesse público sobre o privado. Ademais, a boa aplicação do direito sempre exigiu que as especificidades de qualquer caso concreto, aí incluídos os relativos à gestão pública, fossem levadas em consideração quando da interpretação das normas incidentes, pelo que a nova disposição, a nosso ver, não parece acrescentar muito, soando mais como um apelo do Executivo pela prolação de decisões mais atentas à realidade do gestor público.

Em parte, o mesmo se pode dizer do § 2º, do referido dispositivo, segundo o qual, “Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.” (BRASIL, 2018, p. 1) Embora a previsão tenha o condão de estabelecer um novo requisito formal de validade para as decisões que aplicam penalidades a agentes públicos, no que tange à substância dos julgamentos, novamente, a norma pouco ou nada acrescenta, pois, do ponto de vista do conteúdo, tais circunstâncias já deveriam integrar o objeto da análise do julgador, como manifestação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Nos termos do art. 2º, da Lei n.º 9.784/99, a Administração Pública deve respeito aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência, cabendo, nos processos administrativos, a observância dos princípios da atuação conforme a lei e o Direito e da “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”. (BRASIL, 1999, p. 1) Ainda assim, é possível vislumbrar na norma certo grau de inovação, na medida em que, expressamente, traz para a esfera do direito administrativo sancionador conceitos nitidamente associados à aplicação da lei penal, como “agravantes”, “atenuantes” e “antecedentes”, impondo, ainda, o dever de o julgamento apreciar tais circunstâncias e pautar-se na “natureza” e na “gravidade” da infração cometida.

O § 3º estatui que “As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.” O dispositivo cria, como se vê, o dever de proceder-se a uma “dosimetria” na aplicação de sanções aos administradores públicos, atraindo, pela opção terminológica, a plêiade principiológica de aplicação da lei penal, que, consoante a jurisprudência construída nas últimas décadas, pauta-se por regras rígidas para a fixação de pena em quantidade superior ao mínimo legal. Estabelece, ademais, o dever de que sanções da mesma natureza e relativas ao mesmo fato sejam levadas em conta quando da fixação do quantum de determinada sanção.

Uma leitura apressada poderia sugerir que o dispositivo estaria a disciplinar o impacto dos “antecedentes” do administrador na quantificação de sanções por infrações da mesma natureza. Não é esse, contudo, o objeto do § 3º, pois a consideração dos antecedentes já foi determinada no § 2º e, neste momento, ao revés, fala-se em sanções já aplicadas “relativas ao mesmo fato”, o que afasta a compreensão de que se referiria a antecedentes, dado que os fatos em apreço são os “mesmos”. Aqui, a norma é protetiva do administrador e determina que, quando da fixação de uma sanção, deve ser abatido do quantum o valor das sanções já aplicadas em razão do “mesmo fato”, o que faz sentido quando se recorde que, no Brasil, vige a independência de instâncias. Assim, se um agente, por hipótese, comete ato ilícito com repercussão nas esferas administrativa, criminal e de improbidade administrativa, por consectário lógico, a indenização fixada nas esferas criminal e administrativa deve ser abatida de indenização da mesma natureza fixada, em função do mesmo fato, por exemplo, na esfera de improbidade administrativa (que abrange, entre as sanções previstas, a reparação civil).

A nosso ver, tal norma é extremamente problemática, pois a lei fala que o abatimento do quantum fixado nas demais esferas deve ocorrer durante a “dosimetria” da sanção, isto é, no momento de sua aplicação. Ocorre que, para que esse abatimento se pudesse dar de forma adequada, necessário seria que os quantitativos fixados em decisões anteriores fossem definitivos, o que significa, no âmbito judicial (criminal e de improbidade administrativa), que a decisão precisaria ter transitado em julgado, e, no âmbito administrativo, que estivesse prescrita a pretensão de revisão da decisão administrativa pela via judicial. No caso brasileiro, contudo, sabe-se que tais situações podem levar anos para sua verificação, tempo esse que, no mais das vezes, é suficiente para a prescrição da pretensão punitiva ou de reparação civil em algumas das demais esferas de atuação, ferindo de morte o princípio da independência de instâncias, cuja razão de ser é, justamente, permitir a punição do agente, assegurando a aplicação da lei e evitando a impunidade.

Em nossa perspectiva, o disposto no § 3º, do art. 22, da LINDB, não pode ser aplicado literalmente, devendo ser interpretado como um dever de consolidação das sanções aplicadas, a ser efetuado em sede de execução, após se terem tornado definitivas as condenações em todas as esferas de responsabilidade do agente (administrativa, criminal e de improbidade administrativa).


4. Dever de criação de regime de transição em decisões que fixem nova interpretação sobre norma de conteúdo indeterminado

Consoante o art. 23, da Lei de Introdução, incluído pela nova Lei n.º 13.655/2018, a decisão administrativa, controladora ou judicial “que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.” (BRASIL, 2018, p. 1)

A norma autoriza e determina, tanto no âmbito administrativo quanto no judicial, em qualquer grau de jurisdição, a adoção da técnica da modulação dos efeitos da decisão que fixa no caso concreto o significado de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, prerrogativa prevista em lei, anteriormente, de forma expressa, apenas para o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade. (BRASIL, 1999b, p. 1). Trata-se de uma das mais importantes inovações da reforma de 2018 na LINDB, na medida em que um poder anteriormente conferido apenas ao Supremo Tribunal Federal, a ser efetuado por decisão de 2/3 de seus membros, tendo em vista razões de “segurança jurídica e excepcional interesse social” (no art. 27, da Lei n.º 9.868/99), agora, é outorgado a qualquer juiz ou administrador público pelo simples fato de se estar diante da definição do conteúdo de uma norma dotada de vagueza conceitual. A previsão parte da premissa de que a concretização de princípios fundamentais, valores jurídicos ou normas jurídicas abertas e indeterminadas, por força da maleabilidade dos conceitos, exige tratamento semelhante ao do juízo de constitucionalidade, precisamente porque, em ambos os casos, é sempre necessário interpretar o ordenamento jurídico em sua integralidade, havendo que se ponderar valores contrapostos assimilados pela lei e pela constituição. É uma mudança de paradigma, o reconhecimento expresso pelo direito positivo da necessidade de utilização, em caráter geral, inclusive na esfera administrativa, de métodos de interpretação pós-positivistas, que pressupõem o dever de integração e criação do direito.

O texto legal não obriga o intérprete, contudo, a sempre fixar regime de transição por ocasião da definição de interpretação que imponha novo dever ou novas condições para o exercício de um direito, pois estabelece que isso deva ocorrer apenas “quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.” (BRASIL, 2018, p. 1) O legislador incorre, como se vê, em postura recursiva, na medida em que utiliza conceitos jurídicos abertos e indeterminados para determinar um comportamento a ser efetuado pelo intérprete quando do tratamento de conceitos jurídicos abertos e indeterminados. O dever de fixar regime de transição ocorre somente quando for “indispensável” para que o cumprimento da nova interpretação se realize de modo “proporcional”, “equânime”, “eficiente” e sem prejuízo aos “interesses gerais”. Como o significado de tais expressões somente pode ser definido no caso concreto, na prática, a obrigação só existe quando o próprio intérprete a reconheça como existente, o que, por óbvio, não pode ser considerado propriamente uma obrigação, mas uma recomendação. A norma representa, portanto, mais do que uma imposição, uma autorização para que se defina regime de transição em casos de mudança interpretativa que estabeleça novos deveres ou condicionamentos de direitos.

Não se deve, contudo, desprezar a disposição, relegando-a apenas ao papel autorizativo. Sempre que o novo dever fixado em interpretação de conceito jurídico aberto ou indeterminado se revele de difícil concretização, por envolver altos custos para sua implementação, ou, ainda, quando a nova interpretação implicar consequências desproporcionais aos administrados, deve o intérprete reconhecer a validade de situações pretéritas, trabalhadas de conformidade com a interpretação anterior, e definir momento futuro para a aplicabilidade plena do novo entendimento, podendo fazer valer, desde já, novos requisitos que não se revelem extremamente onerosos aos seus destinatários. Como o legislador não tinha como prever todas as hipóteses em que exigível o regime de transição, e, ao mesmo tempo, acertadamente, entendeu não ser conveniente impor o dever de modulação dos efeitos em todos os casos que envolvam interpretação de conceitos jurídicos indeterminados – vez que, em alguns casos, razões de interesse público podem autorizar ser a nova interpretação aplicada de imediato – é de se esperar que se forme uma jurisprudência sobre a forma de aplicação da lei que determina o modo de fazer a jurisprudência.

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O caráter cogente da norma que obriga o intérprete a fixar o regime de transição, ainda que trabalhado mediante conceitos que, em si mesmos, demandam interpretação no caso concreto, verifica-se do debate envolvendo o veto efetuado sobre parte do dispositivo. A Lei n.º 13.655/2018 incluía um parágrafo único ao art. 23 da LINDB, mas teve o seu texto vetado sob o argumento de que a previsão “reduz a força cogente da própria norma e deve ser vetado, de modo a garantir a segurança jurídica de tais decisões.” (BRASIL, 2018b, p. 1)  Rezava o pretendido parágrafo único que, se o regime de transição, quando aplicável nos termos do caput do art. 23, não estivesse previamente estabelecido, o sujeito obrigado teria direito de “negociá-lo com a autoridade, segundo as peculiaridades de seu caso e observadas as limitações legais, celebrando-se compromisso para o ajustamento, na esfera administrativa, controladora ou judicial, conforme o caso.”  O veto presidencial, fundado em manifestação dos Ministérios do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, da Fazenda, da Transparência e em pareceres da Controladoria-Geral da União e da Advocacia-Geral da União, asseverou que, como o caput do artigo impõe a obrigatoriedade de estabelecimento de regime de transição em decisão administrativa, controladora ou judicial que preveja mudança de entendimento em norma de conteúdo indeterminado quando indispensável para o seu cumprimento, não faria sentido o parágrafo único prever um direito subjetivo de negociação da situação particular ao administrado quando tal norma não fosse cumprida, pois daria a entender que o vício da interpretação que não fixasse o regime de transição poderia ser suprido, enfraquecendo, por conseguinte, o caráter cogente da norma que impõe o dever de elaboração de regime de transição.

O veto, a nosso ver, se revelará, na prática, inócuo, pois, sendo demonstrado pelo administrado que a modulação de efeitos, no caso concreto, era “indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito” pudesse ser “cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”, e tendo e decisão interpretativa sido omissa na fixação do regime de transição, por óbvio, haverá direito subjetivo à fixação da norma transitória, ainda que particularmente, o qual poderá ser definido mediante ação declaratória, na via judicial. A proposta do texto vetado era permitir que tal direito pudesse ser exercido na via administrativa, mediante “compromisso para o ajustamento”, comportando, ainda, o diferencial da previsão expressa do direito subjetivo ao ajuste. A despeito da ausência de previsão que resultou do veto, não nos parece nem que tenha deixado de existir o mencionado direito subjetivo, nem que seja vedado à Administração celebrar acordo para a definição de regra de transição no caso concreto, caso solicitado pelo jurisdicionado mediante requerimento administrativo, respeitadas, naturalmente, as regras de hierarquia e competência das autoridades administrativas e as “limitações legais”. (BRASIL, 2018, p. 1)

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. A Lei n. 13.655/2018 e as alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5599, 30 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69967. Acesso em: 22 nov. 2024.

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