Resumo: O texto estuda as inovações trazidas pela Lei n.º 13.655/2018 à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que estabeleceram deveres adicionais de fundamentação e conteúdo para decisões jurídicas nos âmbitos administrativo e judicial que fixem a interpretação de valores abstratos ou conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, notadamente no campo do direito público. É efetuada uma análise geral dos dispositivos, com indicação das disposições que foram objeto de veto e da aplicação que se pode esperar para os dispositivos à luz dos valores e demais previsões do ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Fundamentação das decisões judiciais e administrativas. Interpretação jurídica. Conceitos jurídicos abertos ou indeterminados. Ponderação de princípios.
Sumário: Introdução. 1. Motivação das decisões judiciais, administrativas e de controle financeiro e orçamentário na aplicação de normas jurídicas de conteúdo aberto ou indeterminado. 2. Necessidade de indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas da decisão que decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa. 3. Dever de consideração dos obstáculos e dificuldades reais do administrador público na interpretação de normas administrativas e regras para a aplicação de sanções a agentes públicos. 4. Dever de criação de regime de transição em decisões que fixem nova interpretação sobre norma de conteúdo indeterminado . 5. Irretroatividade de nova interpretação de cláusula geral para efeito de invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa. 6. Previsão vetada: ação declaratória da validade de ato público, de rito especial, com sentença de eficácia erga omnes. 7. Possibilidade de celebração de compromisso administrativo com o fito de eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público. 8. Possibilidade de fixação de indenização por dano processual no bojo da própria decisão do processo administrativo ou judicial. 9. Responsabilidade pessoal do agente público por decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. 10. Possibilidade de realização de consulta pública para a edição de atos normativos pela Administração Pública no âmbito dos três Poderes. 11. Estímulo à edição de súmulas administrativas, regulamentos, respostas a consultas e demais atos tendentes a reforçar a segurança jurídica. Conclusão. Referências.
Introdução
A Lei n.º 13.655, de 25 de abril de 2018, incluiu 10 (dez) novos artigos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942, tendo por escopo introduzir “disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”.
Dentre as inovações do novel diploma, pode-se destacar a instituição de normas expressas regulando a motivação das decisões jurídicas nas esferas administrativa, controladora e judicial quando da aplicação de normas de conteúdo aberto ou indeterminado, e, ainda, a interpretação de normas relativas à administração pública, as decisões interpretativas, as decisões que impliquem invalidação de atos, contratos, ajustes ou processos administrativos, a celebração de compromisso para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, a fixação de compensação por dano processual, o estabelecimento da responsabilidade pessoal do agente público em caso de dolo ou erro grosseiro, dentre outras medidas tendentes a reforçar a segurança jurídica na criação e aplicação do direito público.
A norma ostenta evidente importância no cenário jurídico, com impacto significativo na atuação dos agentes públicos em geral, notadamente quanto à aplicação do direito público, na medida em que instituiu novos critérios de validade para a manifestação das diferentes autoridades, impondo novo ônus argumentativo para a densificação de valores jurídicos abstratos ou normas jurídicas de conteúdo indeterminado, cujo significado e efeitos são definidos à luz das circunstâncias do caso concreto.
O presente texto tem por objetivo o exame inicial das novas regras, buscando-se identificar as alterações que introduziu na ordem jurídica e a mudança de postura que se exige dos órgãos e agentes públicos no desempenho de suas atribuições.
1. Motivação das decisões judiciais, administrativas e de controle financeiro e orçamentário na aplicação de normas jurídicas de conteúdo aberto ou indeterminado
O novo art. 20, da Lei de Introdução, passa a dispor que “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”, asseverando, ainda, que “A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.” (BRASIL, 2018, p. 1)
Significa dizer que um novo requisito de validade para a motivação das decisões jurídicas que versem sobre normas de conteúdo aberto ou indeterminado é a “consideração das consequências práticas da decisão”, sendo recomendável aos juízes, membros de tribunais e demais agentes públicos que, na aplicação de princípios jurídicos ou valores do sistema normativo, façam constar expressamente da fundamentação a referência ao novo dispositivo legal da Lei de Introdução, efetuando o devido cotejo entre a solução proposta e as “consequências práticas da decisão”. Por consequências “práticas” devem ser compreendidas não apenas as consequências jurídicas, mas, também, as de ordem econômica, política e social, analisando-se os efeitos da decisão administrativa ou judicial em sentido amplo.
Evidentemente, as consequências que interessam ao legislador, ao ponto de interferirem na validade da decisão, inclusive judicial, não são, prioritariamente, os efeitos da decisão no plano fático individual, cuja parte interessada se encontra representada no processo, participa do embate dialógico do qual resulta a decisão e tem legitimidade para impugná-la na via recursal, mas, sobretudo, sua repercussão no âmbito coletivo, notadamente o impacto financeiro e orçamentário de decisões judiciais que interfiram na execução de políticas públicas, a exemplo da judicialização da saúde (v. g., condenação do Estado na obrigação de fazer consistente em realizar determinados procedimentos médicos ou no fornecimento de medicamentos de alto custo).
Ao que nos parece, a preocupação maior do legislador, ao exigir a consideração das consequências “práticas” da decisão funda-se, precisamente, em razões de ordem financeira e orçamentária, tendo em vista a aprovação recente, pela Emenda Constitucional n.º 95 (PEC do Teto dos Gastos Públicos), da política limitação de despesas nos órgãos e entidades da administração direta e indireta, nos três Poderes e nos três níveis da federação.
Nos termos do parágrafo único, quando se tratar de decisão que importe em invalidação de norma, ajuste, processo, ato ou contrato administrativo, deve o julgador, ainda, fazer referência explícita à “necessidade e adequação” da medida, cabendo efetuar um cotejo em face das “possíveis alternativas” à anulação ou ao reconhecimento da nulidade. Novamente, doravante, é de bom alvitre que o juiz ou administrador público faça menção expressa na fundamentação às referidas expressões e ao dispositivo legal em apreço, comparando os cenários nos quais é mantido ou excluído do ordenamento o ato viciado.
Os dispositivos consagram no plano do direito positivo a técnica interpretativa da ponderação de interesses, defendida de há muito por Dworkin e Alexy e já trabalhada, para as decisões judiciais, no texto do Novo Código de Processo Civil. (MARMELSTEIN, 2018, p. 373-390) Nos termos do art. 489, § 1º, do NCPC, “Não se considera fundamentada” qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: a) se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; b) empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; c) invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; d) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; e) se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; f) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (BRASIL, 2015, p. 1)
No caso da previsão inserida no texto da LINDB, a norma se destina às decisões nas esferas “administrativa, controladora e judicial”. Por esfera “controladora”, entendemos que o legislador quis se referir ao controle administrativo, financeiro e orçamentário efetuado pelo Congresso Nacional, pelos Tribunais de Contas e pelos órgãos de controle interno de cada Poder, nos termos do art. 70, da CF/88, os quais, a nosso ver, integram o gênero mais amplo da atividade “administrativa”, pelo que sua menção se revelaria atécnica, porquanto, a rigor, desnecessária. (BRASIL, 1988, p. 1) Com efeito, não faria sentido que, com a expressão “controle”, tenha o legislador pretendido referir ao sistema de freios e contrapesos estabelecido na Constituição para a atuação harmônica entre os Poderes, vez que esse integra decisões de natureza administrativa, legislativa e jurisdicional, contemplando, por conseguinte, medidas de ordem política, cuja motivação sequer é exigida do agente público.
A razão de ser da norma é, como explicita a ementa da lei, fomentar a segurança jurídica, tendo em vista a existência de decisões que invocavam princípios ou normas jurídicas abertas ou indeterminadas de forma nitidamente deficiente, sem demonstrar as razões que autorizavam a aplicação do instituto no caso concreto, com o devido cotejo de interesses, detalhando-se o juízo de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. No plano judicial, a inclusão de norma que regula a fundamentação na Lei de Introdução vem em reforço às regras de motivação constantes do NCPC, revelando que o alcance da norma não se limita às questões de direito público, mas a toda decisão que envolva a aplicação de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados.
2. Necessidade de indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas da decisão que decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa
Dispõe o atual art. 21, caput, da Lei de Introdução que “A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.” O parágrafo único estabelece que referida decisão “deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais”, sendo certo que é vedado “impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.” (BRASIL, 2018 p. 1)
Ao decretar a nulidade ou anulação de ato ou contrato administrativo, pois, deve a autoridade julgadora explicitar as consequências jurídicas da decisão, notadamente no plano administrativo. Trata-se de novo ônus para o agente público que, a bem da segurança jurídica, não mais poderá decidir relegando a momento posterior a elucidação dos efeitos. Tal norma encontra-se em consonância com a anterior, que prevê o dever de consideração das consequências práticas antes da prolação da decisão.
Vale dizer: nos termos dos arts. 20 e 21, da LINDB, as consequências ou efeitos práticos da decisão administrativa ou judicial que versem sobre a anulação de atos públicos devem ser referidos tanto na fundamentação quanto no dispositivo do julgado.
Evidentemente, ambas as normas contemplam certo idealismo. Em casos complexos, e, mormente, naqueles com repercussão geral, aptos a alcançar uma multiplicidade de sujeitos de direito e, por vezes, toda a coletividade, é pueril esperar que a autoridade seja capaz de vislumbrar, de antemão, todos os possíveis efeitos da decisão. Assim como o legislador não consegue antever todos os fatos e circunstâncias passíveis de regulação jurídica, tanto que, precisamente por isso, apela ao uso de conceitos jurídicos abertos e indeterminados, não se pode esperar do aplicador e intérprete que seja capaz dessa façanha. Na prática, os novos artigos 20 e 21 do LINDB tentam transferir para o aplicador – e, sobretudo, para o Judiciário, que detém a última palavra sobre as interpretações – a responsabilidade pela insegurança jurídica, a qual, em verdade, é um problema que decorre da incompletude do ordenamento – questão espinhosa de cunho filosófico-jurídico, que atinge todos os sistemas jurídicos do mundo, não se revelando exclusividade do caso brasileiro. É ilusório pensar que, com uma simples “penada do legislador”, transferindo-se ao intérprete o ônus de antever as consequências da decisão, se possa solucionar o problema da segurança jurídica. Sem dúvida, a medida é louvável, porquanto representa um esforço no sentido de racionalizar as decisões e promover a cultura da segurança jurídica. Seria fantasioso, contudo, imaginar que, doravante, as decisões não mais produzirão impactos imprevistos. A pretensão de revelação antecipada dos efeitos da decisão, nesse sentido, equivale à expectativa de identificação totalizante dos fatos jurídicos pelo direito, revelada impossível após a ampla codificação do século XIX. A tentativa de regulamentação exaustiva da fundamentação pós-positivista conduz, pois, ao retorno da problemática vivenciada sob a égide da hermenêutica clássica, que, ao fim e ao cabo, resume-se ao problema da incompletude do ordenamento.
Nesse contexto, a única interpretação possível para os dispositivos é a de que a autoridade julgadora tem o dever jurídico de levar em consideração na fundamentação e explicitar no dispositivo os efeitos ou consequências práticas mais evidentes, entendidos como tais como os que decorrem diretamente da decisão, vinculando as partes e terceiros por consectário lógico do julgado, bem como os efeitos gerais à sociedade e ao Estado perceptíveis em seus aspectos essenciais pelo homem médio, além daqueles que, a despeito de não se revelarem aparentes, tenham sido suscitados pelas partes nos debates ocorridos no processo. Não há como esperar do julgador, magistrado ou administrador, uma visão abrangente da totalidade dos fatos sociais, inclusive porque, nas relações jurídicas de trato continuado e nos casos de formação de precedente administrativo ou judicial, os efeitos da decisão alcançam fatos futuros, cujas especificidades poderão contemplar circunstâncias impensáveis por ocasião da edição do julgado. Ainda no que se refere aos fatos presentes, porém, é impossível ao julgador-intérprete identificar, a priori, todos os possíveis efeitos de sua decisão.