Mistanásia: um olhar sobre a dignidade da pessoa humana no sistema único de saúde

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4.  A MISTANÁSIA, O SUS E A DESIGUALDADE SOCIAL

Diariamente, é comum vermos os noticiários divulgando casos em que o cidadão, ao procurar os serviços básicos de saúde, em postos ou hospitais, depara-se com negativas ou mesmo omissão em seu atendimento, essa conduta quando não gera a morte, provoca danos muitas vezes irreversíveis àqueles que buscaram tal serviço.

A CRFB de 88 prevê, em seu art. 196, caput, que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”. Dessa maneira, estabelece, sobretudo que o acesso à saúde deve ser universal e igualitário.

Entretanto, alerta LAVOR (2018) que em que pese a norma constitucional estabelecer de forma expressa o direito à saúde e a facilitação de seu acesso a todos os indivíduos, não raras vezes, observamos a inauguração de hospitais sem o mínimo de infraestrutura para a demanda exposta, a existência de elevado número de profissionais da saúde mal remunerados e com sobrecarga de trabalho, a ausência de leitos para cidadãos que aguardam atendimento nos nosocômios públicos, além dos incontáveis pleitos de liminares judiciais a fim de que haja uma mínima tutela à vida, exemplos da omissão estatal em uma área fundamental, a saúde.

Ainda segundo LAVOR (2018) as denúncias que emanam de órgãos de fiscalização não param, especialmente dos Conselhos de Medicina, as quais, além de apresentarem a realidade dramática e cruel vivenciada pelas pessoas carentes doentes e o tratamento nada digno que lhes é ofertado pelo Estado, mostram a precariedade dos serviços experimentada pelos profissionais da saúde que laboram junto à rede pública, prestando serviços à exaustão física e psicológica, diante da falta de estrutura dos locais de trabalho.

Esses profissionais diante do quadro de caos de muitos hospitais e postos de saúde do Brasil, chegam ao ponto de se tornarem verdadeiros “juízes” do destino da vida de pessoas, tendo que optar qual vida salvar, infelizmente atribuindo a prevalência de uma vida sobre a outra, situação em que se verifica a mistanásia.

Ainda conforme o entendimento de LAVOR (2018) a mistanásia alcança sobremaneira aqueles que, em virtude de carência de recursos, sequer têm acesso aos serviços médicos básicos, restando sua prática em evidente violação a um dos fundamentos da República, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal, qual seja, a dignidade da pessoa humana por parte do Estado. A morte prematura de pessoas por ausência de um tratamento digno, lamentavelmente, acaba sendo banalizada.

Mesmo diante da pressão da mídia e ao mostrar o descaso por parte dos entes públicos responsáveis pela, além das ações promovidas pelo Ministério Público, Defensoria Pública, bem como das decisões do Poder Judiciário, percebe-se que o Estado  mantendo-se inoperante frente as demandas de pessoas carentes, permanecendo numa postura de “desprezar” os indivíduos que clamam, há décadas, por um tratamento minimamente digno, optando por justificar sua omissão com base na reserva do possível e olvidando do mínimo existencial.

De acordo com HÄRBELE (2003), o mínimo existencial possui, assim, uma relação com a dignidade humana e com o próprio Estado Democrático de Direito, no comprometimento que este deve ter pela concretização da ideia de justiça social. Essa teoria não pode ser utilizada como forma de justificar, apenas com singelas alegações, a omissão do Estado no cumprimento de seus deveres constitucionais tendo em vista que essa surgiu em um contexto socioeconômico completamente diverso do brasileiro e seu critério norteador jamais foi exclusivamente o econômico, mas a razoabilidade e a proporcionalidade na realização de políticas públicas pleiteadas pela sociedade, razão pela qual é totalmente inaplicável em nossa realidade.

A mistanásia, prática vedada pelo ordenamento jurídico pátrio, vai muito além de insuficiência financeira do Estado, ela é o resultado de um mau e cruel relacionamento humano, diante de um quadro de banalização da morte, mormente das mais carentes social e financeiramente, atingindo-se um processo de coisificação do indivíduo, em que sua vida não apresenta a devida relevância nem para o Estado, nem para a sociedade.

Dessa maneira, a ineficiência do Estado no âmbito da saúde pública resulta na institucionalização de um processo contínuo de mortes prematuras e desarrazoadas, as quais poderiam ser evitadas com os devidos cuidados médicos LAVOR (2018).

Assim, ainda segundo LAVOR (2018) para justificar as mortes por falta de um tratamento digno, o Estado utiliza-se da suposta impossibilidade financeira de arcar com os custos decorrentes de insumos, pessoal e tratamentos hospitalares.

Contudo, observamos que tal tentativa de repelir sua responsabilidade constitucional se apresenta inverossímil, porquanto notamos que vultuosos valores são alocados em despesas que não possuem prioridade frente a vida humana, como é o caso de gastos com publicidade institucional.

E por fim, desse modo, torna-se imperiosa a mudança de postura gerencial de recursos públicos pelo Estado, a fim de que as pessoas que recorrem ao Sistema Único de Saúde não sejam vítimas da mistanásia, sobretudo por entender que, além de afetar a dignidade dos pacientes, atinge severamente os próprios profissionais da saúde em sua dignidade pessoal e profissional, já que  submetidos a ambientes laborais com alto nível de estresse, bem como compelidos a optar por qual vida salvar, ante a ausência da estrutura material necessária.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível constatar a partir desse estudo que a mistanásia, como o fenômeno social perverso que é, corrói o delicado liame entre a dignidade humana, a cidadania e o respeito aos direitos fundamentais. Consiste num terrível e extemporâneo contraponto aos ideais históricos da humanidade, de liberdade, de igualdade e de fraternidade.

Por outro lado, o problema da mistanásia é como se fosse a ponta de um iceberg, ou seja, é a parte visível de problemas estruturais muito maiores, é a consequência deles. A Magna Carta positivou os direitos e garantias fundamentais, consagrando a dignidade da pessoa humana como fio condutor de todo o ordenamento jurídico.

 A legislação infraconstitucional segue o mesmo norte, compatibilizando-se com a doutrina moderna, fruto de um longo processo sócio-histórico e alicerçada nas longas e árduas lutas da humanidade em defesa do reconhecimento de seus direitos. Mas a letra da lei não promove, por si só, a transformação da realidade social. Peca por sua ineficácia.

 Por triste ironia, a Constituição cidadã não garante a formação de cidadãos. Urge uma reforma política do Estado que priorize a participação efetiva do povo na construção de uma democracia efetiva. Um Estado democrático realmente de direito, em que floresça uma cultura de intolerância à corrupção, aos desvios de verbas e à malversação dos recursos públicos.

É urgente a proposição e adoção de políticas públicas adequadas e consistentes, que promovam e garantam condições dignas de saúde, moradia, previdência e bem estar social. Urge o resgate da confiança dos cidadãos e a garantia de acesso de toda a população a uma justiça ágil, efetiva, eficiente e eficaz, gratuita ou, ao menos, não excludente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARTIN, Leonard M. apud NÓBREGA FILHO, Francisco Seráphico Ferraz da. Eutanásia e dignidade da pessoa humana: uma abordagem jurídico-penal. Disponível em:<http://www.ccj.ufpb.br/pos/contents/pdf/bibliovirtual/dissertacoes-2008/eutanasia-e-dignidade-da-pessoa-humana-uma-abordagem-juridico-penal.pdf+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-b-ab. Acesso em 01/10/2018.

CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Culpabilidade e Reprovação Penal. São Paulo: Sugestões Literárias, 1994.

GAFO, Javier. apud  SANTOS, Jozabed Ribeiro dos; DUARTE, Hugo Garcez. Eutanásia: o direito de morrer à luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 148, maio 2016. Disponível em: <http://ambitojuridico. com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17150&revista_caderno=27>. Acesso em 29/09/2018.

Häberle, Peter. El Estado Constitucional. Tradução de Héctor Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003.. 

MENDONÇA, Márcia Helena; SILVA, Marco Antônio Monteiro da. Vida, dignidade e morte: cidadania e mistanásia. Disponível em: <file:///C:/Users/chelp/Downloads/150-633-1-SM.pdf>. Acesso em: 30/09/2018.

NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Juris Síntese, 2000.

ROCHA, Júlio César de Sá da. Direito de Saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses difusos e  coletivos.São Paulo: Ltr, 1999.

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Vida Digna: Direito, Ética e Ciência. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (coord.). O Direito à Vida Digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004,

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.


Notas

[3] Por falta de um remédio; por falta de leitos em um hospital; por falta de uma máquina de realizar exames de tomografia, por exemplo.

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Sobre os autores
Layze Castro Moraes

Acadêmica do 10º Período de Direito da Faculdade Católica do Tocantins.

Fábio Barbosa Chaves

Doutor em Direito pela PUC Minas, Mestre em Direito pela PUC Goiás, Professor da Faculdade Católica do Tocantins,

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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