1. Autoria, co-autoria e participação (1): a leitura clássica. O Código Penal brasileiro
Na conhecida dicção de S. Soler [01], autor, em Direito Penal, é quem executa a ação expressa pelo verbo típico da figura delituosa. Na preleção de von Liszt [02] ¾ que designava pela expressão "ato principal" ("Täterschaft"), em oposição a participação ("Teilnahme"), toda realização iniciada ou terminada do(s) ato(s) de execução da infração penal [03] ¾ autor é aquele executa, por si mesmo, o ato de execução do ilícito penal definido na lei (autor único), assim como o é aquele que se serve, como instrumento de ação, de outro homem ¾ quiçá a própria vítima ¾ e que comete, mediante esse, o ato de execução (autor mediato, falando-se, nesse caso, de ato principal mediato ou de atos do autor intelectual ¾ "intellektuelle Urheberschaft").
A autoria mediata, ainda no magistério de von Liszt, dá-se quando o instrumento não é imputável (e.g., alienado mental ou pessoa menor ante a lei penal), quando atua sem liberdade (e.g., na coação moral irresistível ¾ artigo 22, 1ª parte, do Código Penal brasileiro), quando não age dolosamente (e.g., na indução a erro de tipo ou de proibição escusável), quando o delito exige uma intenção ou qualidade determinada que não se encontra no instrumento (e.g., nos tipos penais que encerram dolo específico) ou ainda quando o instrumento está obrigado a executar o ato, por deveres de serviço ou disposição legal (e.g., na obediência hierárquica: artigo 22, 2ª parte, do Código Penal brasileiro).
Autor é também aquele que, em colaboração consciente com outros, inicia ou termina um ato de execução da infração penal; dão-se, nesse caso, os atos do co-autor ("Mittäterschaft"), que pressupõem a intervenção direta no ato de execução. Já os executantes de atos meramente acessórios, não descritos no tipo penal, seriam simplesmente partícipes. A diferença entre autoria e participação estabelecer-se-ia, pois, objetivamente.
Nas infrações penais complexas, basta para a co-autoria a realização de um dos atos de execução ¾ ato principal ¾ que integram a descrição típica; assim, se "A" emprega violência contra a mulher "C" ou ameaça "D" com perigo atual para sua pessoa, mas é "B" quem mantém conjunção carnal com "C" ou que subtrai a carteira de "D", serão ambos, "A" e "B", co-autores dos delitos de estupro e roubo, pois a violência e a ameaça são, respectivamente, elementares dos crimes citados, assim como o são a própria relação sexual e a subtração patrimonial. Já se "A" permanece em vigilância e "B" emprega violência e subtrai o bem alheio, o primeiro não é co-autor, por não ser a vigilância ato de execução do roubo; haverá, pois, participação ou, mais especificamente, cumplicidade, vez que "A" não realizou um ato principal. Dessarte, os atos do co-autor não são uma forma de participação acessória na conduta do outro, senão ação própria, independente.
A participação, para Liszt, corresponde ao fato de tomar parte no ato de execução iniciado ou terminado por outro [04]; o partícipe não realiza o ato principal, mas seus atos a ele acedem. Liszt referia duas modalidades de participação, a saber, a instigação (determinação dolosa de outrem a um ato doloso punível) e a cumplicidade (auxílio doloso prestado a outrem em infração penal intencionalmente praticada por esse último) [05]. Daí a máxima segundo a qual somente a instigação ou a cumplicidade dolosas para um ato doloso são participação no sentido jurídico-penal [06], traduzindo a inadmissibilidade da participação dolosa em ato culposo ou da participação culposa em ato doloso. Vê-se, pois, que a máxima em comento é mera derivação das noções originais de participação acessória.
O pensamento de von Liszt, que sedimentou as elucubrações até então cogitadas, espraiou-se pela doutrina universal, chegando aos dias de hoje; a teoria respectiva ¾ teoria objetivo-formal da autoria ¾ alçou, em meio aos doutos, foros de hegemonia [07]. Daí a referência freqüente, na doutrina pátria, às teorias sobre a autoria ¾ uma restritiva, pela qual autor é quem realiza a conduta tipicamente descrita, e outra extensiva, pela qual autor é quem dá causa ao evento, determinando, por seu comportamento, uma modificação no mundo exterior (não o seria apenas aquele que realiza a conduta tipicamente descrita, mas também aquele que, de qualquer modo, contribui para a produção do resultado) ¾ e ao acolhimento, pela legislação vigente, da teoria restritiva; com efeito, o artigo 29 do Código Penal brasileiro, em seu "caput" e parágrafos, distinguiu nitidamente as figuras do autor e do partícipe [08]. Assim, "na co-autoria, os vários agentes realizam a conduta descrita pela figura típica. Na participação, os agentes não cometem o comportamento positivo ou negativo descrito pelo preceito primário da norma penal incriminadora, mas concorrem, de qualquer modo, para a realização do delito" [09].
O Código Penal brasileiro acatou, ainda, a teoria monista da co-delinqüência, reconhecendo, a despeito da pluralidade de condutas, um único delito, sem prejuízo do caráter acessório da participação [10], que acede à conduta principal (autoria); nesse sentido, os artigos 26, 27, 45 e 48 da Parte Geral de 1940 e, com o advento da Lei 7.209/84, o artigo 29, que emprega a expressão "crime" no singular, em clara alusão à unidade do fato típico em relação a todos os concorrentes. Pontifica a doutrina, portanto, serem os seguintes os requisitos para a configuração do concurso de agentes: (1) pluralidade de condutas; (2) identidade de infração para todos os participantes; (3) relevância causal de cada conduta; (4) liame intersubjetivo de natureza volitivo-cognitiva, orientado para o resultado danoso (nos contextos dolosos, que são a regra), ou de natureza normativa (nos contextos culposos, de formulação praticamente acadêmica; e.g., "suponha-se o caso de dois pedreiros que, numa construção, tomam uma trave e a atiram à rua, alcançando um transeunte. (...) Para ambos houve vontade atuante e ausência de previsão" [11]).
A participação, estribada no artigo 29 do Código Penal brasileiro, é uma modalidade de adequação típica de subordinação mediata por extensão espacial e pessoal, uma vez que, "com o auxílio do art. 29, há ampliação espacial e pessoal da figura típica, abrangendo ela não somente os fatos definidos no preceito primário da norma, mas também aqueles que, de qualquer modo, concorrem para a realização do crime" [12]. Diz-se, entre nós, da adoção da teoria da acessoriedade limitada, com respeito à natureza da participação. Listam-se quatro teorias, a saber, teoria da acessoriedade mínima (basta, para a participação, que a conduta do partícipe aceda a um comportamento principal que constitua fato típico), teoria da acessoriedade limitada (a conduta principal à qual acede a ação do partícipe deve ser típica e antijurídica), teoria da acessoriedade extrema (o comportamento principal, ao qual acede a conduta do partícipe, deve ser típico, antijurídico e culpável) e teoria da hiperacessoriedade (devem concorrer, em relação ao partícipe, as mesmas circunstâncias de agravação e atenuação que existem em relação ao autor principal). A opção pela acessoriedade limitada encontra-se no magistério de Hans Welzel [13], patriarca da teoria finalista da ação, para quem o fundamento da punibilidade da participação, no âmbito interno da acessoriedade, está em provocar ou favorecer a prática de uma ação típica e antijurídica, e no âmbito externo, em ter ao menos iniciado sua execução; encontra-se, ainda, na grande maioria dos autores contemporâneos [14].
2. Participação (2): modalidades. A figura do ajuste
Também quanto às modalidades de participação, a despeito da evolução doutrinária, seguem-se ainda os passos de Liszt, aprimorando-se-lhe a terminologia.
Distingue-se entre participação moral e participação material: na primeira, o partícipe incute na mente do autor principal o propósito criminoso (determinação ou induzimento), ou reforça o desiderato preexistente (instigação); na segunda, o partícipe insinua-se no processo de causalidade física, auxiliando materialmente o autor principal (auxílio).
Francesco Carrara [15] traz minudência à terminologia, distinguindo ainda outras modalidades de participação moral: o mandato (acomete-se a perpetração da infração penal a outrem, em proveito e utilidade do partícipe), o conselho (acomete-se a perpetração da infração penal a outrem, em proveito e utilidade de quem a executará), a ordem (mandato imposto pelo superior hierárquico ao seu subordinado, com abuso de autoridade [16]), a coação (mandato imposto por meio de ameaça de grave mal) e a sociedade (pacto entre várias pessoas para a perpetração da infração penal, em utilidade e proveito comuns e privativos dos associados), também dita ajuste.
O artigo 31 do Código Penal brasileiro alude, incidentalmente, a essa última modalidade de participação, que aqui merecerá tratamento apartado por predispor o texto à introdução coerente do tema seguinte.
O ajuste, ali referido textualmente, é definido como o acordo que entre si fazem dois ou mais indivíduos para praticarem a ação criminosa, pressupondo em todos uma resolução determinada e consubstanciado na promessa de ajuda material e/ou moral ao executor após o delito [17]. Em face da teoria acolhida pelo direito positivo brasileiro (monista), o partícipe, nesse caso, poderá ser condenado à mesma pena impingida ao executor; nada obstante, à luz dos conceitos clássicos de von Liszt, terá sido partícipe e não co-autor [18], ainda que a cogitação do delito e a iniciativa de procurar e contratar o executor tenham sido exclusivamente sua (como, e.g., no homicídio mercenário), o que arrefece inegavelmente, do ponto de vista jusfilosófico e sociológico, a carga de desvalor que informa a sua conduta [19]: não terá ele praticado o ato principal, mas apenas concorrido para sua realização, porquanto o ato de execução foi realizado pelo agente contratado. Nada obstante, não fosse a iniciativa do partícipe em firmar o ajuste com terceiro, a lesão ao bem jurídico jamais se teria verificado, o que demonstra que, em circunstâncias tais, o aspecto psicológico prepondera sobre o aspecto causal, no que diz respeito à configuração semântica da atividade de cada qual, i.e., ao seu significado contextual.
Partindo dessa observação (com inglório registro na história recente alemã, sob os auspícios do nacional-socialismo hitlerista, em que agentes políticos e militares comandavam o extermínio de pessoas sob suas ordens hierárquicas, exercendo o domínio da organização e dirigindo o curso dos fatos, em toda a sua extensão, sem praticar qualquer ato executório, o que lhes carreou a alcunha de "assassinos de escrivaninha" [20]), como de outras similares, a doutrina germânica contemporânea reformulou as teorias de concurso de agentes, concebendo diversas construções alternativas, dentre as quais se celebrizou a teoria do domínio do fato, sobre a qual passamos a discorrer [21].
3. A teoria do domínio do fato
A noção de domínio do fato é contemporânea ao finalismo de Hans Welzel (1939), que propugnava ser autor, nos crimes dolosos, aquele que detém o controle final do fato.
Superando as teorias puramente objetivas (objetivo-formal, pela qual é autor aquele cujo comportamento amolda-se ao círculo abrangido pela descrição típica, e objetivo-material, que privilegia a maior perigosidade que caracteriza a contribuição do autor) e a teoria subjetiva (aliada ao conceito extensivo de autor, que não distingue objetivamente autoria de participação; a diferença estaria em que o autor quer o fato como próprio, agindo com "animus auctoris", enquanto que o partícipe quer o fato como alheio, agindo com "animus socii"), a teoria do domínio do fato parte do conceito restritivo de autor para sintetizar os aspectos objetivos e subjetivos da conduta, tal qual teoria eclética, de ordem objetivo-subjetiva [22]. Antes de Claus Roxin, porém, não havia propriamente uma teoria, senão um cipoal de postulados de conteúdos amiúde contraditórios e raquíticos [23], que seriam sistematizados pelo catedrático de Munique e condensados em quatro critérios: domínio da ação (para casos de autoria direta e infrações penais de mão própria [24]), domínio de volição e cognição (para casos de autoria mediata como, respectivamente, coação e erro; aglutinadamente, diz-se domínio de vontade) e domínio funcional (para a co-autoria em geral).
O domínio do fato pressupõe, em suma, o controle final do ponto de vista subjetivo, mas não lhe basta a finalidade, própria de toda ação propriamente humana (Nikolai Hartmann); é necessário, ainda, que a posição objetiva do sujeito determine o efetivo domínio das circunstâncias. Desse modo, autor não é apenas aquele que executa o ato principal de Liszt (conduta típica), mas também aquele que se utiliza de outrem, como instrumento, para a execução da infração penal (autoria mediata), ou aquele que controla o curso dos fatos mediante planificação e gestões intelectuais (autoria intelectual), como no caso, já mencionado, dos "assassinos de escrivaninha". A importância material de cada interveniente no contexto fático não se resume à realização dos atos preparatórios ou executórios, abrangendo outros aspectos igualmente relevantes, como o planejamento, a determinação, a organização e a funcionalidade. Daí seus principais consectários:
(1) a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamentam, sempre, a autoria (domínio da ação);
(2) também é autor quem executa o fato empregando outrem como instrumento (autoria mediata ¾ domínio de volição e/ou de cognição);
(3) é autor, enfim, aquele que realiza uma parte necessária do plano global, desde que o faça predisposto à resolução delitiva comum, e ainda quando não descrita a sua conduta no preceito penal primário (co-autoria ¾ domínio funcional).
No escólio de Claus Roxin, o domínio do fatopode ser escalonado em graus, conforme a natureza e a intensidade da dominação (adiante, citar-se-ão exemplos de dominação de primeiro, segundo, terceiro e quarto graus). Fala-se em domínio da ação na determinação da autoria de quem realiza a conduta tipicamente descrita pessoalmente, dolosamente e sem estar sob coação; recusa ainda, nesse particular, relevância à subordinação da vontade como critério de aferição da modalidade concursual (i.e., reconhecimento da participação quando a vontade do agente está subordinada à de outrem, ou da autoria quando a vontade do agente atua com supremacia): assim é que, "verbi gratia", o indivíduo que, sob estado de necessidade, vê-se compelido à realização da conduta típica, não por coerção humana mas pela premência das circunstâncias objetivas, não deixa de ser, apenas por isso, autor da conduta, que é obra sua (ainda que lhe tenha sido arrancada por compulsão factual, com elisão da antijuridicidade da conduta). A análise não há de ser distinta em se tratando de compulsão pessoal, proveniente de terceiro coator: se o executor não detém o domínio da vontade, detém o domínio da ação, sendo ambas manifestações do domínio do fato que, em concorrendo, determinam a prelação do domínio da ação, que sobrepuja o domínio da vontade [25]. Daí se reconhecer, no agente coator, a figura do autor mediato; nada obstante, também o coagido é autor (imediato), conquanto inculpável (entre nós, artigo 22, 1ª parte, do Código Penal ¾ causa legal de exculpação, por elidir a exigibilidade de conduta diversa [26]), não se justificando atribua-se-lhe a condição de partícipe, como pretendera Hans Welzel. A hipótese abarca, ainda, todas as modalidades de infrações penais de mão própria.
O chamado domínio de vontade alcança todas as hipóteses conhecidas de autoria mediata:
(a) Domínio de vontade em virtude de coação. Atribui-se ao agente coator o domínio da vontade, pelo princípio da responsabilidade [27], quando o legislador exime o executor, em virtude da coerção exercida, da responsabilidade penal pelos atos típicos praticados.
(b) Domínio da vontade em virtude de erro ou domínio do conhecimento. O executor, incorrendo em erro, atuará conforme uma das seguintes contextualizações [28]: realização de conduta isenta de dolo ou culpabilidade [29]; realização do tipo com culpa inconsciente; realização do tipo com culpa consciente; realização dolosa do tipo, sem consciência da antijuridicidade [30]; realização dolosa do tipo, com convicção errônea de coexistência de causa dirimente de culpabilidade; realização intencional, sob erro, de determinada conduta, que todavia é atípica ou lícita; realização típica, antijurídica e culpável da conduta, a despeito do erro [31].
(c) Domínio da vontade no emprego de menores e inimputáveis em geral [32]. A esse respeito, a doutrina vem distinguindo, no pólo ativo da execução, entre a inimputabilidade e a imputabilidade diminuída [33]; entre crianças e adolescentes [34]; entre autolesão e lesão a outrem [35].
(d) Domínio da vontade em virtude de mecanismos de poder organizados. Dá-se nas hipóteses relacionadas com o crime organizado, com os crimes societários ou, genericamente, com instituições fortemente hierarquizadas [36]. A idéia deve-se à extensa casuística, recolhida na Alemanha do pós-guerra, em que se constatou a disponibilidade, ao agente remoto, de aparatos de controle pessoais, organizados institucionalmente, com cujo auxílio o mandante estava apto a perpetrar ilícitos penais sem condicioná-los à decisão autônoma do executor. O dado diferencial dessa figura está na fungibilidade do executor, uma vez que a hesitação de um dos órgãos de execução no cumprimento da ordem superior não prejudica, em absoluto, o plano global (como ocorreria, p. ex., no domínio em virtude de erro ou coação): outro órgão de cooperação, integrado à estrutura organizacional, tende a suprir-lhe a falta, automática e imediatamente [37]. Assim, a recusa de um executor não tem o condão de impedir o resultado desvalido, pois há sempre um "executor de reserva".
Em suma: o domínio de vontade do agente remoto baseia-se, em contextos de coação, no controle da formação de vontade do executor e, em contextos de erro, na capacidade de dirigir o evento em virtude da supradeterminação configuradora de sentido [38]; já nas estruturas de poder organizadas, os conceitos ortodoxos de autoria mediata e participação não têm guarida, recorrendo-se a um conceito aberto de domínio do fato [39], adequado aos escopos de política criminal: embora não falte ao executor nem a liberdade e tampouco a responsabilidade penal (trata-se, pois, de autor culpável), ainda assim o agente remoto assume o papel de autor mediato, porquanto o agente próximo não se apresenta, no contexto organizacional, como individualidade livre e responsável, mas como figura anônima e substituível [40].
O domínio do fato funcional, enfim, diz respeito ao elenco de hipóteses jungidas à zona periférica das regiões até aqui exploradas (domínio da ação ¾ conduta exterior ¾ e domínio da vontade ¾ predisposição psíquica), alcançando o espectro de atividades delitivas nas quais o agente não detém uma ou outra classe de domínio e, não obstante, deve ser considerado autor da infração penal [41]; distinguem-se, nesse ínterim, a cooperação em fase executiva e a cooperação em fase de preparação.
Na primeira espécie (cooperação em fase executiva), cada agente pode, separadamente, comprometer o plano comum, desde que retire, na fase executiva do delito, seu aporte causal; por outro lado, só podem realizar o plano comum atuando conjuntamente. A co-autoria identifica-se, pois, pela "posição-chave" de cada interveniente, que confere a cada qual o domínio do fato. Essa posição evoca noções de divisão de trabalho, caras também à teoria da imputação objetiva (mormente na leitura de Günther Jakobs): atendendo à divisão de papéis mais apropriada à consecução do fim proposto, haverá co-autoria ainda quando uma dada contribuição não ingresse formalmente no marco da ação típica, desde que se trate de uma parte necessária da execução do plano global, consoante os ajustes comuns de divisão de trabalho [42]. Assim, e.g., se "A" não imobilizar os funcionários do banco, esses investirão contra "B" e impedirão o acesso ao cofre; da mesma forma, se "B" não subjugar o funcionário responsável pela abertura do cofre e não providenciar o transporte do numerário subtraído, os esforços de "A" serão inúteis, já que não pode, a um tempo, manter rendidos os demais funcionários e transportar o enorme volume de cédulas. Da mesma forma, a ação de "C", que interfere nos sistemas de comunicação e segurança da agência para evitar o alarme silencioso acionado pela abertura extemporânea do cofre, é fundamental para a execução do plano global, ainda que sua conduta não esteja descrita no tipo penal respectivo (não está, com efeito, empregando violência ou ameaça, e tampouco está subtraindo; nada obstante, é co-autor). O co-autor tem consigo mais que o domínio sobre sua porção do fato, porque o dirige, em sua integralidade, conjuntamente com os demais [43]. O mesmo não ocorre com o partícipe, uma vez que seu aporte causal não é imprescindível ao êxito do plano comum (ações secundárias, como a monitoração das rotinas do estabelecimento bancário ou o municiamento prévio das armas). Nesse contexto, a subordinação interna de um co-autor aos desígnios de outro, no sentido da teoria do dolo, é absolutamente irrelevante; interessa, tão-somente, a cooperação essencial na fase executiva.
Já na segunda espécie (fase dos atos preparatórios, logicamente anteriores aos atos de execução), a equação é ligeiramente diversa. No centro do evento tipicamente relevante, encontram-se os atos de execução; portanto, a figura central do evento ¾ o autor ¾ não pode ser alguém que não tenha tomado parte na realização daqueles atos, atendo-se à criação de condições prévias para o ilícito; tampouco é razoável afirmar esteja aquele que apenas cooperou na preparação do delito dominando o curso dos eventos. Na ilustração de Bockelmann, é partícipe o bancário que subministra ao ladrão profissional dados sobre as datas em que o cofre está repleto e os horários de ronda do vigilante, estando, a partir de então, eliminado do contexto; o que irá ocorrer e como se haverá de executar a subtração deve deixar a critério do ladrão, sob pena de se agregar ao plano global como "posição-chave" e assumir a condição de co-autor [44].
Hans-Heinrich Jescheck [45] analisa que os preceitos penais primários da Parte Especial do StGB [46] ¾ assim como, de regra, dos códigos penais em geral ¾ descrevem geralmente condutas de uma só pessoa (exceto nas chamadas infrações penais de concurso necessário, como é o crime de quadrilha ou bando do artigo 288 do Código Penal brasileiro, e nos crimes bilaterais, como a bigamia e o adultério ¾ artigos 235 e 240), sendo o autor o anônimo "quem" ("wer") encontradiço no começo da maioria das descrições delitivas. E sendo o autor o sujeito que realiza, por si mesmo, todos os elementos típicos da ação punível, convém reconhecer que a teoria da autoria e da participação constitui uma parte da teoria do tipo penal; essa é, com efeito, a tese dominante (Hans Welzel, Johannes Wessels, Hermann Blei, Peter Cramer, Rolf-Dietrich Herzberg). Nada obstante, o conceito de autoria não se limita ao autor individual que realiza a conduta típica por si mesmo; abrange, ainda, aquele que realiza o delito por intermédio de outrem (autoria mediata ¾ § 25, 1, do StGB), todos os que colaboram como autores em um mesmo fato (co-autoria ¾ § 25, 2) e todos os que intervém em um mesmo fato como autores, embora com recíproca independência (autoria paralela, gênero abrangente da autoria incerta e da autoria colateral [47]). Já o indutor, que determina dolosamente a realização dolosa do fato típico pelo terceiro (participação moral "lato sensu"), assim como o cúmplice, que dolosamente presta auxílio a outrem no fato típico doloso de sua realização (participação material), não atendem à descrição típica, sendo contemplados por preceitos penais específicos (respectivamente, no StGB, §§ 26 e 27).
Jescheck pondera ainda, com todo acerto, que a classificação das manifestações de intervenção na ação punível não é algo que esteja sujeito ao livre talante do legislador ou do juiz; trata-se, ao contrário, da descrição de processos vitais que, providos de sentido social próprio, encontram-se completamente determinados para o juízo jurídico. Dessarte, conceitos como autoria, autoria mediata, co-autoria e participação aparecem cunhados de antemão pela natureza das coisas, devendo ser intuídos pelo operador jurídico de molde a conservar, na leitura legal ou judicial, um conteúdo que corresponda à sua compreensão natural. Nesse diapasão, sobressai a excelência da teoria do domínio do fato, que atende melhor ao sentido social dos processos vitais de cooperação ao privilegiar a configuração material das relações sociais, em detrimento do tecnicismo formal da teoria de von Liszt ou da precariedade das teorias subjetivas; assim, quem executa pessoalmente uma pessoa é autor do assassinato e não cúmplice, ainda que atue por determinação de um serviço secreto estrangeiro. Compreender diversamente ¾ como fez o Supremo Tribunal Federal alemão no caso Staschynskij, com espeque na teoria subjetiva ¾ é vilipendiar o sentido social da conduta, negando a ordem lógica dos processos vitais envolvidos [48].
De um modo geral, a realização pessoal e plenamente responsável de todos os elementos do tipo fundamenta, sempre, a autoria; entretanto, a teoria formal-objetiva tende a engessar o processo cognitivo do intérprete por circunscrevê-lo à literalidade da lei, enquanto que as teorias subjetivas relegam o arbítrio judicial ao sabor das circunstâncias e ideologias, com prejuízo à segurança jurídica. A interpretação mais adequada dos tipos penais revela que, no concurso de agentes, a descrição da ação penal típica deve ser entendida de um modo material que flexibilize o seu sentido literal. Daí concluir-se que o tipo penal, sob certas condições, pode ser realizado também por quem, posto não execute uma ação típica em sentido formal, possui o domínio do fato ou o compartilha com outrem [49]; confiram-se, a propósito, os exemplos de ajuste).
A teoria do domínio do fato está circunscrita ao âmbito das infrações penais dolosas, eis que os ilícitos culposos caracterizam-se, justamente, pela perda do domínio factual; daí porque a construção alemã tende a manejar dois conceitos distintos de autor, a saber, um restritivo para as infrações penais dolosas (desafiando os postulados da teoria do domínio do fato) e outro, mais amplo e unitário, para as infrações penais culposas, em que não se admite a teoria do domínio do fato, não se concebe o concurso de agentes e não se distingue autoria de participação. Essa cisão compromete a coerência ínsita à teoria do concurso de agentes, pelo que não atende, em nossa concepção, ao desiderato de unidade científica do Direito Penal, alvitrado desde os escritos de Liszt [50]; nessa medida, parece-nos que a teoria do domínio do fato, se por um lado engenhosa e operacional, opõe-se por outro à tendência universal de simplificação e unificação teorética, de que a teoria da imputação objetiva é a manifestação mais convincente e atual. Demanda, por isso, reformulação e elastecimento, talvez para reconhecer, nos ilícitos penais culposos, o domínio factual da ação corrente sem o elemento teleológico preordenado ao resultado lesivo (discrepando, desse modo, as violações do dever objetivo de cuidado, com a conseqüente imputação objetivo-subjetiva da conduta ao tipo penal culposo, das hipóteses em que o agente não deteve qualquer domínio da ação corrente ¾ caso fortuito e/ou força maior) [51].
Vê-se, pois, que o domínio do fato é um conceito aberto, como alhures pontificado. Dele não se espera, por isso, a mesma consistência cartesiana da teoria formal-objetiva, de von Liszt. Com efeito, a expressão "domínio do fato" não admite uma definição conceitual exata em sentido técnico, indicativa do "genus proximum" (conceito genérico superior) e da "differentia specifica" (diferença caracterizadora da espécie). Antes, remete a uma construção descritiva, baseada em elencos contextuais não-exaustivos. A construção descritiva é privilegiada por Roxin, por ser "sensiblemente más próxima a la vida que una meramente abstrata" [52]. Doutra feita, se por um lado a descrição delimita com precisão diversos casos típicos de intervenção de agentes múltiplos em uma mesma ação delitiva (permitindo, assim, a formulação de juízos genéricos), por outro não oferece uma solução generalizadora, cabendo-lhe, como conceito aberto, a função de subministrar ao julgador princípios reguladores que o orientem, por indução, no vácuo dos modelos de conduta. Eis, pois, os dois elementos do conceito aberto, na preleção de Claus Roxin: o procedimento descritivo e os princípios reguladores informativos.