Antes de a referida lei ser sancionada, muito se questionava sobre a necessidade de um tipo penal intermediário entre o crime de estupro – que desde 2009 passou a tipificar a conjunção carnal e a prática de outros atos libidinosos, quando exercida mediante as elementares “violência” ou “grave ameaça” – e as condutas praticadas dentro do contexto sexual, mas sem a violência ou a grave ameaça.
Ressalta-se que, até o advento da Lei 13.718/18, existia a figura da contravenção penal “Importunação ofensiva ao pudor”, que tinha previsão expressa no art. 61 da Lei de Contravenções Penais e que agora deixou de existir, pois fora revogada pela Lei em comento.
A antiga redação do art. 61 dizia:
Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor:
(Revogado pela Lei nº 13.718, de 2018)
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
A Lei de 2009 (12.015/09) extirpou o crime de atentado violento ao pudor fazendo com que o crime de estupro fosse tipificado tanto pela conjunção carnal quanto pela prática de outros atos libidinosos (quando exercida mediante violência ou grave ameaça, conforme já dissemos).
No anseio de atender os clamores populares para uma maior punição em condutas descritas como uma afronta à dignidade sexual, o legislador criou a figura do crime, agora tipificado no art. 215-A do Código Penal, de importunação sexual. Dessa forma, o referido artigo passou a ter a seguinte redação:
Importunação sexual (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Com a criação no novo tipo penal, muitos comemoraram o “surgimento” do crime, porém, será que tal criação foi benéfica para a sociedade como aparentemente se apresenta?
Pela redação do crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal, tanto a conjunção carnal quanto a prática de outros atos libidinosos (dentro daquilo que já elencamos) caracteriza o crime em comento e, raramente, era a conduta do agente desclassificada para a contravenção penal, ainda que tudo levasse para tal.
Pois bem, agora, com o novo tipo penal, muitas condutas que seriam (e eram) tipificadas como estupro serão, com toda certeza, tipificadas como importunação sexual, pois criou-se um tipo específico para as condutas no artigo descrito, restringindo, assim, a aplicação da sanção penal da conduta nos exatos termos do artigo, pois, se de outra forma for, estaremos diante de uma afronta ao princípio da legalidade.
Corroborando o que aqui estamos expondo, em recente decisão no STJ, a Ministra Laurita Vaz, desclassificou o crime de estupro para o de importunação sexual, por este ser mais brando, conforme podemos observar abaixo:
“não obstante a correção da decisão agravada, nesse ínterim, sobreveio a publicação da Lei n.º 13.718, de 24 de setembro 2018, no DJU de 25/09/2018, que, entre outras inovações, tipificou o crime de importunação sexual, punindo-o de forma mais branda do que o estupro, na forma de praticar ato libidinoso”.
Ainda, de acordo com a ministra, o “crime mais grave” seria o do próprio art. 213 do Código Penal, que prevê a elementar da violência ou grave ameaça.
“No caso dos autos, pela descrição da conduta apurada pelas instâncias ordinárias, não houve violência ou grave ameaça (…) o que se subsume à conduta descrita na novel legislação, mais branda e, portanto, de aplicabilidade retroativa.” (AgRg no REsp 1.730.341)
Abrindo parênteses no presente esboço, tipificar uma conduta como crime é, legalmente, estabelecer de forma taxativa a sua previsão para qualquer sanção penal. Por isso, discussões para tipificar certos crimes “que ainda não existem” devem ser muito bem difundidas, sob pena de restringir o campo de aplicação jurídica sobre tal fato.
Como pudemos observar, no crime importunação sexual é de suma importância para que ele se tipifique (de forma consumada ou tentada) que o ato libidinoso seja praticado com o fim específico de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.
A grande questão a ser discutida, na verdade, são duas: ato libidinoso e lascívia.
Em apertada síntese, podemos estabelecer que ato libidinoso é aquele capaz de saciar a lascívia (que a grosso termo podemos taxar como o desejo sexual do indivíduo pelo e com o ato praticado), porém, o que pode ser considerado um ato libidinoso para A pode não o ser para B.
Uma passada de mãos no cabelo de alguém pode ser considerado excitante para algumas pessoas, mas para outras não. Um toque nos pés, também. Assim, em cada caso concreto deve se apurar o real impacto lascivo para cada indivíduo, pois generalizar um ato como sendo libidinoso para todos é temeroso.
Posto que o ato libidinoso pode ser relativo, passemos, agora, a discutir a questão da lascívia, que foi, expressamente, inserida no novel crime e que merece muita atenção, pois reflete de forma direta em outras tipicidades penais de cunho sexual e aqui vamos nos restringir, sem querer esgotar o tema, ao crime de estupro.
Sabemos que a lei penal é taxativa, ou seja, não existe analogia in mallam partem, porém, com a criação do novo tipo penal, indaga-se: o crime de estupro, com o advento da Lei 13.718/18, deixou de ter a satisfação da lascívia como fim específico para sua tipificação?
Ora, se o legislador fez questão de deixar expressamente positivado a satisfação da lascívia para que o crime de importunação sexual fosse (seja) tipificado, pois sem ela não ocorrerá o crime e, muito menos, nem a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor que foi revogada, como fica a questão do estupro para o qual, até os dias atuais, de forma pacífica pela doutrina e jurisprudência, a satisfação da lascívia era conditio sine qua non para o crime, ainda que não de forma expressa?
Se houve uma lei para estabelecer, de forma taxativa, que o fim específico para a tipificação do crime de importunação sexual deve, necessariamente, satisfazer a lascívia do agente ou de terceiros, como interpretar a redação do crime de estupro perante a nova tipicidade penal do art. 215-A a partir de agora?
Muitos podem questionar se existe caso de estupro sem que o indivíduo (homem ou mulher) esteja excitado para praticar o ato. A resposta é bem simples e não demanda maiores esforços: claro que pode! Imaginemos uma mulher que, com uma arma de fogo em mãos, obriga o homem a ter conjunção carnal com ela (sobre grave ameaça de levar um tiro se assim não o fizer) para que tente engravidar.
Ela estava excitada? Em tese não, pois o objetivo (fim específico) dela era engravidar e não saciar a sua lascívia. Sobre a vítima, homem neste caso, se conseguiria praticar o ato ou não, é uma outra questão que não está em discussão aqui. Neste caso a conduta a ser tipificada seria o crime de estupro (consumado ou tentado)?
Outro exemplo em que figura o homem como sujeito passivo do crime é o caso de priapismo, que é uma ereção involuntária e persistente e que pode ocorrer, entre outras causas, devido à ingestão de certos antidepressivos ou fármacos. Uma mulher pode perfeitamente obrigar (mediante violência ou grave ameaça) um homem a ingerir um medicamento capaz de provocar uma ereção involuntária e, assim, manter relações com ele com diversas finalidades.
Outra situação que merece atenção é a hipótese de o indivíduo, por vingança, sequestrar e manter em cárcere a esposa de seu desafeto e penetrar, por exemplo, um sabugo de milho na cavidade vaginal ou anal da vítima. Haveria estupro, já que não houve qualquer satisfação da lascívia por parte do criminoso?
São questões relevantes que devem ser muito bem discutidas, pois, com a taxatividade da lascívia presente no novo instituto, passou-se a ser interpretativo – e a interpretação deve ser sempre a favor do réu – se a lascívia no crime de estupro permanece como elemento subjetivo do injusto de forma tácita.
A Lei 13.718/18 fez importantes alterações no Código Penal, porém, a nosso ver, deixou uma lacuna importante para que novas e importantes discussões sejam feitas em relação ao fim específico de se atingir (ou não) a lascívia do indivíduo.