8. DO ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICADO DO ESTADO
O assunto "Enriquecimento Injusto do Estado" não poderia deixar de ser abordado diante da situação do pagamento insuficiente da verba de natureza indenizatória aos oficiais de Justiça. Diante, da atualidade do tema, enveredamos por este espinhoso caminho.
É límpido e cristalino que ao Estado do Rio Grande do Sul incumbe, de maneira exclusiva, a prestação jurisdicional de forma integral e gratuita. Senão vejamos:
Art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal expressa: " O estado prestará assistência judiciária de forma integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos"
A obrigação tem fulcro no plano Constitucional, onde consta que, incumbe ao Estado, a prestação jurisdicional de forma INTEGRAL aos carentes.
Embora pareça por demais óbvio, não podemos deixar de observar que ali naquele dispositivo constitucional, bem como, em quaisquer outros infraconstitucionais, não há a disposição que o ônus da Prestação Jurisdicional seja compartilhado com o funcionário público. É claro, pois, que, do regramento constitucional citado não advêm nenhuma obrigação do oficial de justiça de colaborar na prestação jurisdicional, mediante custeio de valores da atividade judicial.
Neste sentido, colacionamos, elucidativa doutrina de LUIS CLAUDIO DE JESUS E SILVA, que assim discorre:
" Não pode o oficial de justiça arcar com tal ônus, se assim o fazer estará reduzindo o "quantum’ destinado a sua subsistência e de sua família. Portanto, cabe ao Poder Público fornecer todos os meios necessários ao cumprimento do serviço público a ser executado"(ob cit., pág.43).(Grifo nosso).
No arcabouço jurídico vigente (inclusive à nível de administração da justiça), por óbvio, inexiste qualquer dispositivo que obrigue ao funcionário público a financiar o custo da atividade jurisdicional. Ao contrário, no sistema jurídico vigente, encontramos em vários pontos de nossas normas legais a preocupação do legislador a preservar o servidor da situação de arcar com gastos antecipados no exercício de sua atividade, o que importaria em verdadeiro "financiamento da atividade estatal", coisa que não seria lícito lhe exigir.
A nível Administrativo, exemplificativamente, podemos citar o Regimento de Custas vigente, onde consta que as custas serão antecipadas. Já o artigo 502 da Consolidação Normativa Judicial da CGJ do Poder Judiciário do RGS, expressa que não haverá a emissão de Mandado pelo cartório enquanto não houver o recolhimento da despesa de condução. No mesmo sentido, temos o provimento n.15/2003. Até mesmo a fazenda pública Municipal e federal não esta dispensada do prévio recolhimento da condução. Em diversos pontos da lei 8.951/85, que dispõe sobre o recolhimento da taxa judiciária, observa-se a previsão do recolhimento antecipado das custas. De sorte que, há em nosso meio Judicial, todo um sustentáculo legal, no sentido de fornecimento dos meios –fornecimento de despesas de condução – para o Oficial de Justiça proceder as diligências no cumprimento de Mandados.(vide ainda o parágrafo 2º do artigo 8º da Lei 8.121/85; a tabela de custas anexa a Lei 78.951, obs. 01 e letra "M").
O assunto tem acatamento nos diversos Tribunais Pátrios. Senão vejamos:
"O Oficial de Justiça não tem o dever de financiar a atividade jurisdicional".(AI n.292317-SP, rel. Min. Francielli Neto, DJ de 21/11/2000).
"Não há, portanto, em nossa legislação qualquer dispositivo que obrigue o Meirinho a financiar despesas para prática de atos processuais"(AI, n.292319-SP, Rel. Min. Luiz pereira, DJ de 28.06.2000).
"...O Oficial de Justiça não está obrigado a arcar, em favor da fazenda pública, também compreendido suas autarquias, com as despesas necessárias a execução dos atos judiciais"(STJ, 1A. Seção: RSTJ 71/43).
"Na execução fiscal procedida perante a justiça estadual, cumpre a fazenda pública antecipar o numerário destinado ao custeio com as despesas de transporte dos Oficiais de Justiça"(Súmula 190 do STJ).
Conforme visto, a nível de Judiciário
Estadual, o ressarcimento das despesas de condução(de diligências) para o cumprimento de Mandados nos feitos abarcados com a assistência judiciária gratuita ou nas hipóteses legais de isenção ou dispensa de preparo prévio, o ressarcimento da Condução do Oficial de Justiça se dá através do previsto na lei que rege o "auxilio condução’.
É fato inquestionável que o valor do auxilio condução atualmente pago se tornou insuficiente para cobrir com a integralidade das despesas de locomoção do Oficial no cumprimento de Mandados, mediante a utilização de veículo não Oficial(fornecido pelo Poder Público).
Aqui aflora o primeiro questionamento: Importaria em Enriquecimento injusto do Estado a indenização parcial da locomoção ao oficial de Justiça?
De plano, cumpre observar que inexiste na legislação, quer à nível constitucional ou quer a nível administrativo, qualquer obrigação do funcionário público arcar com qualquer gasto com a prestação judiciária. Deve o Estado, enquanto Poder, fornecer os meios integrais ao oficial de justiça parta cumprimento de suas diligências.
Por outro lado,é princípio universal de direito, inscrito na declaração Universal dos Direitos do Homem(Art.XXIII), que ninguém pode se locupletar à custa do trabalho de outrem. Implicitamente, tal princípio restou recepcionado pela Constituição de 1988, entre os "Direitos e garantias individuais"(Art.5º, parágrafo 2º) e, no código civil no artigo 88.(Destaque Nosso).
A Carta Magna de 1988, também adotou o macro-princípio da "Dignidade da Pessoa Humana", o qual restaria ferido de morte se o serventuário houvesse de financiar a própria atividade estatal.
Ademais, as relações de trabalho estabelecidas com o Poder Público, não o exonera da obrigação de indenizar insculpida no parágrafo 6º, do artigo 37 da CF de 1988.
Doutra banda, o Enriquecimento sem causa é instituto com acolhida no capítulo IV do novo Código Civil, estabelecendo o artigo 884 o seguinte:
" Artigo 884- Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários".
Neste sentido, vide a Apel. Cível n.700003233533, da 3a. Câmara Cível do TJRS, j. em 6.12.2001(Grifo Nosso):
"(...) Incidência da normatividade, seja pela comprovação do trabalho desenvolvido, como pela vedação ao enriquecimento sem causa. Sentença de Improcedência. APÉLO PROVIDO"
" As alegações de supostas irregularidades na contratação do serviço e na ausência de empenho não isentam o ente público do dever de pagar o valor ajustado, uma vez que prestado o serviço. Não pode o contratante ser penalizado pelo fato de não ter o administrador observado os princípios que regem os Contratos Administrativos e as cautelas estatuídas na Lei n.8.663/93, tendo, portanto, direito ao pagamento pelos serviços prestados a Municipalidade, sob pena de enriquecimento sem causa da Administração Pública.
". ..comprovada a prestação dos serviços, possíveis irregularidades não tem o condão de permitir que o ente público enriqueça ilicitamente frente ao prejuízo do particular, simplesmente porque não observou o princípio da legalidade administrativa. APELO IMPROVIDO. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME NECESSÁRIO."(Apel. Reexame Necessário, 21ª. Câmara Cível, à unanimidade, j. em 24/03/04)
"...não pode o contratante ser penalizado pela falta do administrador, uma vez que não lhe compete a observância de tais princípios. Assim, a causa do pagamento não é o contrato nulo ou inexistente, mas sim a vantagem auferida pelo Município com o serviço prestado pelo particular de boa-fé, sob pena de locupletamento sem causa pela administração. Apelo Negado."(Apel. Cível n.598293074, Primeira Câmara de Férias Cível, Rel. Des. Genaro José Baroni Borges, julgado em 09/06/99).
" Processo Civil. Ação Monitória. Fazenda Pública. Fazenda Pública. Município. Enriquecimento Sem Causa. Vedação. Admite-se ação monitória contra a Fazenda Pública. A Administração Pública não pode se abster de pagar pelos serviços que lhe forem prestados pela parte, uma vez que a ordem jurídico constitucional rechaça a vantagem indevida, sob pena de se admitir o enriquecimento ilícito do ente público em detrimento do particular. Nega-se a provimento à apelação."(TJMG, Apel. n.1049905930524-7/001(1), j. em 28/04/2005.) No mesmo sentido, ainda decidiu o TJMG, na Apel. cível n.1.0303.05.930445-9/001(), j. em 28/04/2005.
No mesmo rumo, as reiteradas decisões do STJ:
" A conversão em pecúnia das licenças-prêmio não gozadas em face do interesse público, tampouco contadas em dobro para fins de contagem do tempo de serviço para efeito de aposentadoria, avanços ou adicionais, independe de previsão legal expressa, sendo certo que tal entendimento está fundado na Responsabilidade Objetiva do Estado, nos termos do art.37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, e no Princípio que veda o enriquecimento ilícito da administração." (STJ, RESP 693728/ RESP 693728/ Quinta Turma, v.u., Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 8/03/2005).
"A eventual declaração de nulidade do contrato administrativo não tem o condão de exonerar a Administração Pública do dever de indenizar as obras já realizadas, desde que (1º) tenha ela, Administração, auferido vantagens do fato e (2º) que a irregularidade não seja imputável ao contratado"(STJ, Segunda Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, RESP 317463/SP,j. em 16/03/2004.
Ao receber o Mandado Judicial, importa em dizer que o Oficial de Justiça, acima de tudo, recebe uma ordem de deslocamento por parte do Poder Estatal. E, tendo que se deslocar, incumbe ao Poder lhe fornecer os meios adequados para tanto. Não cabe, portanto, ao Estado enquanto Prestador Jurisdicional, o fornecimento de meios fictícios(indenização genérica), posto que as despesas que O Oficial de Justiça realiza não são fictícias.
De sorte que, se a verba indenizatória alcançada ao Oficial não é mais suficiente para cumprimento de todas determinações judiciais, caberia, em tese ação de indenização em busca do "quantum faltante". Exemplificamos: levando em consideração que o Oficial cumpre na média 150 mandados em nosso Estado e, roda aproximadamente 2.100km por mês para cumprimento destes mandados, conforme pesquisa da autoria ABOJERIS em 154 Comarcas de nosso Estado se, no caso concreto, a verba bastaria apenas para ressarcir 1.000km de diligências em cumprimento da totalidade de Mandados carregado ao Oficial, este teria direito de ressarcir-se das despesas realizadas para percorrer os 1.100km não lhe indenizados pelo auxilio condução.
Colacionamos, a abalizada doutrina de Sérgio Cavalieri Filho, in Programa de Responsabilidade Civil, 3ª. Ed., São Paulo: Malheiros, p.209:
"Ora, já ficou assentado que o arcabouço da responsabilidade estatal está estruturado sobre os princípios da organização e do funcionamento do serviço público. E sendo a prestação da justiça um serviço público essencial, tal como outros prestados pelo Poder Executivo, não há como e nem por que escusar o Estado de responder pelos danos decorrentes da negligência judiciária, ou do mau funcionamento da justiça, sem que isto moleste a soberania do judiciário ou afronte o princípio da autoridade da coisa julgada."
Na dicção de LUIS ANTONIO DE CAMARGO:
" A atividade judicante pode, voluntária ou involuntariamente, causar danos às partes, que devem ser ressarcidas pelo Estado, por força deste ter assumido o risco da função pública" (Apel. Cível n.70005221791, da 9ª. Câmara Cível do TJRS, j. em 10/11/04, por maioria de votos).
E, na força da doutrina desposada por GEOVANNI ETTORI NANNI:
"...não se vislumbra lícito sustentar que o Poder Público está isento de obediência à regra geral que veda o locupletamento injusto"
Citamos, por fim, a doutrina de ROBERTO BAZZILLI:
" (...) em respeito ao princípio de que a administração não pode locupletar-se às custas do trabalho alheio, se de boa fé, nas pegadas da boa doutrina e jurisprudência dominante." (Contratos Administrativos, p.78).
E, nos passos lúcidos de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO:
"De todo modo, como se vê, por um ou outro fundamento, o certo é que não se pode admitir que a Administração se locuplete à custa alheia e, segundo nos parece, o enriquecimento sem causa – que é um princípio geral do direito – supedaneia, em casos tais, o direito do particular indenizar-se pela atividade que proveitosamente dispensou em prol da administração ainda que a relação jurídica se haja travado irregularmente ou mesmo ao arrepio de qualquer formalidade..."(Ob. Cit., p. 149.)
A prova básica a ser produzida em ação com este propósito
seria essencialmente pericial, onde seria aquilatado a quilometragem (de ida e
volta) rodada para cumprimento integral de cada Mandado em determinado período.
Aos autos viriam as cópias de todas certidões, onde constaria a quilometragem ou
o destino do Mandado, de modo a possibilitar o cálculo dos quilômetros rodados
pelo Oficial de Justiça, pelo perito judicial. A averiguação das distâncias se
daria mediante a média constante nas
Tabelas de despesas de Condução vigentes no Foro de cada Comarca, a qual já é
parâmetro para o recolhimento das despesas de condução.
O Perito, após verificar qual seria o custo médio do quilômetro rodado( mediante consultas à firmas de locação de veículos, valor do quilômetro rodado cobrados por táxis da região, etc.) multiplicaria o valor deste pelo somatório da quilometragem percorrida pelo oficial requerente, chegando num resultado o qual representaria o custo de todas diligências empregadas pelo Oficial em determinado mês. Do valor encontrado(custo total das diligências empreendidas) seria abatido o auxilio condução recebido pelo Oficial de Justiça, bem como todos depósitos recebidos em determinado período. Desta conta, resultaria o valor do prejuízo indenizável, i.e., o valor da indenização.
A prova testemunhal, poderia ser produzida no sentido de buscar a confirmação da utilização do veículo automotor pelo Oficial de Justiça nos deslocamentos em cumprimento dos Mandados Judiciais.
A existência do deslocamento realizado e demais dados certificados no Mandado,por si só, tem presunção de veracidade pela Fé Pública inerente ao Cargo que o Oficial é detentor, não podendo haver qualquer ressalva quanto ao seu valor probatório para este tipo de ação. Somente uma robusta prova em contrário poderia elidir a veracidade do contido nestas certidões, conforme já assente em doutrina e jurisprudência pátrias.
Até mesmo, notas fiscais de combustíveis e outras despesas onde contivesse a placa do veículo utilizado pelo Oficial, cujas datas guardassem concordância com a data das diligências em cumprimento de Mandado poderia ser meio de prova útil.
Declarações de pessoas idôneas que tivessem ciência da utilização do veículo em serviço pelo Oficial de Justiça poderia ser meio útil de prova.
Oficiais mais precavidos, por certo, existem que registraram algum documento em cartório de registros de títulos e documentos que declarem que a partir de tal data utilizam-se de seus veículos para cumprimento de Mandados ou, quiçá, comunicaram ao TJRS a utilização do veículo, já estariam em posição probatória mais confortável. Boletins de Ocorrência oriundos de autoridades de transito ou policiais, envolvendo o veículo utilizado, serviriam como meio probante.
A constatação pericial da ausência de linhas de transportes regulares, ou mesmo se existentes, forem de tal sorte que não permitissem o cumprimento de todos Mandados em referido período onde alegada a insuficiência da verba, também seria de valia. Atente-se que nesta circunstância o Perito poderia, mediante exame dos horários lançados na certidão pelo Oficial de Justiça em cada Mandado Judicial, comparar o horário que consta ter sido cumprido o ato judicial e constatar tecnicamente(mediante requisição de horários ao órgão competente) que naquele horário o Oficial não disporia na Comarca de transporte que possibilitasse a utilização do transporte público para cumprimento da diligência.
Os Mandados urgentes, por óbvio,, teriam uma presunção judicial que foram cumpridos com utilização de veículo particular(mormente aqueles em que realizados fora do expediente forense). Ademais, em tais circunstâncias, é de se dar crédito a sapiência dos Magistrados Estaduais, posto que, é fato notório e consabido por todos no meio forense que os oficiais empregam seus veículos no cumprimento das diligências oriundas de Mandados Judiciais.
Menciona-se ainda como documento probatório, a existência de Provimento da CJG no sentido de proibir que os oficiais de justiça transportem presos e doentes em seus veículos. "Para o bom entendedor meia palavra basta", como diz o provérbio popular, ou seja, a única ressalva da CJG, no sentido apontado, é quanto ao transporte de presos e doentes. Quanto ao mais não há proibição de utilização do veículo, quer na Portaria em questão ou em qualquer outra norma do Poder Judiciário. Ora, se a utilização de veículo particular ou locado por parte do Oficial de Justiça fosse proibida em nossa função, cumpriria ao administrador da justiça ou órgão de correição coibir sua utilização mediante normas disciplinadoras. Todavia, o que se verifica é que é permitido, tanto que regrado por Portaria.
Compartilhamos, pois, com a moderna posição doutrinária e jurisprudencial, no sentido de aplicar o instituto do enriquecimento injustificado nas relações do Poder Público, detentor da Atividade Jurisdicional. Ademais, nos parece evidente que se a Administração Pública não está isenta de indenizar ao particular os danos resultantes do mau funcionamento da Justiça, quanto mais na espécie, que trata de indenizar os prejuízos causados aos serventuários da justiça pela má administração da função pública.
À seguir apresentamos um Projeto de Lei instituindo a "Indenização de Diligência", o qual, por óbvio, poderá conter imperfeições e omissões, diante das limitações técnicas deste autor. Todavia, como disse alhures, a finalidade primeira é fornecer aos colegas e demais autoridades judiciárias um "ponto de partida" para construção de um novo sistema de indenização das diligências do Oficial de Justiça que seja mais justo e eficiente que o vigente.