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Natureza ex lege do tributo.

Aspectos práticos

22/07/2005 às 00:00
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Na prática, o princípio da obviedade tem encontrado bastante dificuldades.


            Quem visualizar o título do artigo, certamente, perderá interesse na leitura do texto respectivo, partindo do pressuposto de que o seu autor está pretendendo fazer uma proclamação acaciana.

            Entretanto, vale a pena vencer a teimosia inicial e acompanhar sua leitura até o final, para descobrir a surpreendente realidade que vem acontecendo no dia a dia de nossa vida profissional.

            O propósito deste artigo é o de demonstrar que não basta definir a natureza jurídica do tributo. É preciso que, a partir da definição consolidada em torno dele, o operador do direito saiba extrair todas as conseqüências daí advindas, abandonando posições doutrinárias e jurisprudenciais com ela incompatíveis.

            São unânimes a doutrina e a jurisprudência quanto à natureza ex lege da obrigação tributária, contrapondo-se à natureza ex voluntate da obrigação de direito comum. A obrigação tributária só pode resultar de lei, lei em sentido estrito, por força do princípio da legalidade tributária que remonta à Carta Magna de 1215 e que está cristalizado em todas as Constituições de Estados Democráticos. A nossa Carta Política de 1988 inscreveu-o no art. 150, I, nos seguintes termos:

            Art. 150 – sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

            I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.

            Eis aí a matriz constitucional que levou a doutrina e a jurisprudência proclamar a natureza ex lege do tributo. Enquanto o tributo só pode nascer da lei, a obrigação de direito comum pode, tanto nascer da lei, como pode decorrer de contrato.

            Resta claro, portanto, que só a lei pode ser fonte formal de tributo. Até aqui, nada de novo; parece proclamação do óbvio! Mas, na prática, não é bem assim, como veremos a seguir.

            Toda legislação que dispõe sobre o pedido de parcelamento de débito tributário, nas três esferas políticas, contêm disposições versando sobre a ‘confissão irretratável do débito’ e desistência de eventuais recursos administrativos e de procedimentos judiciais acerca do débito objeto de parcelamento, como condição para seu deferimento.

            Interessante notar que basta a leitura ocular dessas disposições legais sobre a ‘confissão irretratável do débito’ e desistência de recursos interpostos para o operador do direito concluir pela impossibilidade jurídica de discussão do ‘débito confessado’ na esfera judicial, inclusive, obstando o exercício da ação de repetição de indébito.

            Ora, esse posicionamento, além de vulnerar o princípio da inafastabilidade da jurisdição, inscrito no art. 5º, XXXV da CF, implica, à toda evidência, ignorar a natureza ex lege do tributo, que todos costumam proclamar em alto e bom som.

            Se a lei não criou o tributo (lei válida), uma confissão daquele que seria o sujeito passivo da relação jurídico-tributária não poderia, jamais, implicar o surgimento da obrigação tributária. Não há, nem pode haver tributo, sem lei válida definindo seu fato gerador, da mesma forma que não há, nem pode haver crime, sem prévia definição legal. Uma confissão de crime, inexistente no mundo jurídico, não tem o condão de fazer do acusado um criminoso. Neste particular, o direito tributário e o direito penal têm um ponto em comum, qual seja, a tipicidade cerrada que não permite o emprego de analogia para deduzir um tributo ou um crime juridicamente inexistentes, posto que, somente a lei pode definir o tipo tributário ou o tipo penal.

            Entretanto, o que deveria ser óbvio, na prática, não o é. Parcela ponderável da jurisprudência pátria vem elegendo a ‘confissão espontânea do débito’, que decorre do pedido de parcelamento, como fonte de obrigação tributária, impedindo a discussão judicial do débito confessado. Tanto a lei, como o contrato poderiam veicular a incidência tributária, por força da voluntária confissão do débito.

            Aliás, esclareça-se que, na verdade, não existe a ‘confissão espontânea do débito’, porque a lei tributária, viciada ou não, enquanto não expurgada do mundo jurídico, carrega consigo a sanção coativa, que retira a espontaneidade do suposto devedor. De fato, este poderá sofrer, desde sanções pecuniárias elevadas, até embaraços no exercício regular de sua atividade (sonegação da certidão negativa de tributos, execução fiscal, inscrição no Cadin etc). Confissão espontânea só existe na hipótese do art. 138 do CTN, em que o contribuinte, antes do procedimento administrativo tributário, denuncia a infração e promove o pagamento do tributo devido e dos juros de mora, quando for o caso, com o fito de excluir a sua responsabilidade, ou seja, livrar-se da sanção pecuniária ou penal.

            Examinemos um caso concreto em que foi conferido ao ‘termo de parcelamento’, no qual constava a confissão do débito parcelando, a força criadora do tributo.

            Tratava-se de um caso de importação de um helicóptero, sob o regime de arrendamento mercantil, livre do ICMS, conforme expressamente consignado no inciso III, do art. 3º da LC nº 87/96. Ante a exigência do imposto, pelo fisco estadual, como condição para liberação do equipamento, a importadora, premida pela necessidade de utilização imediata daquele aparelho, procedeu ao parcelamento com que acenou o fisco, obtendo sua liberação. Depois de pagas várias parcelas resolveu questionar a exigência fiscal com amparo na lei e na jurisprudência de nossos tribunais.

            Ingressou, então, com a ação anulatória do débito tributário, cumulada com a de repetição de indébito, requerendo a tutela antecipada para o efeito de suspender a exigibilidade do crédito tributário sob discussão, afim de que não fosse promovida a execução fiscal, na pendência da lide.

            Denegada a tutela antecipatória, foi interposto o agravo de instrumento com pedido de efeito ativo ao E. Tribunal de Justiça. O efeito ativo não vingou sendo, afinal, negado provimento ao agravo, nos termos da ementa a seguir transcrita:

            ‘Tendo o contribuinte efetuado acordo para parcelamento do débito, fica afastada, pelo menos em termos de cognição incompleta, a verossimilhança do direito alegado, o que indica a irrelevância da fundamentação do recurso. Recurso improvido.’ (Agravo de Instrumento nº 381.861-5/7, Rel. Des. Laerte Sampaio).

            Após transcrever ementas de vários acórdãos do STJ, no sentido da não incidência do ICMS sobre a importação sob o regime de arrendamento mercantil, o ínclito Relator do agravo afirmou que ‘no mesmo sentido são os julgados nos REsp 239.331/SP, REsp 439.884/SP, REsp 58.376/SP, REsp 22.299/SP, REsp 24.756/SP, REsp 39.397, EDREsp 39.397, REsp 24.756, REsp 57.525, REsp 30.573, REsp 58.376, REsp 253.882, MC 2.741, REsp 299.674, REsp 341.423, REsp 351.772, REsp 439.884, REsp 239.331, AGA 343.438, ADREsp 475.154, REsp 542.379, REsp 523.528, AGREsp 413.656, MC 6.242 e AGA 385.174’.

            Contudo, depois de citar toda a jurisprudência no sentido da inexigibilidade do ICMS na espécie, o douto Relator afirmou:

            ‘Havendo, pois, fundamento relevante no sentido da inocorrência de hipótese de incidência na entrada em território nacional das aeronaves arrendadas, a questão se restringe aos efeitos do ato de acordo de parcelamento’.

            Ora, reconhecida a inocorrência do fato gerador, por força de expressa exclusão legal do ICMS, no caso de arrendamento mercantil, não poderia restar qualquer questão a ser examinada, posto que, o tributo não poderia resultar de acordo ou confissão, tanto quanto o crime como antes explicitado.

            Contudo, o V. acórdão, alegando necessidade de comprovar que o ato praticado é nulo total ou parcialmente, por um dos vícios previsto nos artigos 145 e 147 do CC, negou-se provimento ao agravo amparando essa decisão, também, na orientação do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que ‘no momento em que o contribuinte prefere parcelar a dívida, aceita o que lhe é exigido pelo Fisco, não há mais lugar para a discussão sobre o principal e os acréscimos (REsp 147.697 e AGREsp 278.268)’.

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            Com todas as vênias, tanto o V. acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como a jurisprudência do STJ, que direcionou o julgamento do referido agravo, estão equivocados. Nem à luz dos invocados dispositivos do Código Civil de 1916 o crédito tributário poderia subsistir. A nulidade absoluta desse ´´credito tributário´´ resulta com solar clareza em face do invocado art. 145 do CC, por não ter ocorrido o fato gerador da obrigação tributária como expressamente reconhecido pelo V. acórdão. Pode existir obrigação tributária sem crédito tributário, mas nunca poderia existir o crédito tributário sem obrigação tributária, que surge com a ocorrência do fato gerador.

            Evidentemente, a questão tributária deve ser resolvida à luz do direito tributário e não, data venia, à luz do direito civil, ainda que, no caso, favoreça o contribuinte com retro demonstrado. Ela deveria ter sido decidida à luz da tão falada natureza ex lege do tributo, uma vez que, proclamada e reconhecida, com base na lei e na jurisprudência, que o fato gerador da obrigação tributária não ocorreu. Ora, confessar uma obrigação legalmente inexistente não tem o condão de criá-la no mundo da realidade. É como confessar um crime inexistente, por ausência de sua definição legal.

            Se o tributo pago por confissão, via parcelamento, não pode ser repetido, apesar de inexistente legalmente, há de convir que afastada restará a natureza ex lege da obrigação tributária. Dessa forma, o tributo poderia nascer da convenção das partes, da mesma forma que poderia ser aumentando, diminuído ou remido por vontade das partes.

            Logo, o princípio da estrita legalidade tributária, previsto no art. 150, I da CF, não teria aplicação, o que seria um absurdo jurídico, porque ele integra a garantia fundamental do indivíduo, insusceptível de supressão até por via de emendas constitucionais (art. 60, § 4º, IV da CF).

            Outrossim, se o tributo confessado não pode ser repetido, a ação de repetição simplesmente deveria desaparecer do mundo jurídico, pois todo tributo pago, devido ou indevido, importa na prévia confissão, porque implica prévia consciência de que se não reconhecer o débito e deixar de pagá-lo terá que arcar com as conseqüências da ação fiscal. Pagamento sob condição ou com ressalva, não é pagamento, tanto é que o fisco não o aceita. Exatamente por isso, em direito tributário, ao contrário do que ocorre no direito comum, não se exige a prova do erro na repetição. A norma tributária, válida ou inválida, até que seja declarada nula pelo Judiciário tem o condão de coagir o sujeito passivo, porque o agente público competente, sob pena de prevaricação, não pode deixar de exigir o pagamento do tributo, motivado pelo entendimento pessoal dele, no sentido de que determinado tributo é inconstitucional.

            Na prática, como vimos, as noções mais óbvias são ignoradas, o que justifica a abordagem do tema enfocado: a natureza ex lege do tributo.

            Esclareça-se, por fim, que não vai neste modesto trabalho qualquer crítica aos membros do Judiciário que não seja aquela de natureza positiva, no sentido de alertá-los para a necessidade de adequar a jurisprudência sobre a questão da ´´confissão irretratável da dívida tributária´´ ao princípio da legalidade tributária, cuja inobservância assegura ao prejudicado o acesso à via judiciária. Afinal, se o Judiciário recusa-se a examinar o mérito, por mais relevante que seja a fundamentação jurídica do pedido, simplesmente em virtude do ´´ato de confissão do débito´´, como asseverado no v. acórdão retro referido, o contribuinte que tiver confessado e pago o débito tributário, por não ter logrado interpretar corretamente a legislação invocada pelo poder tributante, sofrerá confisco definitivo, pois é certo que o fisco não acolherá o pedido de repetição daquilo que exigiu.

            Questão elementar como essa enfocada neste artigo, exatamente por ser óbvia, às vezes, passa despercebida pelos mais experientes operadores do direito que não se dedicam exclusivamente ao exame da matéria tributária, mas que, por força do ofício, são obrigados a lidar, diariamente, com questões das mais diversas, ligadas a diferentes ramos do direito.

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Sobre o autor
Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Natureza ex lege do tributo.: Aspectos práticos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 748, 22 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7055. Acesso em: 29 mar. 2024.

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