A universalidade do direito à saúde e a Lei nº 13.732/2018

30/11/2018 às 15:51
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A Lei nº 13.732/ 2018, definindo que as receitas médicas terão validade em todo o território nacional, sendo de suma importância para toda sociedade brasileira, pois derrubou a barreira espacial que existia e facilita a todos o acesso à saúde.

INTRODUÇÃO

            O senso de proteção social existe desde os primórdios, ele está atrelado ao instinto de sobrevivência e perpetuação da espécie. Esse instituto encontra sua primeira guarida na família, que é um núcleo de proteção dos indivíduos que a compõe, depois a igreja que passou a assumir o papel de resguardar seus fiéis, em terceiro lugar, a sociedade de certa forma começou a adotar medidas de proteção e assistência aos menos favorecidos através de atividades voluntárias de terceiros e, por fim, o Estado.

Fábio Zambitte Ibrahim afirma que: “A preocupação com os infortúnios da vida tem sido uma constante da humanidade. Desde tempos remotos, o homem tem se adaptado, no sentido de reduzir os efeitos das adversidades da vida, como fome, doença, velhice etc.” (Curso de Direito Previdenciário, p. 2, 2005).

Há indícios de certas medidas estatais relativas a algum benefício concedido aos pobres em civilizações da Antiguidade, como no Império Romano, só que é a partir da conhecida “Lei dos Pobres” editada na Inglaterra, no século XVII, que a proteção social toma proporções mais significativas.

No entanto, é nos Estados modernos que várias responsabilidades sociais são assumidas pelo poder estatal, quando o senso de proteção social toma proporções bem maiores e várias conquistas são asseguradas aos indivíduos tanto na esfera individual quanto coletiva através de um sistema securitário mantido pelo Estado. Modernamente temos como mecanismo de proteção social a seguridade social, buscando minimizar as desigualdades sociais, representando a máxima cobertura do Poder Público envolvendo vários segmentos.

DIREITO A SAÚDE, UM DIREITO DE TODOS

Dentre os direitos sociais assegurados pela Carta está a Seguridade Social, instituto que engloba a Assistência Social, a Previdência Social e a Saúde. Esta, além de ser um direito social é um direito fundamental do ser humano, sendo dever do Estado assegurá-la (art. 196, da CF), regido pelo princípio do acesso universal e igualitário. Diante da sua natureza coletiva, a saúde também é considerada como um direito público subjetivo assegurado à generalidade de pessoas, conforme o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, relator do AgR-RE 271.286-8/RS afirma:

A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente”, impondo aos entes federados um dever de prestação positiva. Concluiu que “ a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse como prestações de relevância pública as ações e serviços de saúde (art. 197).

O Direito à Saúde está ligado diretamente ao próprio Direito à Vida, que é o bem jurídico mais relevante na tutela da pessoa humana porque sem a vida os demais perdem a premissa de legitimidade e a razão de ser. Assim, a saúde é imprescindível, sendo uma parte autônoma da Seguridade Social, assegurada à sociedade, mediante políticas econômicas e sociais, com o objetivo de garantir melhores condições de vida independentemente de contribuição por parte do indivíduo para o seu fornecimento. A nossa Carta Magna afirma o seguinte:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade. (grifo nosso).

Assim, a temática é tratada sob um prisma amplo pela Constituição, englobando a esfera coletiva e a individual, devendo ser efetivada através de medidas, ações e procedimentos à obtenção dos objetivos propostos pela norma legal, tanto por parte do Estado quanto dos particulares.

Não podemos olvidar que o Direito à Saúde está pautado no Princípio da Universalidade que determina que os serviços sociais direcionados a assegurar a saúde da população devem ser acessíveis a toda a comunidade. Devendo o serviço público de saúde abarcar o número máximo de situações possíveis.

O PRINCÍPIO DA UNIVERSALIDADE E A ACESSIBILIDADE A SAÚDE

Apesar de o Direito à Saúde estar diretamente atrelado ao Direito à Vida, que tutela o bem maior de qualquer indivíduo e ser regido pelo princípio do acesso universal, na prática o acesso muitas vezes é restrito, muitas vezes por aqueles que deveriam garanti-lo. Ainda há entraves ao acesso à saúde que precisam ser exterminados, para facilitar o acesso aos mais necessitados.

Ressalte-se que, o princípio da universalidade caracteriza a saúde como um direito de cidadania, pois a própria Carta Magna a coloca como “um direito de todos e um dever do Estado” (art. 196, da CF). Abrangendo assim, não só o acesso e o atendimento nos serviços do SUS (Sistema Único de Saúde), mas a cobertura completa prestada pelo Estado à toda a população. No entanto, com frequência, ocorrem algum tipo de restrição, que limita o acesso à saúde como, por exemplo, o gerado pela limitação espacial das receitas médicas ao Estado da prescrição. O artigo 35 da Lei nº 5.991 de 1973 dizia o seguinte:

Art. 35 - Somente será aviada a receita:

a) que estiver escrita a tinta, em vernáculo, por extenso e de modo legível, observados a nomenclatura e o sistema de pesos e medidas oficiais;

b) que contiver o nome e o endereço residencial do paciente e, expressamente, o modo de usar a medicação;

c) que contiver a data e a assinatura do profissional, endereço do consultório ou da residência, e o número de inscrição no respectivo Conselho profissional.

Parágrafo único. O receituário de medicamentos entorpecentes ou a estes equiparados e os demais sob regime de controle, de acordo com a sua classificação, obedecerá às disposições da legislação federal específica.

Percebe-se que o artigo 35, da lei supracitada, descreve todos os detalhes da receita, inclusive que deve conter o endereço do paciente e do médico (profissional ou residencial), mas não especifica se a validade da receita é em todo o território nacional. Visando controlar o uso indevido de algumas drogas a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) restringiu o uso das receitas controladas ao próprio Estado em que era emitida.

Diante disso, quando alguém ia comprar medicação com receita de profissional com registro em outro estado era logo barrado, o que ocorria também nas farmácias básicas de vários Municípios, em alguns casos chegava ao cúmulo de só dispensarem a medicação se a receita fosse prescrita por um médico do próprio município, não aceitando receitas que tenha o timbre de outra cidade.

Ora o artigo 35, da lei em tela, fala que a receita deve conter o endereço do consultório ou da residência do profissional, além dos outros requisitos exigidos, mas em nenhum momento limita a cidade em que será fornecido a medicação. A própria Anvisa já vinha analisando a liberação à venda de alguns medicamentos controlados - como antibióticos e ansiolíticos - em Estados distintos do que a receita emitida, no entanto, fazia-se necessária uma medida mais efetiva para solucionar os dilemas levantados em torno da extensão da validade da receita.

A Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973, ao tratar sobre o receituário médico calou-se sobre a validade do receituário médico em todo o território brasileiro. Em várias ocasiões o doente passava por uma situação embaraçosa ou vexatória, pois ao tentar adquirir uma medicação fornecida pelo Sistema Único de Saúde oriundo de outro Estado da Federação ou comprar numa drogaria findava não ser atendido, porque a prescrição médica era de outra localidade, ou seja, o CRM (Conselho Regional de Medicina) contido no carimbo do médico pertencer a outro estado da Federação.

Atualmente, para garantir o monitoramento das vendas dos fármacos controlados e inibir o uso indevido deles, há uma numeração do receituário que é estadual, mas com a alteração da lei a Agência deverá criar um cadastro nacional, o que já existe para substâncias entorpecentes.

Vale ressaltar que, já existia a preocupação de que as receitas que envolviam medicamentos entorpecentes, psicotrópicos e outros sob regime de controle especial - substâncias com ação no sistema nervoso central e capazes de causar dependência física ou psíquica não tivessem limitações territorial dentro do país, visto que a interrupção dos tratamentos ou a suspensão abrupta do uso dos fármacos poderão agravar o quadro clínico do paciente com sintomas como cefaleia, náusea, taquicardia, sonolência etc. Além disso, em alguns casos o tratamento tem que ser reiniciado, ou seja, gera um retrocesso no tratamento.

Não era raro os casos dos pacientes que necessitavam se consultar em outra unidade federativa por não ter o especialista na patologia no Estado de origem, no entanto, devido as condições financeiras não podiam permanecer na unidade em que o médico atendia até o fim do tratamento ou, em outras situações, o tratamento é permanente. Tais situações geravam muitos problemas pelo simples fato do cadastro do médico ser de uma localidade distinta.

A questão pode parecer irrelevante para alguns, entrementes, não é só a busca de facilidade na prestação do serviço, trata-se da garantia da continuidade do tratamento ou até da garantia de vida aos beneficiários. Vale ressaltar que, nem sempre os prejudicados têm uma segunda chance porque a linha entre a vida e a morte é muito tênue para um moribundo. Quem está no leito de morte não tem tempo para correr atrás de outra receita de um determinado especialista ou, muitas vezes, não tem mais condições ou recursos para isso.

Diante dessa árdua realidade enfrentada por muitos brasileiros é que surgiu a Proposta de Lei do Senado 325/2012, de autoria de ex-senador Jayme Campos, visando a alteração da redação do artigo 35 da Lei nº 5.991/73 que “dispõe sobre o Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatos, e dá outras Providência”, para permitir o aviamento de receitas odontológicas e médicas em todo o território nacional, independentemente da localidade em que foi emitida.

QUADRO COMPARATIVO:

Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973

Projeto de Lei do Senado nº 325, de 2012

Lei nº 13.732, de 08 de novembro de 2018

Redação anterior

Redação proposta

Redação atual

Art. 35 - Somente será aviada a receita: .............................................................

“Art. 35 .............................................................

“Art. 35 ............................................................. .

Parágrafo único. O receituário de medicamentos entorpecentes ou a estes equiparados e os demais sob regime de controle, de acordo com a sua classificação, obedecerá às disposições da legislação federal específica.

§ 2º O receituário de medicamentos terá validade em todo território nacional, independente do local de sua emissão (NR). § 3º Nos termos da legislação federal, os procedimentos para aplicação do disposto no § 1º obedecerão às respectivas normas regulamentares editadas pelo órgão de fiscalização sanitária (NR).

Parágrafo único. O receituário de medicamentos terá validade em todo o território nacional, independentemente da unidade da Federação em que tenha sido emitido, inclusive o de medicamentos sujeitos ao controle sanitário especial, nos termos disciplinados em regulamento.” (NR)

Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação oficial. 

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A justificativa do projeto mostrava que “a legislação atual muitas vezes dificulta, e até coloca em risco, a vida de muitos cidadãos que necessitam adquirir remédios fora da Unidade da Federação em que foram prescritos” e pedia celeridade na aprovação da proposta diante dos riscos enfrentados por muitos brasileiros diante da situação atual. A PLS 325/2012 recebeu apoio, foi aprovada e tornou-se a PL 5.254/2013. No dia 08 de novembro de 2018 a referida proposta foi transformada na Lei Ordinária nº 13.732, publicada em 09.11.2018 no DOU (Diário Oficial da União), entrando em vigor após transcorrido 90 (noventa) dias da sua publicação oficial.

Por fim, a Lei nº 13.732/2018 é de grande interesse da população, pois uniformiza a receita médica em todo o país derrubando a barreira da localidade de emissão e, ao mesmo tempo, facilitando a vida de milhares de pacientes. Diante da nova lei, resta a ANVISA se manifeste quanto aos procedimentos a serem realizados relativos as prescrições e, possivelmente, fazer as devidas alterações necessárias à adequação relativas a dispensa de medicamentos, medidas de controle e combate ao uso ilegal de psicotrópicos, que já era de sua alçada.

CONCLUSÃO

Com a nova redação não há margem para uma má interpretação sobre a extensão da validade das receitas emitidas por profissionais devidamente habilitados, ela envolve até os medicamentos de controle sanitário especial e irá beneficiar médicos, dentistas e pacientes com a possibilidade da manutenção de tratamentos sem interrupções geradas pela restrição da validade da receita, baseada na unidade federativa em que foi emitida. Além disso, os pacientes que durante o tratamento vierem a se mudar ou precisarem viajar, também não serão prejudicados.

Ainda resta a incógnita se será necessário a intervenção judiciária à aplicabilidade da lei caso alguma localidade, mesmo diante da lei, ainda utilize o pretexto de que só podem dispensar medicações fornecidas pelo SUS mediante prescrição de médico que seja cadastrado no próprio Município.

Espera-se que com a entrada em vigor da nova redação a Lei finalmente derrube as barreiras que reduzem as chances de tantos doentes ao acesso aos medicamentos necessários ao seu tratamento de saúde e, por fim, novos óbitos sejam assim evitados.

REFERÊNCIAS

BAHIA, Flavia. Descomplicando Direito Constitucional. 3. ed. Recife: Armador, 2017.

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 16 nov. 2018.

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______. Lei nº 13.732, de 8 de novembro de 2018. Altera a Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatos, para definir que a receita tem validade em todo o território nacional, independentemente da unidade federada em que tenha sido emitida. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2018/lei-13732-8-novembro-2018-787303-publicacaooriginal-156685-pl.html>. Acesso em: 13 nov. 2018.

______. Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973, dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, e dá outras providências. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5991-17-dezembro-1973-358064-retificacao-25699-pl.html>. Acesso em: 13 nov. 2018.

______. Supremo Tribunal Federal. AgR-RE nº 271.286-8, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 12/09/2000.

______. Projeto de Lei do Senado n° 325, de 2012. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/107110>. Acesso em: 13 nov. 2018.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Sancionada lei que torna válidas em todo o País receitas de remédios controlados. Disponível em:<http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=27959%3A2018-11-09-19-55-58&catid=3%3Aportal&Itemid=1>. Acesso em: 16 nov. 2018.

IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.

MENDES. Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

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Sobre a autora
Gianne Gomes Ferreira

Mestra em “Desenvolvimento Regional da Amazônia” NECAR/UFRR, Especialista em Direito Penal e Processual Penal –UFAM; Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG); Advogada e professora. Lecionou Direito do Trabalho, Direito Administrativo e Prática Jurídica na UFCG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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