5. JUS COGENS
Jus cogens (direito cogente) são normas peremptórias, imperativas do Direito Internacional, inderrogáveis pela vontade das partes.
As regras imperativas (jus cogens) impõem aos Estados obrigações objetivas, prevalecendo sobre quaisquer outras. Assim, compreendem o conjunto de normas aceitas e reconhecidas pela comunidade internacional, que não podem ser objeto de derrogação pela vontade individual dos Estados. Tais regras gerais somente podem ser modificadas por outras de mesma natureza.
A primeira referência a esses princípios imperativos do Direito Internacional foi feita por Francisco de Vitória.
Os arts. 53 e 64 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados estabelecem de que forma o jus cogens vigora na sociedade internacional.
O art. 53 da Convenção de Viena de 1969 define o jus cogens como sendo formado de normas imperativas de Direito Internacional geral, aceitas e reconhecidas pela comunidade internacional dos Estados em seu conjunto, às quais nenhuma derrogação é possível. Trata-se de noção de grande importância, ainda que simbólica, pois testemunha a “comunitarização” do Direito Internacional.
“A norma do jus cogens é aquela norma imperativa de Direito Internacional geral, aceita e reconhecida pela sociedade internacional em sua totalidade, como uma norma cuja derrogação é proibida e só pode sofrer modificação por meio de outra norma da mesma natureza. ”
Um exemplo frequentemente citado é a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), que, embora não seja formalmente cogente por não ter natureza de tratado, possui obrigatoriedade material em virtude de sua aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
Além da Convenção de Viena, são reconhecidos como jus cogens princípios como: "pacta sunt servanda", o da autodeterminação dos povos, a proibição do uso ou da ameaça de uso da força, o princípio que garante a soberania e igualdade dos Estados, o de soberania sobre os recursos naturais, a proibição do tráfico de seres humanos, a escravidão, pirataria, genocídio, crimes contra a humanidade em geral e tantos outros consagrados no moderno repertório de leis internacionais construídas principalmente após a Segunda Guerra Mundial.
A figura do jus cogens assume papel crucial na atualidade, funcionando como parâmetro de conduta para os entes internacionais em um cenário ainda marcado pela soberania estatal e, em certa medida, pela prevalência do mais forte política ou militarmente.
Importante destacar que sua adoção não gera conflito com normas infraconstitucionais. No Brasil, por exemplo, é pacífico o entendimento de que normas de direitos humanos aprovadas por quórum qualificado — muitas delas reconhecidas como jus cogens — têm valor de emenda constitucional; outras ingressam no ordenamento interno como leis ordinárias.
O jus cogens pode ser visto como o conjunto de normas imperativas de Direito Internacional Público. Reflete padrões deontológicos sedimentados no âmbito da comunidade internacional, cuja existência e eficácia independem da aquiescência dos sujeitos de Direito Internacional. Deve ser observado nas relações internacionais e projeta-se, em alguns casos, na própria ordem jurídica interna. As características da imperatividade e da indisponibilidade influenciaram diretamente a escolha do designativo “direito cogente”, sendo bem conhecida a dicotomia herdada do Direito Romano, que distinguia o jus strictum (direito estrito) do jus dispositivum (direito dispositivo).
Nota-se, inicialmente, que o mundo contemporâneo encontra-se em constante desenvolvimento, fruto da globalização presente entre os objetivos da comunidade internacional. Entretanto, diante desse avanço, observa-se que não existe uma instituição superior quando se trata de Direito Internacional. Em razão da soberania dos Estados, uma norma somente lhes é exigida caso tenham participado do processo de sua formação ou a tenham aceitado expressamente como obrigatória. Disso decorre a conclusão de que nenhuma norma seria universalmente aplicável.
Estamos, portanto, diante de uma intensa relação interestatal entre uma comunidade de Estados soberanos. Esse contexto nos coloca diante de um sistema jurídico internacional cada vez menos anárquico, que busca efetivamente a colaboração entre os Estados, fazendo surgir não apenas a ideia de comunidade de Estados soberanos, mas também de uma comunidade internacional de Estados como um todo. Desse processo emerge uma concepção mais ampla de solidariedade e unidade da sociedade internacional.
Nesse cenário, pode-se falar em forte divergência quanto à utilidade e até mesmo quanto à própria existência das normas de jus cogens. Para alguns autores, o sistema normativo internacional nada mais é do que um instrumento que assegura a cada Estado sua soberania e regula as relações interestatais de coexistência e cooperação. Por outro lado, há doutrinadores que negam veementemente a existência dessas normas imperativas, argumentando que sua validade dependeria da existência de uma estrutura judicial e legislativa internacional capaz de formulá-las — algo ainda inexistente. Assim, o que se observa, na prática, é apenas uma razoabilidade por parte dos Estados, criando uma ordem de relativa estabilidade dentro das relações interestatais.
Fato é que, há muito, já se discutia a proibição de tratados contrários às normas de jus cogens, com o intuito de garantir uma coexistência moral e racional dos membros da comunidade internacional. Foram, inclusive, discutidos e publicados artigos exemplificando tratados considerados contrários à moralidade e que, por isso, deveriam ser anulados caso celebrados pelos Estados, como aqueles que obrigassem um Estado a reduzir a sua polícia, a diminuir o seu exército, entre outros.
A formação do jus cogens sofreu grande influência do jus publicum, pois está relacionada ao interesse coletivo. É interessante observar que, já nesse período, existia o conceito da supremacia do coletivo sobre o individual. Além da influência do Direito Romano, o Direito Natural é considerado um dos fundamentos do jus cogens. O Direito Natural acompanha a humanidade desde os primórdios: é oriundo da própria natureza, evoluiu junto com a história, os indivíduos e as nações. Não precisou ser escrito ou sancionado, pois é independente de acordos. Seus princípios são universais e imutáveis, superiores às demais normas e, muitas vezes, associados a uma ordem divina, conhecida como jus divinum.
Após longas discussões e a evolução do conceito de jus cogens, chegou-se finalmente à base para as Conferências de Viena. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados foi debatida por praticamente vinte anos até se tornar realidade. Seu desenvolvimento decisivo ocorreu nas conferências realizadas em Viena, em 1968 e 1969. Na ocasião, surgiram muitas objeções, sobretudo quanto à subjetividade do conceito de jus cogens. Em virtude disso, algumas modificações foram adotadas, dentre elas a alteração do artigo 50, que recebeu o termo “como um todo” para fazer referência à comunidade internacional, excluindo a exigência de unanimidade para o reconhecimento de validade.
Além dessa modificação, e sob a pressão de diversos membros, estabeleceu-se a competência da Corte Internacional de Justiça para julgar conflitos relacionados ao jus cogens, mediante decisão por maioria de votos. Até então, a Comissão de Direito Internacional entendia que tais conflitos deveriam ser solucionados pelo sistema pacífico previsto na Carta das Nações Unidas.
No Brasil, a promulgação da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados sofreu grande atraso. Contudo, o Itamaraty aplicou seus preceitos na forma de costume internacional, assegurando sua eficácia prática.
A Convenção de Viena não delimitou exatamente qual seria o quórum para aceitação do jus cogens. Entretanto, observa-se, em sua redação, que tal lacuna resultou da preocupação em não restringir o reconhecimento a um número específico de Estados. Por essa razão, adotou-se a expressão “como um todo”, que dispensa a aceitação unânime, bastando a maioria. Como consequência, as normas de jus cogens possuem a característica da inderrogabilidade, sendo vedada qualquer forma de pacto contrário.
As principais fontes do Direito Internacional estão enumeradas no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça: convenções internacionais (tratados), costumes e princípios gerais do direito. Na prática, entretanto, observa-se uma tendência em destacar os tratados, por fornecerem maior certeza quanto ao direito aplicável, seguidos dos costumes e dos princípios gerais. Ademais, é comum a prevalência de regras específicas sobre as gerais, bem como a priorização do ato mais recente em caso de conflito com outro anterior.
O já controverso esquema supracitado é, ademais, intricado pela existência de regras dotadas de qualidade superior às demais: as normas peremptórias, também chamadas de normas de jus cogens. Apesar de não constarem expressamente no Estatuto da Corte Internacional de Justiça — que até então utilizou apenas linguagem alusiva —, tais normas vêm sendo cada vez mais reconhecidas como fonte essencial de Direito Internacional.
O artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados define o jus cogens como sendo: “uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza”.
A redação, contudo, não indica especificamente quais seriam essas normas.
Alguns exemplos foram apresentados pela Comissão de Direito Internacional da ONU: genocídio, pirataria, escravidão e uso ilegal da força. Não há, porém, consenso quanto a outras áreas. Entre as obrigações emergentes, destacam-se: a proibição da agressão; o direito à vida e ao tratamento humano; a vedação de leis penais retroativas; a proibição de crimes de guerra, da discriminação e do aprisionamento por dívida civil; a repressão a crimes contra a humanidade; além do reconhecimento da personalidade jurídica, da liberdade de consciência e do direito à autodeterminação dos povos.
O artigo 64 da Convenção de Viena de 1969 acrescenta que, caso surja nova norma peremptória, qualquer tratado em conflito com ela torna-se nulo.
Nota-se que tais normas não decorrem da observância de uma fonte específica de Direito Internacional já existente: podem ter origem convencional ou costumeira, havendo controvérsias a respeito. O conceito de jus cogens fundamenta-se na aceitação de valores superiores pela comunidade internacional, o que demonstra que sua superioridade não decorre do modo de produção, mas da relevância dos valores protegidos — geralmente ligados aos direitos humanos.
Os Estados não precisam consentir para serem compelidos a respeitar tais normas. Um tratado que viole regra de jus cogens é inválido ab initio. A existência desse núcleo de valores fundamentais cumpre dupla função: dissuadir os Estados de práticas ilícitas e obrigá-los a manter comportamento consistente com tais valores.
As normas de jus cogens consolidam valores humanos essenciais, voltados a garantir a integridade dos regimes jurídicos de proteção da pessoa humana, aplicados sobretudo no Direito Internacional dos Direitos Humanos. O artigo 53 da Convenção de Viena positivou esse entendimento ao conceituar tais normas como imperativas de Direito Internacional geral, das quais nenhuma derrogação é permitida e que só podem ser alteradas por outra de igual natureza.
A importância dessas normas deriva do seu conteúdo, pois protegem valores fundamentais compartilhados pela comunidade internacional. Pode-se dizer que o jus cogens constitui a encarnação jurídica da consciência moral da sociedade internacional.
As normas imperativas de Direito Internacional geram obrigações perante todos os sujeitos da comunidade internacional. A relação entre a consolidação do conceito de jus cogens e os direitos humanos é evidente: trata-se de ilustração perfeita do processo de “humanização” do Direito Internacional.
6. OS TRATADOS INTERNACIONAIS
6.1. Conceito e denominações
Os tratados constituem uma das principais fontes do Direito Internacional positivo e podem ser conceituados como todo acordo formal firmado entre pessoas jurídicas de Direito Internacional Público, com a finalidade de produzir efeitos jurídicos.
A denominação “tratado” é genérica. Conforme a forma, o conteúdo, o objeto ou a finalidade, podem ser utilizadas outras designações, como: convenção, declaração, protocolo, convênio, acordo, ajuste ou compromisso.
6.2. Formação e incorporação
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 1969, surgiu da necessidade de disciplinar e regular o processo de formação dos tratados internacionais. O Brasil assinou a Convenção em 23 de maio de 1969, mas, até a presente data, ainda não a ratificou.
Os tratados internacionais somente produzem efeitos entre os Estados que expressamente consentiram com a sua adoção, no exercício livre e pleno de sua soberania. Em outras palavras, não criam obrigações para Estados que a eles não tenham aderido. Dessa forma, os tratados são expressão do consenso, vinculando exclusivamente os Estados partes.
6.3. Planos da existência, validade e eficácia
O mundo jurídico pode ser compreendido em três planos: existência, validade e eficácia.
O Direito, ao buscar ordenar a conduta humana, atribui valor aos fatos e, por meio das normas jurídicas, eleva à categoria de fato jurídico aqueles que possuem relevância para a vida em sociedade. Quando ocorre no mundo real o fato previsto abstratamente pela norma (suporte fático hipotético), a norma incide sobre ele, transformando-o em fato jurídico. A partir dessa incidência, o fato é transportado para o plano jurídico, ingressando no plano da existência.
Dizer que uma norma existe significa afirmar que está posta no mundo jurídico, independentemente de ser válida, vigente ou eficaz. O ato legislativo, por exemplo, começa a existir a partir da sua promulgação (declaração formal pela autoridade competente), ainda que sua publicação ocorra posteriormente.
Com a publicação, tem início a vigência — a possibilidade de produzir efeitos —, pois somente a partir dela a norma passa a ser conhecida por seus destinatários.
No processo de formação dos tratados, identificam-se três fases principais: negociação, conclusão e assinatura, todas de competência do Poder Executivo.
No ordenamento jurídico brasileiro, o Presidente da República tem competência para celebrar tratados, que deverão ser posteriormente aprovados pelo Congresso Nacional, mediante decreto legislativo. Após a aprovação, o tratado retorna ao Poder Executivo para ratificação. Com a ratificação presidencial, o tratado deve ser promulgado internamente por meio de decreto de execução.
Somente com a expedição do decreto de execução é possível afirmar que o tratado ingressou no plano da existência, ou seja, que está formalmente posto no ordenamento jurídico.
Uma vez atestada a existência do fato jurídico — sobretudo quando a vontade humana constitui o núcleo do suporte fático —, passa-se à análise do plano da validade. Nesse estágio, verifica-se a perfeição do ato jurídico, isto é, a ausência de vícios que o tornem inválido.
A análise da validade ou invalidade de um ato jurídico assegura a integridade do sistema, pois, ao recusar utilidade jurídica a atos que infringem normas do ordenamento, preserva-se a coerência e a unidade da ordem jurídica.
No âmbito do Direito Público, é possível identificar hipóteses de invalidade nas leis que contrariam normas hierarquicamente superiores. Tais leis são consideradas nulas, isto é, inválidas, como ocorre nos casos de inconstitucionalidade de leis ou de atos normativos infralegais.
Os atos jurídicos, depois de verificada a sua validade, tornam-se aptos a produzir seus efeitos específicos, ingressando, assim, no plano da eficácia.
Este tópico trata da eficácia jurídica, ou seja, da análise do conjunto de consequências (efeitos) atribuídas pelas normas jurídicas ao fato jurídico — em especial, os efeitos decorrentes da internalização dos tratados na ordem interna —, bem como da eficácia social, que corresponde à efetiva realização da norma no meio social a que se destina.
Quando em vigor no plano internacional, os tratados ratificados pelo Estado, uma vez promulgados e publicados, passam a integrar o arcabouço normativo interno e a produzir efeitos na ordem jurídica doméstica.
A eficácia — tanto jurídica quanto social — dos direitos consagrados nos tratados ratificados pelo Brasil dependerá de sua recepção na ordem interna e do status jurídico que lhes for atribuído.
6.4. A posição hierárquica dos tratados internacionais
A Constituição Federal de 1988 não contém dispositivo que determine expressamente a posição dos tratados internacionais perante o direito interno.
Com base no art. 102, inciso III, alínea “b”, da Constituição Federal — que atribui ao Supremo Tribunal Federal competência para julgar, mediante recurso extraordinário, “as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal” —, a doutrina e a jurisprudência brasileiras consolidaram a tese de que os tratados internacionais e as leis federais possuem a mesma hierarquia jurídica. Dessa forma, os tratados são incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro como normas infraconstitucionais.
Nos conflitos entre tratado internacional e Constituição, prevalece a Constituição, visando preservar a autoridade da Lei Fundamental do Estado — ainda que isso possa gerar a prática de ilícito internacional. Esse primado não está expresso textualmente, mas decorre da sujeição dos tratados, assim como das demais normas infraconstitucionais, ao controle de constitucionalidade.
As maiores discussões ocorrem nos conflitos entre tratados e leis infraconstitucionais. Em países como França e Argentina, garante-se a prevalência dos tratados.
No Brasil, entretanto, havendo conflito entre tratado e lei infraconstitucional, aplica-se a regra de que a lei posterior revoga a anterior. Assim:
se o tratado for posterior à lei interna, prevalece o tratado;
se a lei for posterior ao tratado, prevalece a lei, ainda que isso implique descumprimento do compromisso internacional.
Esse sistema paritário, que equipara juridicamente tratado e lei federal, vigora na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde 1977, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 8.004.
A posição adotada pelo STF é considerada por parte da doutrina como um retrocesso, pois abandonou a tese anterior de primado do Direito Internacional sobre o direito interno, sem levar em conta que os tratados possuem forma própria de revogação (a denúncia). Além disso, o descumprimento interno de um compromisso internacional acarreta responsabilidade do Estado e graves consequências políticas externas.
No Brasil, há juristas que defendem o status supralegal dos tratados, e outros que defendem até mesmo a supra constitucionalidade, sustentando que os tratados, por terem força obrigatória e vinculante, só poderiam ser afastados por meio de denúncia — ato formal de retirada do Estado do tratado.
Apesar dessas discussões, a jurisprudência majoritária ainda adota a teoria da paridade entre tratado internacional e lei federal. Contudo, em relação aos tratados internacionais de direitos humanos, a controvérsia sobre sua posição hierárquica no ordenamento jurídico brasileiro é ainda mais intensa.
6.5. Os tratados internacionais de direitos humanos e a recente decisão do Supremo Tribunal Federal
Ainda existem controvérsias doutrinárias acerca da forma de integração e eficácia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico interno.
O art. 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988 estabelece que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Muitos autores, partindo de uma interpretação sistemática e teleológica, atribuíram aos direitos previstos nos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil uma natureza especial, equivalente a normas constitucionais. Assim, o § 2º do art. 5º estaria incluindo no catálogo constitucional os direitos enunciados nesses tratados.
Outra parte da doutrina vai além, sustentando a tese do status supraconstitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos, ou seja, situando-os inclusive acima da própria Constituição.
6.6. A Emenda Constitucional nº 45/2004
Diante das controvérsias, a EC nº 45, de dezembro de 2004, acrescentou o § 3º ao art. 5º da CF, dispondo que:
“Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
Antes da emenda, tais tratados eram aprovados por maioria simples, via decreto legislativo (art. 49, I, da CF/88), e posteriormente ratificados pelo Presidente da República, como qualquer outro tratado internacional. Isso gerava controvérsia sobre sua hierarquia, pois aparentemente possuíam apenas nível infraconstitucional, equivalente ao das leis ordinárias.
Com a EC 45/2004, os tratados de direitos humanos passaram a poder ter hierarquia de emenda constitucional, desde que aprovados pelo quórum qualificado. Surgiram, então, novas dúvidas:
Apenas os tratados aprovados pelo rito qualificado seriam equivalentes a emendas?
E os tratados anteriores à emenda, já ratificados pelo Brasil, perderiam eventual status constitucional atribuído pelo § 2º do art. 5º?
Parte da doutrina entende que os tratados de direitos humanos já são materialmente constitucionais pelo § 2º, independentemente do § 3º. Este último apenas traria a possibilidade de que, além de materialmente constitucionais, fossem também formalmente constitucionais, caso aprovados pelo rito qualificado.
6.7. A jurisprudência do STF
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 466.343-SP, em dezembro de 2008, modificou seu posicionamento acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos. A Corte entendeu, por maioria, que tais tratados, antes equiparados às normas ordinárias federais, possuem status supralegal, situando-se acima da legislação ordinária, mas abaixo da Constituição. Esse entendimento, contudo, admite a possibilidade de os tratados adquirirem hierarquia constitucional, desde que observados os requisitos do § 3º do art. 5º da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004.
Com base nessa nova orientação, os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil passaram a ostentar hierarquia superior às leis ordinárias (supralegal ou constitucional), de modo que eventuais normas internas em conflito devem ser revogadas por força da antinomia jurídica.
A pirâmide normativa do ordenamento brasileiro, a partir dessa decisão, passou a ser configurada da seguinte forma:
base: leis ordinárias e complementares;
nível intermediário: tratados de direitos humanos aprovados sem o quórum qualificado do § 3º do art. 5º da CF (status supralegal);
topo: Constituição e tratados de direitos humanos aprovados com quórum qualificado, equivalentes a emendas constitucionais.
Embora não tenha seguido a posição defendida por parte da doutrina, em especial pelo Ministro Celso de Mello — segundo a qual os tratados de direitos humanos possuem natureza constitucional independentemente do rito de aprovação —, o novo entendimento representou grande avanço. Rompeu-se com a antiga equiparação entre tratados de direitos humanos e leis ordinárias, reconhecendo-se uma hierarquia normativa diferenciada a esses instrumentos internacionais.
6.8. Conclusões
Como já visto, os tratados em geral, quando recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro, adquirem o status de normas infraconstitucionais. Nesses termos, uma vez promulgados, revogam todas as normas anteriores contrárias ao seu conteúdo e, por outro lado, podem ser revogados por leis posteriores em caso de conflito.
No que se refere aos tratados de direitos humanos acolhidos como normas supralegais, situam-se acima da legislação ordinária, mas, em caso de conflito com a Constituição, prevalecem as normas constitucionais.
Já os tratados de direitos humanos que adquirirem hierarquia constitucional, nos termos do art. 5º, § 3º, da CF, passam a constituir cláusulas pétreas, não podendo ser suprimidos sequer por emenda constitucional. Tornam-se insuscetíveis de denúncia e possuem aplicabilidade imediata tão logo sejam ratificados. Assim, desde a entrada em vigor do tratado internacional, toda norma interna incompatível perde automaticamente sua vigência.
Ademais, torna-se recorrível qualquer decisão judicial que viole as prescrições do tratado. Em caso de conflito entre normas constitucionais e normas internacionais de direitos humanos, deverá prevalecer a interpretação mais favorável ao titular do direito.
Importa destacar que, diferentemente da posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, autores como Pontes de Miranda defendem que os Estados estão submetidos a uma ordem supraestatal, de modo que a incidência dos direitos fundamentais não depende do reconhecimento constitucional. Esses direitos, por pertencerem a uma ordem jurídica exterior e superior ao Estado, impõem limites não apenas ao poder estatal, mas também ao próprio poder constituinte, o qual se vê obrigado a incorporá-los à Constituição e a cercá-los das garantias necessárias à sua efetividade.
Os direitos fundamentais supraestatais são considerados paradigmas de validade das normas de direito interno, inclusive das constitucionais. Nenhuma norma interna pode ser interpretada ou aplicada em contradição com a Constituição e com os direitos fundamentais de caráter supraestatal. O Estado, além disso, tem a obrigação de incorporá-los à Constituição e de assegurar os meios necessários para sua efetividade.
Cabe ao Poder Judiciário e aos demais Poderes Públicos assegurar a implementação, no âmbito nacional, das normas internacionais de proteção dos direitos humanos ratificadas pelo Brasil; ao Congresso Nacional, a obrigação negativa de abster-se de legislar em sentido contrário às obrigações internacionais assumidas; e aos cidadãos, como beneficiários diretos desses instrumentos, o direito de reclamar, perante os órgãos judiciais, a satisfação das garantias estabelecidas nos tratados.
Considerando que o Direito Internacional ainda não dispõe de mecanismos de controle suficientemente organizados para aplicar, de modo eficaz, sanções aos Estados que descumprem obrigações assumidas em tratados, conclui-se que a efetividade dos direitos humanos depende, em grande parte, da boa vontade e da cooperação dos Estados individualmente considerados.