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Igrejas ou organizações criminosas?

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26/12/2018 às 15:55
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A CONSTITUIÇÃO DAS IGREJAS E O DESVIRTUAMENTO DA IMUNIDADE RELIGIOSA

A Criação das Entidades Religiosas

As entidades religiosas são pessoas jurídicas de direito privado e constituem-se a partir do registro do Estatuto de sua fundação e constituição perante o Cartório de Registro de Pessoa Jurídica e do credenciamento no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) junto à Receita Federal.

Verifica-se que, por força do que dispõe o artigo 44 do Código Civil, as igrejas são pessoas jurídicas de direito privado na modalidade de entidade religiosa, e ainda, o primeiro parágrafo do aludido dispositivo legal estabelece que:

Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:

(…)

IV - as organizações religiosas;

§ 1º - São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. (BRASIL, 2002)

Conforme se pode verificar da nova redação dada ao artigo 44 do Código Civil de 2002 pela Lei 10.825/2003, as entidades religiosas passaram a ter personalidade própria, sendo livres a sua criação e organização, estando o Estado impedido de negar reconhecimento e registro aos seus atos constitutivos, tal proteção foi estabelecida para resguardar o direito à liberdade religiosa, consagrado no artigo 5º, inciso VI da Constituição Federal de 1988.

A Lei 10.825/2003 conferiu às igrejas uma personalidade jurídica distinta das associações, não sendo mais obrigadas a estabelecerem seus ordenamentos e organização com base nas diretrizes elencadas nos artigos 53 a 61 do Código Civil, podendo estabelecer sua gerência e organização com base nos seus princípios, doutrina e visão.

Isto significa que as Igrejas, podem ser constituídas e organizar sua administração de forma extremamente específica, sem ater-se ao antigo regramento voltado às associações, estabelecendo, verdadeiramente a liberdade religiosa apregoada em nossa Carta Magna. (PICCININI, 2017).           

Existe uma facilidade em se constituir uma entidade religiosa no nosso ordenamento civil, conforme foi demonstrado acima. E ainda, o Código Tributário Nacional se omite na questão de exigir determinadas especificidades para a concessão da imunidade dos templos religiosos, enquanto que, em seu artigo 14, subordina os partidos políticos, entidades sindicais dos trabalhadores, as instituições de educação e de assistência social, à observância dos requisitos citados no referido artigo.

O jornalista da Folha de São Paulo, Schwartsman (2009) fez uma matéria a respeito desta facilidade de se abrir um templo religioso no Brasil, intitulada de “Heliocentrismo”.      

Eu, Cláudio Ângelo, editor de Ciência da Folha, e Rafael Garcia, repórter do jornal, decidimos abrir uma igreja. Com o auxílio técnico do departamento Jurídico da Folha e do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo Gasparian Advogados, fizemo-lo. Precisamos apenas de R$ 418,42 em taxas e emolumentos e de cinco dias úteis (não consecutivos). É tudo muito simples. Não existem requisitos teológicos ou doutrinários para criar um culto religioso. Tampouco se exige número mínimo de fiéis. Com o registro da Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio e seu CNPJ, pudemos abrir uma conta bancária na qual realizamos aplicações financeiras isentas de IR e IOF. Mas esses não são os únicos benefícios fiscais da empreitada. Nos termos do artigo 150 da Constituição, templos de qualquer culto são imunes a todos os impostos que incidam sobre o patrimônio, a renda ou os serviços relacionados com suas finalidades essenciais, as quais são definidas pelos próprios criadores. Ou seja, se levássemos a coisa adiante, poderíamos nos livrar de IPVA, IPTU, ISS, ITR e vários outros "Is" de bens colocados em nome da igreja.

Portanto, observa-se claramente das palavras de Schwartsman, que este não teve dificuldade alguma para constituir uma igreja, a qual sequer possuía um culto, mas através da criação da entidade religiosa, facilmente se viu “livre” da obrigação de pagar impostos, o que demonstra um desvirtuamento na concessão da imunidade tributária dos templos religiosos.

Desvirtuamento na Finalidade da Imunidade Tributária dos Templos Religiosos

É assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, estabelecido no art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal, pois se considera o referido direito como fundamental à vida do indivíduo e positivação do mínimo existencial em nosso ordenamento pátrio. E sendo o Brasil um Estado laico, a forma que o Constituinte originário estabeleceu para assegurar a efetivação deste direito, foi a concessão de imunidade tributária para os templos religiosos, ou seja, através do status negativus do Estado para cumprir com o mínimo existencial.

A incidência do Poder de Tributar sobre os templos religiosos seria uma barreira para a realização dos cultos, dificultando a livre manifestação de crença, ferindo, assim, um direito ao mínimo existencial.

Porém, a incidência de impostos sobre bens da Igreja pode ocorrer, desde que estes bens não sejam instrumentos do culto. Muito se discute a respeito do alcance da imunidade tributária dos templos religiosos, ou seja, a imunidade tributária abrangeria somente os templos ou alcançaria as demais atividades da igreja? E, ainda, o que buscava o Constituinte ao proporcionar tal proteção?

“Nenhum imposto incide sobre os templos de qualquer culto. Templo não significa apenas a edificação, mas tudo quanto seja ligado ao exercício da atividade religiosa. Não pode haver imposto sobre missas, batizados ou qualquer outro ato religioso. Nem sobre qualquer bem que esteja a serviço do culto. Mas pode incidir imposto sobre bens pertencentes à Igreja, desde que não sejam instrumentos desta. Prédios alugados, por exemplo, assim como os respectivos rendimentos, podem ser tributados. Não a casa paroquial, ou o convento, ou qualquer outro edifício utilizado para atividades religiosas, ou para residência dos religiosos.” (MACHADO, 2010, p. 250).

E ainda, quanto ao alcance da imunidade tributária religiosa, tem-se o seguinte entendimento jurisprudencial:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE RELIGIOSA. ALCANCE OBJETIVO NÃO ABRANGENDO II NEM IPI. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 150, III, b E § 4º, DA LEI MAIOR. DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA. 1. É a imunidade tributária uma limitação constitucional ao Poder de tributar. 2. As limitações constitucionais proibitivas ao Poder de Tributar (imunidades) devem ser compreendidas nos estritos limites em que positivadas. 3. O alcance objetivo da mesma recai quanto a impostos sobre renda, patrimônio e serviços, ainda assim no que relacionado aos fins essenciais da entidade. 4. A previsão da alínea b do inciso VI do art. 155, Lei Maior, não tem o condão de impedir a incidência de impostos que não recaiam “sobre o patrimônio, a renda e os serviços”, como o II e o IPI. 5. A não abranger dita imunidade o II nem o IPI, independentemente da finalidade, assim irrelevante. 6. Nenhum vício na conduta administrativa atacada, ausência, pois, de proibição constitucional a respeito da tributação combatida. 7. Apelo e remessa providos. Denegação da segurança. (TRF-3 - AMS: 4523 SP 2001.61.04.004523-1, Relator: JUIZ CONVOCADO SILVA NETO, Data de Julgamento: 20/07/2005, TERCEIRA TURMA)

Como se pode verificar, a imunidade dos tempos religiosos estabelecida no artigo 150, VI, “b” da Constituição Federal impede a incidência de impostos sobre o patrimônio, renda e serviços das entidades religiosas, destinadas a finalidade do culto e ainda, estará imune aos impostos o imóvel da igreja mesmo alugado a terceiros, desde que o valor do aluguel seja revertido em benefício das atividades da entidade religiosa, por força da aplicação da Súmula 724 do Supremo Tribunal Federal que foi transferida para a Súmula vinculante 52 do Supremo Tribunal Federal, que estabelece:

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Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, "c", da Constituição Federal, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades para as quais tais entidades foram constituídas. (STF – Súmula vinculante 52)

Todavia, a imunidade tributária religiosa tem sido também uma forma, para alguns, de evasão fiscal, ao passo que todos os patrimônios são colocados no nome da igreja blindando-os, assim, contra a cobrança de impostos.

Conforme demonstrado anteriormente, a facilidade na constituição da pessoa jurídica na modalidade religiosa possibilita o desvirtuamento da imunidade tributária dos templos religiosos. A princípio, o que seria uma efetivação de um direito ao mínimo existencial está se estendendo a uma facilidade para que contribuintes não recolham impostos.

O Desembargador Federal Fausto Martin De Sanctis (2014) alerta que “a imunidade tributária prevista aos templos religiosos é eficaz para abrigar recursos de procedência criminosa, sonegar impostos e dissimular o enriquecimento ilícito”.

 Contribuindo para essa situação, as dificuldades em fazer uma fiscalização efetiva, ou seja, uma fiscalização que não vai ultrapassar os limites estipulados pela lei, os desvios de finalidades da imunidade tributária têm aumentado nos últimos anos, sendo assim o cenário é propício para a evasão fiscal, o que destaca Eduardo Sabbag (2013, p.346) ao afirmar que:

“é lamentável que tal expansão traga a reboque, em certos casos, o cenário fraudulento em que inserem, sob a capa da fé, alguma ‘pseudo-igrejas’. Difusoras de uma religiosidade hipócrita, chegam a mascarar atividades ilícitas sob a função de ‘representantes do bem’.”

As várias versões da imunidade tributária e a facilidade para constituir uma igreja no Brasil colaboram para esse cenário tão complicado, em que verdadeiras organizações criminosas fazem seus impérios em nome da fé, colocando seus patrimônios em nome das entidades religiosas para a sonegação de seus tributos. Nesse ínterim tem-se grandes negócios religiosos fraudulentos; por mais que sejam claras aos olhos de todos, difícil se faz a comprovação de suas práticas delituosas.


CONCLUSÃO

Proporcionar uma vida digna ao indivíduo e à coletividade, observando os princípios Constitucionais, é a busca da nossa Carta Magna, que erradicando as desigualdades e a pobreza, visa propiciar um ambiente livre para exercício dos direitos, dentre eles, a liberdade de crença. Defender tal direito de qualquer forma de opressão estatal é a intenção do Constituinte ao conceder imunidade tributária aos templos religiosos, prevista no artigo 150, inciso VI, “b” da Constituição Federal. Sempre com vista a efetivar os direitos fundamentais do indivíduo e, por conseguinte trazer um conjunto de ações que pretendem garantir mínimas condições de dignidade para cada cidadão, garantindo, assim, condições iguais para todos.

A igreja, ou seja, as instituições religiosas contribuem para alcançar os objetivos Constitucionais, pois através dos seus trabalhos buscam colaborar com o Estado, a fim de oferecer a medida necessária para o bem estar do indivíduo, e de uma forma negativa, ou seja, através do status negativus, o Estado deixa de invadir a dignidade da pessoa humana. Apesar de o Brasil ser uma nação secular, entendeu o Poder Constituinte de que são inigualáveis os benefícios trazidos pela crença religiosa à sociedade, preservando, portanto, valores éticos e princípios morais.

Entretanto, a uma facilidade em se constituir uma entidade religiosa no ordenamento Civil e o Código Tributário Nacional se omite na matéria de exigir determinadas especificidades para a concessão da imunidade dos templos religiosos, portanto, há verdadeiras organizações criminosas que colocam todos os seus patrimônios no nome das entidades religiosas para escusar-se de pagar tributos, evidenciando um claro desvirtuamento na concessão da imunidade tributária dos templos religiosos.

Portanto, com o enrijecimento das normas existentes e com elaboração de novas leis reguladoras da imunidade tributária religiosa é que se terá efetividade na punição, daqueles que não possui qualquer finalidade de culto, mas constituem uma pessoa jurídica de direito privado na modalidade de entidade religiosa e coloca todo seu patrimônio em nome da igreja, visando deixar de pagar impostos.

Por fim, visando proteger a imunidade tributária religiosa, que é um direito ao mínimo existencial e cláusula pétrea, deve-se também combater o entendimento de que a fiscalização da administração tributária seria uma barreira para a realização dos cultos, e que tal medida dificultaria a livre manifestação de crença, afrontando os direitos fundamentais.

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Sobre o autor
Renato de Barros Fernandes

Universitário do 8º período de Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Renato Barros. Igrejas ou organizações criminosas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5656, 26 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70963. Acesso em: 29 mar. 2024.

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