RESUMO:
Palavras-chave: Processo de execução. Penhora Processual. Impenhorabilidade de salários.
INTRODUÇÃO
Este artigo pretende trazer à luz as diferenças trazidas pela Lei 13.105, de 16 de março de 2015, referente ao tema específico da impenhorabilidade de salários.
O tema se mostra pertinente por trazer ao juízo maiores possibilidades de satisfação do crédito exequente em situações quando o executado não possui bens penhoráveis. Assim, o processo chega a um impasse, em que, ao mesmo tempo em que o devedor tem o direito à preservação do mínimo essencial à dignidade da pessoa humana (art. 805) o credor também tem seu direito à satisfação do crédito (art. 797).
Promulgado o Código de Processo Civil de 2015, o credor adquire novas possibilidades de alcançar parte do salário do devedor sem que seja ferido o direito à subsistência da outra parte.
Trata-se, assim, de um avanço, possibilitando a mitigação da impenhorabilidade de salários em situações que antes não eram possíveis segundo o Código de Processo Civil anterior.
Além dos avanços alcançados pelo atual Código de Processo Civil, houve, durante a vigência do código posterior, tentativas de abranger a mitigação da impenhorabilidade através de modificações no código através de projetos de lei, porém, nenhuma das tentativas surtiu efeito, pois durante a tramitação nas casas legislativas, foram vetadas.
Por fim, a jurisprudência também traz possibilidades de mitigação.
2. Impenhorabilidade de salários no texto do Código de Processo Civil de 1973
Em seu texto, o Código de Processo Civil de 1973 consagrava a impenhorabilidade absoluta de bens em seu art. 649.
Consoante o entendimento majoritário da doutrina e jurisprudência, os bens elencados no artigo em tela e seus incisos consistiriam em vedação insuperável à constrição judicial. Assim, todos os bens ali elencados estariam excluídos da responsabilidade patrimonial genérica (art. 789 do CPC de 2015). Desta forma, tais bens não poderiam sofrer os efeitos da penhora e, consequentemente, de expropriação judicial. O salário, assim como outras formas de remuneração, está presente neste artigo, em seu inciso IV, o que, segundo a letra do código, o torna inalcançável como objeto de penhora
Porém, apesar de tratar como absolutamente impenhorável o salário, o próprio Código de Processo Civil trazia uma exceção à impenhorabilidade em todos os bens ali elencados. Tratando de crédito dotado de natureza alimentar, parte do salário poderia ser alcançado. A penhora de parte do salário assim se encontra perfeitamente justificada quando se tratar de dívida de alimentos, pois preservam a própria subsistência do alimentado.
Assim, segundo o Código de Processo Civil anterior, o salário tinha caráter de impenhorabilidade absoluta, com somente uma única regra para sua mitigação. O direito de subsistência do devedor era colocado acima do direito de satisfação do crédito do credor, sem que houvesse a possibilidade de alcançar o salário do devedor, independentemente da quantia recebida.
Além do já descrito acima, durante a vigência do Código de Processo Civil anterior, foi criado nova hipótese de impenhorabilidade absoluta, incluído no inciso X (referente a quantia de até 40 (quarenta) salários mínimos depositados em caderneta de poupança), advindo da Lei 11.382/2006. Trouxe também a possibilidade de mitigação da impenhorabilidade, em seu §1º, referente a possibilidade de penhora de bem quando o crédito exequendo houver sido concedido para a aquisição do próprio bem.
De tal forma, houve mudanças no Código de Processo Civil de 1973 durante sua vigência, mas nada que mudasse a situação de impenhorabilidade absoluta do salário.
2.1 Tentativas de mudança da impenhorabilidade da penhora na vigência do Código de Processo Civil de 1973
Legisladores que defendiam a mitigação da impenhorabilidade de salários criaram o PL 4.497/2004, trazendo diversas alterações ao processo de execução, além da inclusão do §3º ao art. 649.
O §3º trazia uma exceção a impenhorabilidade dos bens elencados no inciso IV. Nele continha a possibilidade de penhora de até 40% (quarenta por cento) do total recebido mensalmente que ultrapassasse a marca de 20 (vinte) salários mínimos, independentemente da natureza do crédito exequendo.
Considerando as condições geográficas continentais e socioeconômicas do Brasil, a proposta parece razoável, pois estabelece tanto uma condição para a possibilidade da penhora (valor acima de 20 salários mínimos) quanto um limite (quarenta por cento do valor).
O PL 4.497/2004 foi aprovado e convertido na Lei 11.382/2006, porém, o §3º sofreu veto pelo Presidente da República. Interessante notar no veto que é reconhecido a razoabilidade da proposta, porém, é vetada puramente pela “tradição jurídica brasileira” [1].
Após o veto presidencial ao §3º, começa a tramitar o PL 2.139/2007. O projeto de lei tinha a intenção de modificar o inciso IV do art. 649, descrevendo como impenhoráveis somente 2/3 (dois terços) do salário e outras remunerações, possibilitando a penhora de até 1/3 (um terço) do salário do devedor para crédito de qualquer natureza.
A justificativa para a modificação vem pelo motivo de “inadimplência de obrigações contraídas de forma legítima, em detrimento de boa fé do credor, que não tem outro meio de receber seu crédito senão através de penhora de parte da verba que, por justiça, pode ser destinada ao pagamento de tais obrigações". [2] O projeto de lei nunca chegou a ser aprovado.
2.2 Jurisprudência referente a impenhorabilidade de salários
Depois de inefetivas tentativas de criar possibilidades de mitigação da impenhorabilidade de salários, muitos juízes passaram a possibilitar a penhora de parte de salários, de crédito de qualquer natureza, dando fundamento jurídico a suas decisões.
É o caso, por exemplo, de acórdão em recurso especial que permitiu a penhora de 30% sobre salário no montante de R$ 3.600,00 [3].
No caso em questão, motivou-se a decisão através de um juízo de ponderação entre a dignidade da pessoa humana e a efetividade da execução:
Busca-se, nesse contexto, harmonizar duas vertentes do princípio da dignidade da pessoa humana – de um lado, o direito ao mínimo existencial; de outro, o direito à satisfação executiva [4].
Também o Tribunal de Justiça de Minas Gerais se utilizou dos princípios da dignidade da pessoa humana e da satisfação executivo para flexibilizar a impenhorabilidade:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - EXECUÇÃO - PENHORA ON LINE - SISTEMA BACENJUD - NUMERÁRIO PROVENIENTE DE SALÁRIO - RELATIVIZAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE - HARMONIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA EFETIVIDADE DA EXECUÇÃO E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - BLOQUEIO DE 30% - RAZOABILIDADE. 1. Reza o art. 649 do CPC que são absolutamente impenhoráveis os vencimentos, subsídios, soldos, salário, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios. 2. Entretanto, a interpretação sistemática do texto conduz à relativização da impenhorabilidade, para a constrição de 30% dos valores depositados na conta bancária destinada ao recebimento do salário, como forma de harmonizar os princípios da efetividade da execução (o credor tem direito de satisfazer o direito já reconhecido), sem que seja afetada a dignidade do devedor (para pagar o que deve, o devedor não pode inviabilizar a sua sobrevivência digna). 3. Recurso parcialmente provido [5] [Grifos nossos].
Poderíamos citar, a título de exemplo, muitos outros casos de flexibilização utilizando os mesmos princípios [6].
Por fim, é interessante notar que muitos dos julgados que dão improcedência a determinado pedido de penhora de salários, fazem-no não obstante reconheçam, em abstrato, a possibilidade desse tipo de penhora. [7]
3. A impenhorabilidade de salários no texto do Código de Processo Civil de 2015
Quando formulado o anteprojeto de lei do Código de Processo Civil de 2015, o texto referente a impenhorabilidade absoluta e seus incisos mantinha a mesma rigidez encontrada no Código de Processo Civil anterior. Isto é, ainda continha a rigidez referente a impenhorabilidade absoluta do salário. Porém, o Anteprojeto de lei, PLS 166/2010, ao tramitar pelas casas legislativas e após Audiências Públicas de Jurista realizadas para colher sugestões ao atual Código de Processo Civil, seu texto foi modificado e trouxe mais uma possibilidade de mitigação da impenhorabilidade de salários assim como modificou outra.
CONCLUSÃO
A partir de leis, pensamentos e jurisprudência aqui expostos, há de se concluir que a impenhorabilidade de salários no âmbito do processo de execução, apesar de ser salutar no sentido de que protege o assalariado, ao mesmo tempo pode gerar injustiças e inconvenientes práticos, a depender do caso concreto.
Tanto é assim que o tema ainda gera discussões acerca de sua possibilidade, e há indicações, ainda que tímidas, para uma crescente flexibilização no âmbito legislativo – vide por exemplo as alterações introduzidas pelo novo Código de Processo Civil, bem como o fato de que, antes mesmo da confecção do projeto de lei do atual Código de Processo Civil, muitos doutrinadores já argumentavam sobre a possibilidade de penhora parcial de salários.
A Lei 11.382/2006 e o projeto de lei 2.139/2007 são exemplos de que a discussão não é atual e, além disso, sempre gerou inquietação, haja vista os vetos presidenciais à lei e a não aprovação ao projeto.
A promulgação do atual Código de Processo Civil trouxe mudanças levianas para o caso, restringindo-se aos casos raros de devedores que recebam um salário no monte superior a 50 (cinquenta) salários mínimos.
De tal forma, resta claro que a doutrina em sua maioria ainda apoia a defesa do devedor e da sua subsistência a qualquer custo, lesando a dignidade do credor em conseguir a satisfação do crédito.
Apesar das discussões e de mostrar que mesmo com o parcial afastamento da impenhorabilidade da penhora o direito de subsistência do devedor ainda será preservada, as mudanças para tanto demoram e são tímidas.
Não resta ao credor fazer mais nada, com a lei e a doutrina blindando o salário do devedor, o débito que foi contraído e não adimplido continuará em execução nos nossos tribunais por tempo indeterminado, contribuindo para com o inadimplemento.
REFERÊNCIAS
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Notas
1“A proposta parece razoável porque é difícil defender que um rendimento líquido de vinte vezes o salário mínimo vigente no País seja considerado como integralmente de natureza alimentar. Contudo, pode ser contraposto que a tradição jurídica brasileira é no sentido da impenhorabilidade, absoluta e ilimitada, de remuneração. Dentro desse quadro, entendeu-se pela conveniência de opor veto ao dispositivo para que a questão volte a ser debatida pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral.” BRASIL, Presidência da República, Mensagem nº 1.047 de 6 de dezembro de 2006, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Msg/Vep/VEP-1047-06.htm>. Acesso em 28 set. 2018.
2 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=508138&filename=PL+2139/2007>. Acesso em 30 de setembro de 2018.
3 STJ - REsp: 1658069 GO 2016/0015806-6, Relatora: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 14/11/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/11/2017
4 Idem.
5 TJ-MG - AI: 10671070020902001 MG, Relator: Raimundo Messias Júnior, Data de Julgamento: 30/04/2013, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 13/05/2013
6 V. por exemplo, TJ-RS - AI: 70077515393 RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Data de Julgamento: 13/09/2018, Décima Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 19/09/2018;
TJ-RJ - MS: 00006793420188199000 RIO DE JANEIRO JACAREPAGUA REGIONAL XVI JUI ESP CIV, Relator: PAULO MELLO FEIJO, Data de Julgamento: 10/04/2018, CAPITAL 3a. TURMA RECURSAL DOS JUI ESP CIVEIS, Data de Publicação: 12/04/2018;
TJ-MT - AI: 00290232820118110000 29023/2011, Relator: DES. GUIOMAR TEODORO BORGES, Data de Julgamento: 14/06/2011, PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 07/07/2011;
TJ-RJ - MS: 00020930420178199000 RIO DE JANEIRO SAO JOSE DO VALE DO RIO PRETO J ESP ADJ CIV, Relator: JUSSARA MARIA DE ABREU GUIMARAES, Data de Julgamento: 15/03/2018, CAPITAL 3a. TURMA RECURSAL DOS JUI ESP CIVEIS, Data de Publicação: 16/03/2018
7 V., por exemplo, TJ-SP 21224204620188260000 SP 2122420-46.2018.8.26.0000, Relator: Edgard Rosa, Data de Julgamento: 31/07/2018, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 31/07/2018, bem como (TJ-SP 20888471720188260000 SP 2088847-17.2018.8.26.0000, Relator: Edgard Rosa, Data de Julgamento: 28/06/2018, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 04/07/2018)