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A suspensão do fornecimento de energia elétrica ao usuário inadimplente e a Constituição Federal

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4. Os Serviços Públicos e a Constituição Federal

Em face da Constituição Federal de 1988 (art. 175), entendemos conceituarem-se como serviços públicos todos aqueles prestados pelo Poder Público, quer diretamente ou por intermédio de seus delegados, os quais se submetem às regras e controles do Estado. O serviço público é, por natureza, estatal.(28)

Nesse contexto, pouco importa a sua classificação em administrativos, industriais, uti singuli e uti universi, eis que a sua natureza será sempre pública tão-só pelo fato de a Constituição assim ter definido.

Calha, nesse diapasão, a doutrina do ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello(29): "A Carta Magna do País já indica, expressamente, alguns serviços antecipadamente propostos como da alçada do Poder Público federal. É o que se passa com o serviço postal e o Correio Aéreo Nacional (art. 21, X, da Constituição), com os serviços de telecomunicações, de rádio difusão sonora e de sons e imagens, serviços e instalações de energia elétrica, navegação aérea, aeroespacial, infra-estrutura aéreoportuária, transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território, transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, exploração dos portos marítimos, fluviais e lacustres (art. 21, XII, letras "a" a "f"), seguridade social (art. 194) e educação (arts. 205 e 208)." (Grifamos)

Neste particular, é certo que os potenciais de energia hidráulica são bens da União (CF, art. 20, VIII), a ela cabendo explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, "os serviços e instalações de energia elétrica" (CF, art. 21, XII, b), além de lhe competir, exclusivamente, legislar sobre energia (CF, art. 22, IV). Daí concluir-se que o bem energia elétrica é de natureza pública, e não de índole, mesmo que remotamente, privada.

A Constituição Federal, em face dos artigos transcritos, deixou claro que a prestação do serviço em questão, por ser essencial, deve ser sempre fornecido visando atender, exclusivamente, os interesses da população.

De mais a mais, há que se observar que o prestador do serviço privado estrutura sua operação econômica com finalidade diversa da satisfação do interesse público. Ele busca obter o maior lucro possível, tendo em vista os princípios da atividade econômica em sentido estrito (CF, art. 170). Já o prestador do serviço público desempenha atividade disciplinada pelos princípios de direito público e apenas pode intentar a satisfação egoística de seu interesse de lucro na medida em que se realize o interesse público.(30)

4.1. Os Princípios

Princípio, em linguagem leiga, dá a idéia de começo, origem, base.

Princípios, por sua vez, são proposições diretoras de uma ciência, as quais todo o desenvolvimento posterior desta ciência deve estar subordinado.(31)

Na seara do Direito, pode-se dizer que os princípios jurídicos são enunciados lógicos, implícitos ou explícitos, que, por sua grande generalidade, ocupam posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vinculam, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com eles se conectam.(32), (33)

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.(34)

Os princípios jurídicos constituem a base do Ordenamento jurídico, a parte permanente e eterna do Direito e, também, o fator cambiante e mutável que determina a evolução jurídica; são as idéias fundamentais e informadoras da organização jurídica da Nação.(35)

E, precisamente por constituir a base mesma do Ordenamento, não é concebível uma norma legal que o contravenha.(36)

Por isso, violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se a toda estrutura neles esforçada.(37)

Desta forma, está revelada a gigantesca importância de um princípio num sistema jurídico, de maneira que, insofismaticamente, podemos concluir que ao se ferir uma norma, indiretamente estar-se-á ferindo um princípio daquele sistema, que na sua essência estava embutido.(38)

A Constituição Federal não estampou explicitamente em seu texto os princípios que informam a prestação de serviços públicos. Daí a importância de extraí-los da sistemática constitucional então vigorante.

Segundo entendemos, quatro são os princípios relativos à prestação de serviços públicos: adequação, generalidade, segurança e continuidade.

Adequação consiste em eficiência do ponto de vista técnico. A atividade deve ser estruturada segundo as regras técnicas a ela pertinentes e de modo a que se constitua em meio causalmente próprio para satisfazer necessidades dos usuários. A atividade em que se materializa o serviço público é um meio-causa que deve conduzir a um fim-conseqüência. Não será adequado o serviço que não for apto a satisfazer, do ponto de vista técnico, a necessidade que motivou a sua instituição.(39)

Generalidade consiste na universalização da oferta do serviço, para propiciar sua fruição por todos os potenciais usuários. Se o serviço não se destina a ser ofertado a um número indeterminado de usuários, sequer se caracteriza como público. Isso não impede a imposição de limites quantitativos na operação do serviço. É óbvio que as dimensões materiais do instrumental necessário à prestação do serviço podem acarretar limites insuprimíveis. Haverá um número máximo de passageiros transportáveis através de certo veículo, por exemplo. O que se pretende indicar, porém, é que o serviço público consiste em prestação de utilidade a todos os potenciais interessados, ainda que as razões materiais e de segurança possam acarretar a limitação quantitativa. Generalidade consiste em uma peculiaridade de outra natureza, portanto. Caracteriza-se quando se oferta o serviço ao maior número possível de usuários, abrangendo todas as manifestações de necessidades, sem discriminações incompatíveis com o princípio da isonomia. Ofende-se a generalidade não com mera fixação de limites, mas com o privilégio na eleição dos usuários que serão beneficiados. Outra manifestação de ofensa à generalidade se verifica quando uma parte significativa do universo de usuários não é atendida.(40)

Segurança é o desenvolvimento da atividade sem pôr em risco a integridade física e emocional de quem quer que seja (usuários e não usuários). Não existe segurança em termos absolutos, na acepção da eliminação de todo e qualquer risco, em virtude da inviabilidade de subordinar a ocorrência dos eventos futuros a esquemas cognoscitivos e a vontade humana. Logo, não se pode qualificar um serviço como inadequado simplesmente por ter-se verificado ocasional ofensa à integridade física ou emocional de usuários. Segurança significa, no caso, a adoção das técnicas conhecidas e de todas as providências possíveis para reduzir os riscos de danos, ainda que assumindo ser isso insuficiente para impedir totalmente sua concretização.(41)

O item da segurança envolve uma relação de custo-benefício, onde se consideram as vantagens e as desvantagens das providências destinadas à redução dos riscos. Mas os resultados seriam extremamente perversos, se fosse viável tomar apenas os fatores econômicos. A dignidade da pessoa humana é incompatível com avaliações de natureza meramente econômica. Não se compatibiliza com a Constituição promover avaliação econômica da vida humana, dos atributos do homem ou de sua personalidade. Portanto, quando se alude à relação custo-benefício, indica-se uma relação cujo objeto é o interesse público. Se estiverem em jogo apenas interesses econômicos, a relação custo-benefício pode ser tomar em vista exclusivamente fatores econômicos. Mas, quando o risco envolver a dignidade do ser humano, os argumentos de custo econômico devem ser ponderados em face da amplitude do problema. Esta construção se entranha com o desenvolvimento social e econômico. O subdesenvolvimento provoca menosprezo à vida e à dignidade humanas. A viabilidade da existência do serviço acaba por superar a relevância de sua adequação. Ainda quando a pobreza e a ausência de disponibilidade de recursos técnicos impossibilitem providências mais sofisticadas acerca da segurança, isso não significa liberação do prestador do serviço de cautelas dessa ordem. Como se afirmou, todas as cautelas e providências possíveis, em face das circunstâncias, devem ser adotadas.(42)

Continuidade é a ausência de interrupção, segundo a natureza da atividade desenvolvida e do interesse a ser atendido. Em termos práticos, é claro que a continuidade se avalia diferentemente conforme se trate de fornecimento de água ou de transporte de passageiros. Observe-se que regularidade, sob um certo ponto de vista, pressupõe continuidade. Aquela é um plus relativamente a esta. Os serviços podem ser contínuos, sem que sejam regulares. Mas é impossível o serviço ser regular, se também não for contínuo.(43), (44)

De todos os princípios relativos à prestação de serviços públicos, temos que o da continuidade é o que desempenha importância vital para o sistema constitucional. E tal fato, para nós, possui o seguinte fundamento: a Constituição Federal erigiu à condição de públicos vários serviços que entendeu desempenharem papel de extrema importância na sociedade, devendo ser sempre fornecidos visando à satisfação do seu interesse.(45)

O professor Caio Tácito(46) dá bem a idéia da importância de referido princípio quando aponta: "O princípio da continuidade do serviço público impõe ao concessionário o dever de prosseguir na exploração mesmo se for ruinosa. À Administração incumbe, correlatamente, partilhar das cargas extraordinárias, restaurando a economia abalada e a eficácia da execução do contrato." (Grifamos)

Logo, conclui-se desde já que a interrupção do fornecimento de energia nos casos de impagamento das contas de consumo pelo usuário jamais ocorrerá no interesse da coletividade(47), mas, sim, contra, pois não é demasiado difícil imaginar os nefastos efeitos que a interrupção, mesmo quando temporária, acarreta às pessoas.

Em remate, estes são os princípios norteadores da prestação dos serviços públicos implicitamente agasalhados pelo texto constitucional. Na qualidade de verdadeiros princípios, sua força cogente independe de consagração em obra do legislador. Por outro lado, sua recepção em texto legal não lhe acarreta a perda do valor de fonte principal do direito, com as funções de fundamento, interpretação e integração do ordenamento. A conversão em lei, antes de degradá-los, tem o condão de reavivar a sua existência, a fim de que não sejam esquecidos pelos agentes incumbidos da concreção dos fins da ordem jurídico-econômica. Os imperativos que governam a ordem jurídica, tendentes à purificação das condutas extrapoladoras do exercício normal dos direitos, praticado ou não pelo mais forte economicamente, não concebem que tais princípios, plasmados no CDC, fiquem custodiados dentro do encerro legal.(48)

Ressaltada a importância dos princípios na interpretação e aplicação do Direito, passemos a analisar se a Constituição Federal admite a interrupção do fornecimento de energia elétrica em face do impagamento das contas de consumo.


5. A Suspensão do Fornecimento de Energia face ao Inadimplemento das Contas de Consumo

5.1. A Inconstitucionalidade do art. 6º, § 3º, inciso II, da Lei nº 8.987/95

Após o advento da Lei nº 8.987/95, a qual normatizou os institutos da concessão e permissão dos serviços públicos, vários foram os autores que decretaram peremptoriamente que a partir daquela data a interrupção da prestação dos serviços públicos por falta de pagamento encontrava-se legalizada, e, portanto, autorizada, ante os termos do § 3º, inciso II, do seu art. 6º, verbis:

"Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

(...)

§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

(...)

II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade."

Destarte, em que pese a letra fria do texto legal, o artigo 6º, § 3º, inciso II, da Lei nº 8.987/95, viola inúmeros dispositivos constitucionais e, inclusive, o Princípio Constitucional da Continuidade dos Serviços Públicos, como dantes exposto. Vejamos.

5.1.1. A Violação ao Princípio da Boa-Fé Objetiva

Segundo a doutrina civilista clássica, boa-fé é a intenção pura, isenta de dolo ou malícia, manifestada com lealdade e sinceridade, de modo a não induzir a outra parte ao engano ou erro.(49) É a chamada boa-fé subjetiva, um estado de ignorância sobre características da situação jurídica que se apresenta, suscetível de lesionar os direitos de outrem.

Atualmente, a noção clássica de boa-fé subjetiva vem cedendo espaço à sua face objetiva, a qual leva em consideração a prática efetiva e as conseqüências de determinado ato em lugar de indagar sobre a intenção do sujeito que o praticou. A boa-fé objetiva diz respeito a elementos externos à norma de conduta, que determinam como se deve agir. É um dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura, honestidade.(50)

De acordo com Karl Larenz(51), "El principio de la "buena fe" significa que cada uno debe guardar "fidelidad" a la palabra dada y no defraudar la confianza o abusar de ella, ya que ésta forma la base indispensable de todas las relaciones humanas; suppone el conducirse como cabía esperar de cuantos con pensamiento honrado intervienen en el tráfico como contratantes o participado en él en virtud de otros vínculos jurídicos. Se trata, por lo tanto, de un módulo "necesitado de concreción" que únicamente nos indica la dirección en que hemos de buscar la contestación a la cuestión de cuál sea la conducta exigible en determinadas circunstancias. No nos da una regra apta para ser simplemente "aplicada" a cada caso particular y para leer en ella la solución del caso cuando concurran determinados presupuestos. Sino que en cada supuesto se exige un juicio valorativo del cual deriva lo que el momento y el lugar exijan. Pero este juicio no se obtiene a través del criterio subjetivo del que hace la apreciación en caso de litígio, por conseguinte, del juez, sino que se tomará como módulo el pensamiento de un intérprete justo y equitativo, es decir, que la sentencia ha de ajustarse a las exigencias generalmente vigentes de la justicia, al criterio reflejado en la conciencia jurídica del pueblo o en el sector social al que correspondan los participantes (p. ej., comerciantes, artesanos, agricultores), en tanto ello no sea contrario a las exigencias y al contenido objetivo de los valores descritos en las palabras "fidelidad" y "crédito" (es decir, confianza). A este juicio cooperan los usos y concepciones ya existentes en el tráfico – habiendo de investigarse a su vez si coinciden con aquellas supremas exigencias – y de otra parte el ejemplo y modelo que la jurisprudencia ofrece en la valoración de casos análogos o equiparables." (Grifamos)

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Segundo anota o professor Alberto do Amaral Júnior(52), "O princípio da boa-fé objetiva foi, aliás, implicitamente reconhecido pela Constituição Federal, que no art. 3º, determina: "Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - constituir uma sociedade livre, justa e solidária."

A justiça e solidariedade nas relações de consumo, para usar os termos do art. 3º do texto constitucional, significa a repressão das cláusulas abusivas visando à obtenção do equilíbrio das relações de consumo."

A interpretação do princípio da boa-fé em chave constitucional revela novos parâmetros através dos quais a relação obrigacional, antes fundada determinantemente no princípio da autonomia da vontade, deve ser enquadrada no sistema jurídico. Estes novos parâmetros, que no caso específico da boa-fé sinalizam para o dever de cooperação entre as partes vinculadas por uma relação obrigacional, para o dever, enfim, de consideração pelos interesses alheios à luz do escopo econômico-social da relação em questão, poderiam ser resumidos através do imperativo ético de solidariedade contratual.(53)

Na base do conjunto de princípios e em razão da influência do aspecto moral, encontra-se o princípio da boa-fé, segundo o qual as partes devem pautar a sua atuação em consonância com a lealdade e com a confiança recíprocas que a vida de relações impõe. Cumpre a cada qual respeitar a posição do outro contratante e operar com fidelidade e com probidade, a fim de que alcance os objetivos pretendidos com o contrato, agindo consoante padrões éticos normais à contratação pretendida.(54)

Presente tanto na formação, na conclusão e na execução, o princípio impregna de moralidade a atividade negocial, na defesa de valores básicos da convivência humana e de direitos ínsitos na personalidade. Com isso, o comportamento da parte deve, em todos os diferentes momentos do relacionamento, desde a aproximação à consecução de todas as obrigações, estar imbuído de espírito de lealdade, respeitando cada um o outro contratante e procurando, com a sua ação, corresponder às expectativas e aos interesses do outro contratante. Fidelidade à palavra, lealdade no tratamento e cumprimento adequado das obrigações, consoante padrões normais à contratação a que se vincula, são, pois, noções componentes do princípio em questão, que encontra, ademais, consagração legislativa em vários pontos das codificações, inclusive a nossa, que em diferentes situações protege especialmente a parte que, em sua ação, o obedece (como, dentre outros, nos casos de aquisição de boa-fé, atuação, por outrem, de boa-fé; posse de boa-fé).(55)

É, em verdade, princípio cardeal do sistema jurídico romano-cristão, cuja base ética é realçada na doutrina, exatamente em razão de concepções ideológicas relacionadas à própria natureza humana, donde se extrai, no fundo, o direito aplicável a cada civilização, em consonância, substancialmente, com a alma da coletividade e, formalmente, à regra da maioria para a sagração.(56)

Em decorrência desse princípio, são reconhecidos deveres correlatos ou laterais em todas as espécies contratuais, que se incorporam às relações negociais, exigindo aos contratantes comportamentos adequados, principalmente em vínculos que se estendem no tempo.(57)

Pontifica o Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior(58) que "A boa fé é uma cláusula geral que permite a solução do caso levando em consideração fatores metajurídicos e princípios jurídicos gerais. Funciona, porém dentro do sistema, no sentido de que nele encontra sua fundamentação e dele retira o caráter juridicamente normativo de seu enunciado. Como "janela" do sistema jurídico, a boa fé permite conhecimento dos elementos externos não positivados, ou positivados para outro sentido, que se impõe à consideração e pode levar à uma decisão para além do que estava programado (culpa post pactum finitum) ou mesmo em contrário (supressio; adimplemento substancial) a algum preceito expresso, que é assim reelaborado ou desconsiderado em razão da função prevalente do princípio. A concepção de sistema aberto é, portanto, indispensável à compreensão da cláusula da boa fé, mas, entenda-se, aberto interna e externamente. O arbítrio deve ser rigorosamente controlado, tanto mais quanto maiores as facilidades de seu uso pela reunião de uma cláusula geral a conceitos indeterminados; o afastamento da discricionariedade e do psicologismo se garante pela necessidade de fundamentação da decisão e de sua conformidade com o ordenamento jurídico global.

A boa fé tem duas funções principais: cria deveres secundários de conduta (anexos ou acessórios); impõe limites ao exercício de direitos."

Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação "refletida", uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização do interesse das partes.(59)

Quando as empresas-concessionárias ameaçam suspender o fornecimento de energia elétrica aos usuários sob o fundamento de existirem débitos tarifários, e ainda, apurados unilateralmente, estão a agir em desconformidade à boa-fé objetiva, vale dizer, de forma desleal, injusta, eis que desproporcional ao fim a que se destina se apresenta a prática empreendida, pois o único objetivo é o de constranger ao máximo os devedores, que na grande maioria das vezes não possuem meios técnicos e financeiros para salvaguardar os seus interesses.

Diante disso, muitas vezes os incautos usuários pagam o que não devem por temerem o pior: a perda do seu pequeno estabelecimento ou até mesmo a impossibilidade de suprirem as suas necessidades básicas, o que vem a representar um ato reprovável, desumano e ilegal, colocando o lucro do empreendimento à frente do interesse maior da sociedade que é o de receber o fornecimento dos serviços públicos sem solução de continuidade.

Os tempos são outros e a sociedade já não mais tolera o abuso de direito, o agir de forma desarrazoada, pois o direito não pode caminhar divorciado dos princípios morais que imperam na sociedade e que norteiam as consciências a conceberem os relacionamentos dentro de um mínimo de decência e pudor econômico, sob pena de se converterem estes em instrumento de pura especulação e destruição, ao invés de se tornarem fatores construtivos da riqueza nacional.(60)

Daí porque a hipótese do inciso II não autorizar a suspensão de serviços obrigatórios, cuja prestação se faz no interesse público ou é essencial à dignidade da pessoa humana. Essa é a situação específica do fornecimento de água tratada e de coleta de esgotos. A instalação de rede de distribuição de água tratada e de coleta de esgotos não se faz como de satisfação do interesse individual dos usuários. Trata-se de instrumento de à saúde pública. Através desses serviços, eliminaram-se quase totalmente as epidemias, transmitidas anteriormente através da contaminação da água. A suspensão dos serviços de água e esgoto representaria risco à saúde pública, na medida em que alguns dos integrantes da comunidade poderiam adquirir doenças, evitável através do tratamento de água e esgoto. Algo similar pode ser afirmado no tocante ao fornecimento de energia elétrica para fins residenciais, em situação que possa colocar em risco sua sobrevivência. Em suma, quando a Constituição Federal assegurou a dignidade da pessoa humana e reconheceu o direito de todos à seguridade, introduziu obstáculo invencível à suspensão de serviços públicos essenciais. Nesses casos, o Estado dispõe de duas escolhas. A primeira é promover a cobrança compulsória do valor correspondente à tarifa, para haver do usuário o montante correspondente aos serviços que continuam a ser prestados. A segunda é, verificando a carência de recursos, custear a manutenção da prestação dos serviços (inclusive e se for o caso, através da elevação das tarifas) cobradas dos demais usuários. Nesta última alternativa, a comunidade arcará com o custo dos serviços. A carência de recursos não autoriza a supressão da existência e da dignidade da pessoa humana.(61)

Destarte, diante da adoção de um padrão ético-jurídico de conduta reprovável por parte das empresas fornecedoras de energia elétrica, conclui-se inexistir respeito ao Princípio da Boa-Fé.

5.1.2. A Violação aos Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade

No Direito Brasileiro, a técnica da verificação da razoabilidade pode ser admitida como presente no Texto Constitucional sob duas óticas diversas. Abrem-se, assim, duas construções admissíveis. Primeiramente, e como decorrência da doutrina alemã, pode-se considerar o "princípio da razoabilidade" como implícito no sistema, revelando-se assim como um "princípio" constitucional não escrito. Por outro lado, poder-se-ia, já agora sob a inspiração direta da doutrina norte-americana, extraí-lo da cláusula do devido processo legal, mais especificamente como decorrente da noção substantiva que se vem imprimindo a dita cláusula.(62)

Doutrina o professor Luis Roberto Barroso(63):

"O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de preposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar. Há autores, mesmo, que recorrem ao direito natural como fundamento para a aplicação da regra da razoabilidade, embora possa ela radicar-se em princípios gerais da hermenêutica. Sobre este ponto em particular, veja-se a passagem, inspirada em San Thiago Dantas:

"Não é apenas a doutrina do Direito Natural que vê no Direito uma ordem normativa superior e independente da lei. Mesmo os que concebem a realidade jurídica como algo mutável e os princípios do Direito como uma síntese das normas dentro de certos limites históricos reconhecem que pode haver leis inconciliáveis com esses princípios, cuja presença no sistema positivo fere a coerência deste, e produz a sensação íntima do arbitrário, traduzido na idéia de "lei injusta"".

Sobre o princípio da proporcionalidade assesta o mestre português Canotilho(64):

"Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação do meio para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à <<carga coativa>> da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de <<medida>> ou <<desmedida>> para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim."

A circunstância de ele não estar previsto expressamente na Constituição de nosso País não impede que o reconheçamos em vigor também aqui, invocando o disposto no § 2º do art. 5º: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados etc."(65)

Na prática, os tribunais superiores já vêm aplicando essa técnica, embora em muitas ocasiões não se refiram a ela de modo expresso, e em outras a apliquem de forma inconsciente.(66)

Assim é que em decisão proferida em 1953, o Supremo Tribunal Federal já admitia essa variante da técnica da verificação da razoabilidade:

"O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho de comércio e de indústria e com o direito de propriedade. É um poder, em suma, cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir. Não há que se estranhar a invocação dessa doutrina ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei Maior pode-se acender não somente considerando a letra, o texto, como também, e principalmente, o espírito e o dispositivo invocado".(67)

Em julgados posteriores, de maneira mais veemente o Supremo pôde adotar referida técnica. Assim, admitiu, em decisão liminar, a violação ao princípio da proporcionalidade e razoabilidade, por lei estadual que determinava a pesagem de botijões entregues ou recebidos, para substituição, à vista do consumidor e com pagamento imediato de eventual diferença a menor. Entendeu ainda o Supremo, quanto à medida provisória que vedava a concessão de medida liminar em mandado de segurança e outras ações, que "há necessidade de controle da razoabilidade das leis restritivas ao poder cautelar".(68)

Com efeito, podemos dizer que, à luz da Constituição Federal, ‘os fins visados pelo Poder Público nem sempre justificam os meios empregados’.

Destarte, é razoável provocar a paralisação de uma atividade econômica com vistas à cobrar uma dívida? É razoável impedir o exercício de uma atividade lícita, tendo por intuito a cobrança de pretensos débitos? É possível, nos dias atuais, a qualquer cidadão sobreviver condignamente sem energia elétrica? É evidente que não, pois a mesma revela-se de extrema importância na vida atual, quer para manter em funcionamento qualquer atividade econômica, quer para permitir a conservação de alimentos, a higiene adequada, bem como o necessário lazer das pessoas, somente para citarmos alguns exemplos.

Ora, é evidente que se as pessoas não puderem trabalhar ou as empresas vierem a baixar as portas as concessionárias de energia elétrica jamais irão conseguir cobrá-las, eis que riqueza nenhuma estarão a gerar. Portanto, conclui-se que as posturas adotadas carecem de razoabilidade, além de serem desproporcionais aos fins visados, não podendo ser olvidado que "quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor." (art. 620, CPC)

Pode-se afirmar, portanto, que em boa parte, o critério de verificação da proporcionalidade da lei toma em linha de consideração direta os princípios constitucionais, como vetores que são para o desenvolvimento válido das leis pelo legislador ordinário. Assim, o referido critério pode ser considerado, nesse ponto, como um critério que, partindo dos princípios constitucionais como objetivos últimos do sistema, analisa a conformidade ou não das leis aos mesmos, extraíndo daí, eventualmente, uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade.(69)

É que dentro de certos parâmetros de nexo lógico, o legislador terá liberdade em seu atuar. Contudo, o Direito, e isto em nenhuma de suas manifestações, pode se compatibilizar com a injustiça. O critério de averiguação da razoabilidade ou proporcionalidade guarda evidente ligação com a questão da discricionariedade, seja ela administrativa ou legislativa.(70)

Na realidade, as concessionárias de energia elétrica, sob o pseudo manto da legalidade, optam pelo meio mais gravoso de cobrança da dívida, meio esse que não se revela razoável, tampouco proporcional à sua finalidade. É preciso deixar bem claro que a parêmia dura lex, sed lex, cedeu lugar à necessidade de decidir-se com razoabilidade as situações em concreto, pois o compromisso maior do Estado de Direito é com a justiça.(71), (72), (73)

5.1.3. A Violação ao Inciso XIII, do Art. 5º

Há muito tempo o Supremo Tribunal Federal, na seara do direito tributário-fiscal, assestou, em respeito ao Princípio do Livre Exercicio de Atividade, Ofício ou Profissão, dantes já previsto nas Constituições de 1946 e 1967, ser inadmissível à autoridade tributária proibir que o contribuinte em débito – para com a fazenda pública -, adquirisse estampilhas, despachasse mercadorias nas alfândegas e exercesse suas atividades profissionais, o que redundou na edição das Súmulas 70, 323 e 547, verbis:

"Súmula 70: "É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo".

"Súmula 323: "É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para o pagamento de tributos".

"Súmula 547: "Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais."

O artigo 141, § 14, da Constituição Federal de 1946, assim enunciava:

"É livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer." (Grifamos)

Por sua vez, a redação do § 23, do artigo 150, da Constituição Federal de 1967, assim dispunha:

"É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer." (Grifamos)

E que o que significava a locução ‘condições de capacidade’ exposta nos textos constitucionais apontados?

Di-lo, com a habitual clareza, Pontes de Miranda(74):

"Sempre que a profissão liberal, para que o público seja bem servido e o interêsse coletivo satisfeito, requeira habilitação, não constitui violação a legislação que estabeleça o mínimo de conhecimentos necessários. Para o próprio provimento de cargos públicos, é de mister que o candidato preencha os pressupostos que a Constituição estatui e a lei estatuir. Tais os limites gerais da liberdade de profissão."

Temos que a locução ‘condições de capacidade’ dizia respeito ao ‘mínimo de conhecimentos necessários’ para que se exercesse determinada profissão, se para o seu bom desempenho assim o exigisse. Logo, restrições outras ao seu exercício apresentavam-se inadmissíveis.

Partindo-se dessa premissa, o recado enviado pela Corte Suprema às autoridades fazendárias foi claro: se débitos tributários há, ou se qualquer infração fiscal foi cometida, que a Fazenda do Estado ingresse com as medidas judiciais que entender necessárias, porém não impeça o exercício de atividade lícita.

Muito embora o Supremo Tribunal Federal tenha fincado posição nesses termos há muito tempo, é de se estranhar que os operadores do direito jamais tivessem procurado aplicá-la às hipóteses de interrupção no fornecimento de serviços públicos essenciais.

Ao suspender o fornecimento de energia elétrica à qualquer pessoa, as concessionárias de energia elétrica estarão, na verdade, provocando a paralisação das atividades por ela desenvolvidas, o que, no caso das empresas, redundará no seu fechamento, enquanto em face das pessoas físicas impedirá a sua própria subsistência, a sua sobrevivência com um mínimo de dignidade.

Nesse contexto, seguindo os passos dos textos constitucionais anteriores, estatui o artigo 5º, inciso XIII, da Constituição Federal:

"XIII - É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". (Grifamos)

Em vista da dicção do texto constitucional, resta evidente que a intenção do legislador não foi outra senão a de estabelecer condições mínimas para o exercício de trabalho, ofício ou profissão, respeitadas a aptidão e grau de instrução necessários ao seu desempenho. Há, de fato, ofícios e profissões que dependem de capacidade especial, de certa formação técnica, científica ou cultural. Assim, compete privativamente à União legislar sobre condições para o exercício de profissões (art. 22, XVI). Só lei federal pode definir as qualificações profissionais requeridas para o exercício das profissões.(75)

O termo "qualificações profissionais" diz respeito às necessárias capacitação e formação técnicas, científicas ou culturais exigidas para o desempenho de determinadas atividades. Com efeito, a exigência destas qualificações prende-se à questões de ordem intelectual, e não financeira, já que a demonstração de aptidões especiais – qualidades pessoais - revela-se de suma importância, regra geral, ao bom desempenho de determinadas profissões. A atual redação deste artigo deixa claro que o papel da lei na criação de requisitos para o exercício da profissão há de ater-se exclusivamente às qualificações profissionais. Trata-se portanto de um problema de capacitação técnica, científica ou moral(76), dado que o mero exercício do poder de polícia do Estado não pode ir ao ponto de vedar certas atividades. (77)

Nesse sentir, é de clareza palmar que a locução "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão" previsto no artigo 5º, inciso XIII, da CF, não admite sejam criados óbices ao pleno gozo e exercício das profissões em geral, inferindo-se, daí, ser vedado à concessionária de energia elétrica suspender unilateralmente o fornecimento de energia elétrica às pessoas físicas ou jurídicas, ao argumento da existência de débitos tarifários.

Como conseqüência do exposto, se o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão é livre, dada a clareza da dicção do texto constitucional, pode-se dizer que a ameaça de paralisação de fornecimento de energia elétrica às pessoas físicas ou jurídicas redundará na violação do artigo 5º, inciso XIII, da Constituição Federal, eis que estarão, por óbvio, impedidas de exercer plenamente e normalmente as suas atividades se não dispuserem da necessária energia elétrica.

A ruína do comércio, da indústria e da vida das pessoas será inexorável, hipóteses essas inadmissíveis.

A energia elétrica é, atualmente, bem de uso vital à qualquer pessoa, e não meramente facultativo(78) como se pensava anteriormente. É impensável a sobrevivência digna de qualquer ser humano ou a manutenção e desenvolvimento de qualquer atividade econômica sem que dela se faça uso. A vida moderna sem energia elétrica é impensável.

Por isso as Concessionárias de Serviços, as quais exercem funções delegadas pelo Poder Público, não possuem o direito (= poder) de deixarem de prestar um serviço que na atualidade apresenta-se de vital importância à sociedade. Atualmente, podemos denominar o fornecimento de energia elétrica de serviço existencial.

À respeito doutrinava o professor Clóvis do Couto e Silva(79): "A sociedade moderna vem-se caracterizando por incessante e progressiva padronização. Assim, à margem dos seus tipos legais, estabeleceram-se os que se poderiam denominar de sociais, por obra e influência de práticas reiteradas, tipos esses ainda não recebidos e normados convenientemente. Resultado de práticas continuadas, de costumes, esses tipo têm a cogência peculiar ao "poder" da sociedade.

Essa afirmativa importa em reconhecer haver outros elementos de fixação no mundo social, além do Direito. Todos esses elementos atuam sobre a atividade dos indivíduos processando-se uma estruturação, um tipificar-se de condutas, na qual a vontade individual, em virtude da objetivação decorrente da incidência daqueles fatores sociais, vai passando para o segundo plano. Em outras hipóteses, o resultado se supõe tão obviamente desejado, a ponto de ensejar, embora possa parecer paradoxal, que não se pesquise sua existência. São os atos absolutamente necessários à vida humana. A tipificação somente cresce de ponto e de importância quando se tratar desse último tipo de ato, pois relativa-se e objetiva-se a vontade, de modo a converter o que seria, "in thesi" negócio jurídico, em verdadeiro ato-fato. Os atos de tipo existencial referem-se às necessidades básicas do indivíduo, tais como alimentação, vestuário, água, etc." (Grifamos)

Complementando as palavras do mestre gaúcho, diríamos que o fornecimento de energia elétrica não é apenas necessário à vida humana, mas, sim, a qualquer atividade empreendida pelo homem. Portanto, como se vê, o seu fornecimento é necessário à existência e manutenção de todas as pessoas.

Em remate, o que cumpre deixar certo é que não há possibilidade de o Estado restringir o número de trabalhos, ofícios ou profissões do particular, entendido este como todo aquele que irá exercer estes misteres autonomamente ou mediante vínculo empregatício com entidades não governamentais(80), o que estará ocorrendo de forma oblíqua, diga-se sub-reptícia, se qualquer pessoa não mais tiver acesso ao consumo de energia.

Conclui-se, assim, que a postura adotada pelas concessionárias de energia elétrica viola frontalmente o artigo 5º, inciso XIII, da Constituição Federal, o que pode ocorrer, em regra, de forma direta, no caso das pessoas jurídicas, ou indireta, no das pessoas físicas.

5.1.4. A Violação ao Inciso XXXV, do Art. 5º

Todas as leis infraconstitucionais devem - ou pelo menos deveriam - haurir validade na Constituição Federal, sob pena de invalidade.

Entretanto, a partir do momento em que as concessionárias de energia elétrica se arrogam no direito de suspender o seu fornecimento ante o impagamento das contas de consumo, estão, na verdade, a subtrair do crivo do Poder Judiciário o monopólio da Jurisdição, instituindo verdadeiro Tribunal de Exceção: alegam existirem débitos e ameaçam suspender o fornecimento de energia se não ocorrer o pagamento dos valores que entende devidos. Tal postura viola frontalmente o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, verbis:

"XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;" (Grifamos)

Embora o destinatário principal desta norma seja o legislador, o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a juízo deduzir pretensão.(81)

Em igual medida, todo e qualquer expediente destinado a dificultar ou mesmo impedir que a parte exerça sua defesa no processo civil atenta contra o princípio da ação e, por isso, deve ser rechaçado.(82)

Não podem as leis ou atos judiciais, quer direta ou indiretamente, subtrair da apreciação do Poder Judiciário, através da criação de obstáculos, qualquer lesão ou ameaça a direito. Com efeito, constitui a proteção contra a lesão ou ameaça um direito fundamental assegurado às pessoas físicas ou jurídicas.

Com efeito, se assim entenderem necessário, caberá às concessionárias de energia ingressar em juízo para cobrar dos usuários os valores que entendem devidos, submetendo ao crivo do Poder Judiciário a plausibilidade da sua pretensão. Se débitos existem, poderão cobrá-los de forma lícita, e não ameaçar a própria sobrevivência das empresas e dos cidadãos.

Na realidade, a ameaça de suspensão do fornecimento de energia elétrica funciona como meio de constranger os pretensos devedores a pagar o que porventura estejam a dever, e também o que não devem, dado que ante a iminência do corte certamente pagarão quaisquer valores que lhes forem apresentados sem pestanejar.

Quem não teme pela sorte do seu negócio ou pela impossibilidade de viver condignamente, assistindo ao seu programa de tevê predileto, ou até de não mais poder usufruir de água quente no inverno, ou até mesmo de manter os alimentos conservados em geladeira?

Além do mais, é sabido e ressabido que a ninguém é dado tomar a justiça em suas próprias mãos. Ora, por exemplo, se perante o inquilino recalcitrante o único meio de que dispõe o locador para expulsá-lo do prédio locado é a ação de despejo, porquê às concessionárias de energia elétrica seria permitido fazer justiça pelas próprias mãos através da suspensão do fornecimento do serviço, o que inclusive estaria a violar o Princípio da Continuidade dos Serviços Públicos Essenciais? Não há, com efeito, fundamento constitucional para tanto.

Aliás, já nos idos de 1927, o jurista francês Maurice Hauriou(83), Decano Honorário da Faculdade de Direito de Toulouse, assestou em obra de grande importância:

"La garantía que resulta del principio de que nadie tiene el derecho de tomarse la justicia por su mano – Este principio del régimen de Estado significa que nadie tiene el derecho de forzar a un tercero, sino en virtud de sentencia de un tribunal o de un título ejecutorio librado por un agente ministerial, no dirigiendóse, ademas, el procedimiento civil más que contra los bienes (supresión de la acción de prender al deudor y de la prisión por deudas en materia civil y comercial (L. 22 de julio de 1867)). Una jurisprudencia firme debería aplicar este principio a las grandes empresas, y particularmente a las empresas de distribuición de energía eléctrica, establecidas bajo el régimen de la simple autorización de voire, sin pliego de condiciones, pero poseyendo un monopolio de hecho em la región, y que se permiten cortar la corriente al abonado que no quiere aceptar las nuevas exigencias de aquella, a riesgo de arruinar su comercio y su industria. Cuando se piensa que un propietario carece del derecho de expulsar por sí mesmo, mediante la fuerza, a un inquilino que no satisface el alquiler, mal se concibe que el propietario de un cable eléctrico tenga el derecho de tomarse la justicia por sí mesmo, cortando la corriente al abonado." (Grifamos)

Ora, se muitos anos atrás a vida das pessoas já era totalmente dependente da utilização de energia elétrica, apresentando-se onerosamente excessiva, e portanto abusiva a interrupção do seu fornecimento ao usuário que estivesse a dever, não há duvidas de que a prática ainda adotada pelas concessionárias continua a agredir o Ordenamento Constitucional, o que ainda muitos juristas não se aperceberam.

Dessa forma, a violação ao inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal é indiscutível.

5.1.5. A Violação ao Inciso LV, do Art. 5º

O princípio do devido processo legal entra no Direito Constitucional positivo com um enunciado que vem da Magna Carta inglesa: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LIV). Combinado com o direito de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e o contraditório e a plenitude da defesa (art. 5º, LV), fecha-se o ciclo das garantias processuais. Garante-se o processo, e "quando se fala em ‘processo’, e não em simples procedimento, alude-se, sem dúvida, a formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídica. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais", conforme autorizada lição de Frederico Marques.(84)

Eis a lição de Pontes de Miranda(85):

"A regra do texto não é regra jurídica vazia, não é, como diriam os juristas alemães, "leerlaufend"; trata-se de direito subjetivo (constitucional) de defesa. Dele nasce direito constitucional a defender-se ou a ter tido defesa; em conseqüência disso, é nulo o processo em que se não assegura ao réu a defesa, ainda que tenha o juiz aplicado alguma "lei". A lei que não obedece ao art. 150, § 15, é inconstitucional, e, ainda em processo de habeas-corpus, deve ser posta de parte." (Grifamos)

Caminhando nesta mesma direção, Hely Lopes Meirelles(86) aponta que, "a defesa, como já vimos, é garantia constitucional de todo acusado, em processo judicial ou administrativo (art. 5º, LV), e compreende a ciência da acusação, a vista dos autos na repartição, a oportunidade para oferecimento de contestação e provas, a inquirição e reperguntas de testemunhas e a observância do devido processo legal (due process of law). É um princípio universal dos Estados de Direito, que não admite postergação nem restrições na sua aplicação." (Grifamos)

Outrossim, o jurista Roque Antonio Carrazza(87) doutrina:

"Percebemos, pois, que o direito à ampla defesa traz à sirga o direito ao devido processo legal. Ambos são inseparáveis, de modo que vulnerar um eqüivale a ferir de morte o outro." (Grifamos)

Ora, as empresas-concessionárias, ao ameaçarem suspender unilateralmente o fornecimento de energia elétrica ao usuário, até mesmo em razão do impagamento de contas de consumo estarão, ao impedir que o mesmo possa contestar os valores que alegam serem devidos, a ele transferindo o ônus de ingressar em juízo para impugnar valores que desconhece completamente: a medição do consumo, a apuração e o cálculo utilizado são do exclusivo conhecimento das empresas, e não dos consumidores. Daí se vê, portanto, que as concessionárias criam inúmeros obstáculos para que os eventuais prejudicados possam defender-se regularmente, dado ser curial que este obstáculo se traduz em um entrave, conforme a hipótese até mesmo insuperável, ao atingimento da finalidade do objetivo do constituinte(88), que foi a de propiciar pleno acesso ao Poder Judiciário.

Portanto, ante o rito sumaríssimo imposto pela concessionárias aos usuários, conclui-se inexistir respeito ao inciso LV, do artigo 5º, da Constituição Federal.

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Sobre o autor
Alessandro Schirrmeister Segalla

advogado em São Paulo , especialista em Direito das Relações de Consumo com Extensão em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Aluno Especial do Programa de Mestrado em Direito da USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGALLA, Alessandro Schirrmeister. A suspensão do fornecimento de energia elétrica ao usuário inadimplente e a Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/710. Acesso em: 25 abr. 2024.

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