Capa da publicação Abuso de direito e boa-fé objetiva nas relações contratuais
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A relação entre o abuso do direito e a função limitativa da boa-fé objetiva nas relações contratuais

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Resumo:


  • A teoria do abuso de direito está relacionada com a boa-fé objetiva e sua função de controle, que limita o exercício de direitos subjetivos para evitar comportamentos contrários à função social e aos bons costumes.

  • O abuso de direito é caracterizado por atos que, embora tenham objeto lícito, são considerados ilícitos por excederem os limites da boa-fé, da finalidade social e econômica ou dos bons costumes, conforme o artigo 187 do Código Civil de 2002.

  • A boa-fé objetiva desempenha papel crucial na análise do abuso de direito, sendo utilizada para avaliar a conduta das partes em uma relação contratual e para aplicar figuras como venire contra factum proprium, supressio, surrectio, tu quoque e duty to mitigate the loss.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3 FUNÇÃO DE CONTROLE OU LIMITADORA DA BOA-FÉ OBJETIVA

O princípio da boa-fé objetiva adota três funções no ordenamento jurídico brasileiro: a função interpretativa através do art. 113, CC/02; a função integrativa no art. 422, CC/02; e a função de controle ou limitadora em seu art. 187, CC/02. Considerando, todavia, que as duas primeiras funções foram brevemente explicadas anteriormente dedicar-se-á atenção a função de controle da boa-fé objetiva, de modo a compreendê-la sob o enfoque do abuso do direito.

A boa-fé é um dos elementos do abuso do direito, quem contrariar a boa-fé caracterizará um ato ilícito, como observado no artigo 187, do Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. ”

Logo, restringe, delimita os direitos subjetivos exigindo que as partes devam agir pautadas no fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes. Quem viola isso comete abuso de direito mesmo que não seja intencional, pois de acordo com o enunciado 37 do Conselho da Justiça Federal, no abuso de direito a responsabilidade é objetiva, ou seja, independe de culpa. Enunciado n.37 do CJF/STJ: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo finalístico. ”

Ato contínuo, a boa-fé foi alçada a instrumento de controle dos abusos ocorridos nas relações contratuais. A boa-fé e o abuso de direito se correlacionam na medida que a boa-fé é um dos requisitos caracterizadores do ato ilícito. Assim sendo, será abusivo o ato ilícito que for desleal e quebrar a confiança, contrariando, desta forma a boa-fé dos contraentes.

Portanto, para que seja evidenciado abuso de direito, um dos indicadores a ser utilizado é a boa-fé objetiva e é a partir disso que surge a função de controle da boa-fé, limitando o exercício de direitos subjetivos. Em consequência, tanto a doutrina quanto a jurisprudência destacam algumas figuras como manifestação da função de controle, como as situações que serão logo abaixo estudadas: situações de venire contra factum proprium, suppressio, surrectio, tu quoque e duty to mitigate the loss.


4 FUNÇÕES DA BOA-FÉ OBJETIVA PARA VERIFICAÇÃO DE ABUSO DE DIREITO

Como já explicitado no art. 187 do Código Civil anteriormente transcrito havendo contrariedade à boa-fé objetiva haverá abuso de direito, dessa forma, quando a boa-fé objetiva é violada ou se encontra ameaçada de violação, de acordo com a doutrina e jurisprudência costumam enumerar figuras da boa-fé objetiva com o objetivo de suprir lacunas nos contratos.

4.1 Proibição do venire contra factum proprium

Tal função foi bem conceituada por Antonio Menezes Cordeiro: “A locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. ” (MENEZES CORDEIRO 2001, p.742). Ainda segundo o autor: “venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro- o factum proprium- é, porém, contrariado pelo segundo. ” (MENEZES CORDEIRO, 2001, p.745)

Este instituto está ligado ao princípio da confiança e busca evitar comportamentos e atitudes contraditórios, beneficiando o interesse próprio de uma das partes. Assim, não pode um dos contraentes criar uma situação que lhe seja favorável e quando não mais for favorável voltar-se contra o fato criado por si próprio. Como observado nos exemplos de Gonçalves:

Assim, por exemplo, o credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Igualmente, aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o comprador, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas com seu próprio número de inscrição fiscal, não pode, posteriormente, cancelar tais pedidos, sob a alegação de uso indevido de sua inscrição. (2017, p. 70-71)

Portanto, o abuso de direito está presente neste instituto quando o sujeito devido a um comportamento inicial, seja omissivo ou comissivo, gere a outra parte uma expectativa, e adiante quebre a confiança ao seguir comportamento contraditório do anteriormente adotado e assim cause danos, ainda que potencial, a outra parte. A confiança, por sua vez, transcorre da cláusula geral de boa-fé objetiva.

4.2 supressio e surrectio

Tais fenômenos são diretamente ligados, entendidos como dois lados da mesma moeda. Inicialmente, a supressio diz respeito “ (…) a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa-fé. ” (MENEZES CORDEIRO, 2001, p.797)

Este instituto pode ser notado no art. 330 do Código Civil de 2002: “o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”. Neste caso, se o credor depois de aceitar ao longo do tempo o pagamento em local diverso ao pactuado no contrato, presume-se que renunciou tacitamente ao direito. Logo, em nenhuma hipótese, poderá ajuizar ação de descumprimento de cláusula contratual baseado em pagamento em local diverso já que devido a sua inércia renunciou tacitamente, isso incorreria em abuso de direito de sua parte. Por assim ser, para ser cabível a supressio deve a conduta abusiva analisada em cada caso concreto ser capaz de conceber expectativa na outra parte. Como bem aduz Menezes Cordeiro:

A realidade social da supressio, que o Direito procura orientar, está na ruptura das expectativas de continuidade de autoapresentação praticada pela pessoa que, tendo criado, no espaço jurídico, uma imagem de não-exercício, rompe, se súbito, o estado gerado. (2001, p.813)

Ao contrário da supressio que é a perda tácita de um direito, a surrectio é o surgimento de um direito, por isso para alguns doutrinadores esses institutos são dois lados de uma mesma moeda, pois enquanto há a perda de um direito para uma das partes há o surgimento de direitos para a outra parte.

Logo, a conduta constante de uma das partes cria expectativa de direito para a outra parte e sabe-se que pelo princípio da boa-fé os contraentes devem ser leais em todos os períodos do contrato com objetivo do equilíbrio contratual. Retomando ao exemplo do Art. 330 do Código Civil de 2002, conclui-se que o direito do credor é renunciado tacitamente (supressio) surgindo, desta forma, o direito da outra parte (surrectio), que é o devedor, ou seja, o direito de pagar em local diverso ao pactuado com o credor.

4.3 tu quoque

Nas palavras de Antônio Menezes Cordeiro: “A fórmula tu quoque traduz, com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe ativesse atribuído.” (MENEZES CORDEIRO, 2001, p.837)

A expressão tu quoque veio da célebre frase “Tu quoque, Brutus, fili mi!” (Até tu, Brutus, meu filho!) atribuída historicamente ao imperador Júlio César ao ser traído por seu filho Brutus. Esta expressão sintetiza bem este instituto já que a utilização do tu quoque se dá quando se verifica um comportamento que rompa com a confiança e surpreenda uma das partes da relação jurídica, pondo-a em desvantagem. Dessa forma:

(…) evita-se que uma pessoa que viole uma norma jurídica possa exercer direito dessa mesma norma inferido ou, especialmente, que possa recorrer, em defesa, a normas que ela própria violou. Trata-se da regra de tradição ética que, verdadeiramente, obsta que se faça com outrem o que não se quer seja feito consigo mesmo. (TARTUCE, 2017, p.422)

Um exemplo claro deste instituto é a exceção do contrato não cumprido, presente no art. 476, do Código Civil: “Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. ” Nota-se, portanto que o abuso de direito surge a partir da quebra da confiança, uma das partes pratica ato em desacordo com a norma legal ou com dos deveres provenientes do contrato e exige da outra parte o adimplemento das obrigações. Dessa maneira, “ (…) no tu quoque a primeira conduta é indevida (maliciosa) e a segunda é devida, mas afastada em razão da quebra da boa-fé objetiva” (FARIAS E ROSENVALD, 2011, p.765).

O tu quoque age simultaneamente sobre os princípios da boa-fé objetiva e da justiça contratual, pois pretende não só evitar que o contratante faltoso se beneficie de sua própria falta, como também resguardar o equilíbrio entre as prestações. (FARIAS E ROSENVALD, 2011, p.766)

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4.4 duty to mitigate the loss (dever de mitigar o próprio prejuízo)

Instituto adotado jurisprudencialmente, consagrado no Enunciado n.169 do CJF/STJ na III Jornada de Direito Civil, pelo qual “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.

Em vista disso, o duty to mitigate the loss entende-se como o dever do credor de diminuir o dano causado, sempre que possível, e evitar o agravamento da situação para receber ressarcimento futuro. Como entende-se pelo exemplo dado por TARTUCE:

A ilustrar a aplicação do duty to mitigate the loss, mencione se o caso de um contrato de locação de imóvel urbano em que houve inadimplemento. Ora, nesse negócio, há um dever por parte do locador de ingressar, tão logo lhe seja possível, com a competente ação de despejo, não permitindo que a dívida assuma valores excessivos. (2017, p.426)

Isto posto, tal instituto não tem o escopo de impedir o direito subjetivo do credor, mas de coibir que este devido a sua posição privilegiada agrave sobremaneira, de forma irrazoável a situação do devedor que depende da relação contratual. Ao agir desta forma irá contra a boa-fé objetiva, a qual é parâmetro para o abuso de direito e limitação para o exercício dos direitos subjetivos. Logo, “(...) Não se perdoará o descumprimento da obrigação pelo devedor, apenas estabelecendo o magistrado limites éticos para o exercício do direito” (FARIAS E ROSENVALD, 2011, p.768)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme observado no presente trabalho, a teoria do abuso de direito se situa na imposição de limites encontrados no art. 187 do Código Civil de 2002, quais sejam: boa-fé, bons costumes e finalidade social e econômica. Desta maneira ganha relevância a ideia de relativização dos direitos subjetivos, de que os direitos não podem ser cumpridos de forma abusiva, devendo atender aos limites impostos.

De forma inicial, o conceito do abuso de direito estava ligado a uma ideia subjetivista, ou seja, o abuso só se configurava quando havia a intenção da parte de prejudicar a outrem. Nesse sentido, o ordenamento jurídico modificou de uma concepção individualista e patrimonialista para uma compreensão social e personalista, através da posição finalística ou objetiva acerca desse instituto. Logo, o art. 187 do Código de 2002 disciplina uma forma de ato ilícito e de forma objetiva, para tanto, ao agir como modalidade de ato ilícito deve ser contextualizado de modo que o exercício dos direitos seja de tal forma correto que haja conforme sua finalidade e função social, conforma a boa-fé objetiva.

Desta feita, a aplicação da teoria do abuso de direito depende da análise do caso concreto através do âmbito dos conceitos jurídicos de boa-fé, bons costumes e finalidade social e econômica, atentando, portanto, para as novas diretrizes do direito civil constitucional. Transcorre que a referida teoria serve de apoio para a interpretação do comportamento das partes de uma relação contratual no exercício de seus direitos, tendo como parâmetro o princípio da boa-fé objetiva. Deste princípio desdobra-se todos os limites impostos pela teoria do abuso de direito, pois em todas as hipóteses busca-se uma conduta baseada na confiança, na lealdade, comportamentos que tem como intenção à boa-fé. Para facilitar essa análise, a doutrina criou as modalidades de abuso de direito conhecidas como: venire contra factum proprium; supressio; surrectio; tu quoque; duty to mitigate the loss.

No que diz respeito aos contratos, se a parte contratante desrespeitar os limites impostos do contrato, especificados anteriormente no art. 187 do Código Civil de 2002, cometerá abuso de direito. Bem como se uma das partes desrespeitar os deveres anexos de conduta dos contratos, como a lealdade, confiança, informação etc., ou houver onerosidade excessiva para uma das partes em detrimento da outra, também restará caracterizado o abuso de direito.

Conclui-se, portanto, que com o objetivo de se atingir a finalidade social da relação jurídica, a teoria do abuso do direito impõe limites ao exercício do direito subjetivo com o escopo de efetivar o sentido valorativo da norma, através da aplicação da boa-fé objetiva. Desta feita, a jurisprudência reconheceu a teoria do abuso de direito de forma objetiva e suas modalidades criadas pela doutrina, aplicando-as nas relações jurídicas de modo a coibir comportamentos contrários à função social e à boa-fé que causem desequilíbrio contratual e prejudiquem uma parte em detrimento a outra.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Volume 3: contratos e atos unilaterais. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé objetiva e o adimplemento das obrigações. In: Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro: Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, 2003.

________. A boa fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

________. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015.

________. Os Campos Normativos da Boa-Fé no Direito Objetiva: As Três Perspectivas do Direito Privado Brasileiro. In: Revista Estudos de Direito do Consumidor, Centro do Direito do Consumo, Universidade de Coimbra, n. 6, Coimbra, 2004.  Disponível em: <https://www.jmartinscosta.adv.br/publicaes-judith-martins-costa>. Acessado em: 09 de julho de 2018.

MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e. Da boa fé no direito civil. 2ª reimpressão. Coimbra: Almedina, 2001.

NADER, Paulo. Curso de direito civil. v. 3: Contratos – 8. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 7.ed. Rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.

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Sobre a autora
Carla Richelly de Oliveira Calabria

Pós-graduanda de Direito Civil-Constitucional e Processo Civil da Faculdade Damas do Recife

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALABRIA, Carla Richelly Oliveira. A relação entre o abuso do direito e a função limitativa da boa-fé objetiva nas relações contratuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5733, 13 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71147. Acesso em: 22 dez. 2024.

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