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Educação e liberdade de cátedra.

A liberdade de ensinar e de aprender

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2. DO CASO ESPECÍFICO E DA LEGISLAÇÃO DEMOCRÁTICA

DAS VIOLAÇÕES DE PRERROGATIVAS DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO

Destaca-se que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, enquanto um diploma legal de observância nacional faz um aporte de regras e princípios que norteiam os procedimentos de efetivação do direito social e inerente à educação. Assim sendo, a educação, em âmbito nacional, não pode se desvencilhar da normativa do art. 3º da LDBE - Lei nº 9.394 de Dezembro de 1996 e suas posteriores atualizações:

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;

IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

VII - valorização do profissional da educação escolar;

VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino;

IX - garantia de padrão de qualidade;

X - valorização da experiência extraescolar;

XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.

XII - consideração com a diversidade étnico-racial (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013);

XIII - garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida (BRASIL, 1996, art. 3. – grifo nosso).

Também é incidente, que a educação em âmbito municipal precisa, por simetria, observar o Plano Nacional de Educação convolado na Lei nº 13.005, de 25 de Junho de 2014:

Art. 2º São diretrizes do PNE:

I - erradicação do analfabetismo;

II - universalização do atendimento escolar;

III - superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação;

IV - melhoria da qualidade da educação;

V - formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade;

VI - promoção do princípio da gestão democrática da educação pública;

VII - promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do País;

VIII - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do Produto Interno Bruto - PIB, que assegure atendimento às necessidades de expansão, com padrão de qualidade e equidade;

IX - valorização dos (as) profissionais da educação;

X - promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental.

Dessas diretrizes decorre o Anexo da referida lei, que, ao seu turno, traz:

Meta 2: universalizar o ensino fundamental de 9 (nove) anos para toda a população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos 95% (noventa e cinco por cento) dos alunos concluam essa etapa na idade recomendada, até o último ano de vigência deste PNE.

[...]

2.4) fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso, da permanência e do aproveitamento escolar dos beneficiários de programas de transferência de renda, bem como das situações de discriminação, preconceitos e violências na escola, visando ao estabelecimento de condições adequadas para o sucesso escolar dos (as) alunos (as), em colaboração com as famílias e com órgãos públicos de assistência social, saúde e proteção à infância, adolescência e juventude;

[...]

2.8) promover a relação das escolas com instituições e movimentos culturais, a fim de garantir a oferta regular de atividades culturais para a livre fruição dos (as) alunos (as) dentro e fora dos espaços escolares, assegurando ainda que as escolas se tornem polos de criação e difusão cultural;

Meta 5: alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3o (terceiro) ano do ensino fundamental.

[...]

5.5) apoiar a alfabetização de crianças do campo, indígenas, quilombolas e de populações itinerantes, com a produção de materiais didáticos específicos, e desenvolver instrumentos de acompanhamento que considerem o uso da língua materna pelas comunidades indígenas e a identidade cultural das comunidades quilombolas;

Meta 7: fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir as seguintes médias nacionais para o Ideb:

[...]

7.25) garantir nos currículos escolares conteúdos sobre a história e as culturas afro-brasileira e indígenas e implementar ações educacionais, nos termos das Leis nos 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e 11.645, de 10 de março de 2008, assegurando-se a implementação das respectivas diretrizes curriculares nacionais, por meio de ações colaborativas com fóruns de educação para a diversidade étnico-racial, conselhos escolares, equipes pedagógicas e a sociedade civil.

Sem prejuízo de tantas outras metas que poderiam ser elencadas, a implementação de leis municipais atentatórias ao Estado Democrático de Direito e à pluralidade de pensamento político-pedagógico – que não se resume ao embate ideológico-partidário, mas diz respeito à convivência de ideias das mais variadas origens –, o cerne da prerrogativa legiferante municipal se insculpe no art. 30. da CF:

Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; (BRASIL, 1988, art. 30. – grifo nosso)

Destaca-se que o ímpeto legislativo da municipalidade é rodeado pelo interesse local e, sobretudo, para suplementar – e não suplantar – a legislação federal e estadual. Dada a áscua com a qual se vergasta o projeto de lei municipal em detrimento dos compromissos constitucionais erigidos em sua plenitude de democracia, é de se ter, ab initio, intransponível inconstitucionalidade material de tal investidura legislativa.

DA MELHOR DOUTRINA EM DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO

DAS DISPOSIÇÕES MINISTERIAIS NO STF

O Supremo Tribunal Federal, por duas vezes, já se posicionou sobre a temática, na ADI 5537 e na ADPF 461 – colecionadas abaixo:

1. DIREITO CONSTITUCIONAL. Ação direta de inconstitucionalidade. Programa Escola Livre. Lei estadual. Vícios formais (de competência e de iniciativa) e afronta ao pluralismo de ideias. Cautelar deferida.

I. Vícios formais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas:

1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, art. 22, XXIV): a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias são princípios e diretrizes do sistema (CF, art. 206, II e III);

2. Afronta a dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: usurpação da competência da União para estabelecer normas gerais sobre o tema (CF, art. 24, IX e § 1º);

3. Violação à competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22, I): a lei impugnada prevê normas contratuais a serem observadas pelas escolas confessionais;

4. Violação à iniciativa privativa do Chefe do Executivo para deflagrar o processo legislativo (CF, art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I): não é possível, mediante projeto de lei de iniciativa parlamentar, promover a alteração do regime jurídico aplicável aos professores da rede escolar pública, a alteração de atribuições de órgão do Poder Executivo e prever obrigação de oferta de curso que implica aumento de gastos.

II. Inconstitucionalidades materiais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas:

5. Violação do direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição. Supressão de domínios inteiros do saber do universo escolar. Incompatibilidade entre o suposto dever de neutralidade, previsto na lei, e os princípios constitucionais da liberdade de ensinar, de aprender e do pluralismo de ideias (CF/1988, arts. 205, 206 e 214).

6. Vedações genéricas de conduta que, a pretexto de evitarem a doutrinação de alunos, podem gerar a perseguição de professores que não compartilhem das visões dominantes. Risco de aplicação seletiva da lei, para fins persecutórios. Violação ao princípio da proporcionalidade (CF/1988, art. 5º, LIV, c/com art. 1º).

7. Plausibilidade do direito e perigo na demora reconhecidos. Deferimento da cautelar.

Breve síntese do caso

1. Trata-se de duas ações diretas de inconstitucionalidade – ADI 5537 e ADI 5580 – propostas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino – CONTEE e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE, respectivamente, em que se pleiteia a declaração da inconstitucionalidade da Lei 7.800, de 05 de maio de 2016, do Estado de Alagoas. A referida norma fundou, no sistema educacional de âmbito estadual, o programa Escola Livre, prevendo:

“Art. 1º - Fica criado, no âmbito do sistema estadual de ensino, o Programa “Escola Livre”, atendendo os seguintes princípios:

I – neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;

II – pluralismo de ideias no âmbito acadêmico;

III – liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência;

IV – liberdade de crença;

V – reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;

VI – educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;

VII – direito dos pais a que seus filhos menores recebam a educação moral livre de doutrinação política, religiosa ou ideológica;

Art. 2º - São vedadas, em sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou induzam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosa ou filosófica.

§1º Tratando-se de disciplina facultativa em que sejam veiculados os conteúdos referidos na parte final do caput deste artigo, a frequência dos estudantes dependerá de prévia e expressa autorização dos seus pais ou responsáveis.

§2º As escolas confessionais, cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão constar expressamente no contrato de prestação de serviços educacionais, documento este que será imprescindível para o ato da matrícula, sendo a assinatura deste a autorização expressa dos pais ou responsáveis pelo aluno para veiculação de conteúdos identificados como os referidos princípios, valores e concepções.

§3º- Para os fins do disposto nos Arts. 1º e 2º deste artigo, as escolas confessionais deverão apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estudantes, material informativo que possibilite o conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados.

Art. 3º - No exercício de suas funções, o professor:

I – não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para qualquer tipo de corrente específica de religião, ideologia ou político-partidária;

II – não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;

III – não fará propaganda religiosa, ideológica ou político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas;

IV – ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, com a mesma profundidade e seriedade, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas das várias concorrentes a respeito, concordando ou não com elas;

V – salvo nas escolas confessionais, deverá abster-se de introduzir, em disciplina ou atividade obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com os princípios desta lei.

Art. 4º - As escolas deverão educar e informar os alunos matriculados no ensino fundamental e no ensino médio sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença asseguradas pela Constituição Federal, especialmente sobre o disposto no Art. 3º desta Lei.

Art. 5º - A Secretaria Estadual de Educação promoverá a realização de cursos de ética do magistério para os professores da rede pública, abertos à comunidade escolar, a fim de informar e conscientizar os educadores, os estudantes e seus pais ou responsáveis, sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que se refere aos princípios referidos no Art. 1º desta Lei.

Art. 6º - Cabe à Secretaria Estadual de Educação de Alagoas e ao Conselho Estadual de Educação de Alagoas fiscalizar o exato cumprimento desta lei.

Art. 7º - Os servidores públicos que transgredirem o disposto nesta Lei estarão sujeitos a sanções e as penalidades previstas no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civil do Estado de Alagoas.” [Grifo nosso]

2. As Requerentes alegam que a norma atacada viola, no aspecto formal, a competência privativa da União para dispor sobre diretrizes e bases da educação (CF, art. 22, XXIV); e, no aspecto material, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), os valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), o pluralismo político (CF, art. 1º, V), a sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I), o direito à livre manifestação do pensamento (CF, art. 5º, IV) e da atividade intelectual (CF, art. 5º, IX), o direito ao pleno desenvolvimento da pessoa humana e ao seu preparo para o exercício da cidadania (CF, art. 205), a liberdade de ensinar e aprender (CF, art. 206, II), o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (CF, art. 206, IV), a valorização dos profissionais da educação escolar (CF, art. 206, V), a gestão democrática do ensino público (CF, art. 206, VI), o padrão de qualidade social do ensino (CF, art. 206, VII) e a autonomia didático-científica das universidades (CF, art. 207).

3. Com base em tais argumentos e, ainda, nos prejuízos que a imediata aplicação da norma pode gerar à educação, aos alunos e aos professores, as postulantes requerem o deferimento de medida cautelar determinando a imediata suspensão dos efeitos da lei.

4. Apliquei o rito do artigo 10, §1º, da Lei 9.868/1999 e determinei a oitiva da Assembleia do Estado de Alagoas, do Exmo. Sr. Governador do Estado de Alagoas, do Exmo. Sr. Advogado-Geral da União e do Exmo. Sr. Procurador-Geral, da República.

5. O Governador do Estado de Alagoas sustentou a inconstitucionalidade da Lei 7.800/2016, por tratar de matéria de iniciativa privativa pelo Chefe do Poder Executivo, bem como por estabelecer restrições excessivas à liberdade de ensino.

6. A Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas defendeu a validade da norma. Do ponto de vista formal, afirmou que o Estado dispõe de competência concorrente para legislar sobre educação, cultura e ensino. No aspecto material, justificou a norma com base na necessidade de vedar a prática de doutrinação política e ideológica e quaisquer condutas, por parte do corpo docente ou da administração escolar, que imponham ou induzam os alunos a opiniões político-partidárias, religiosas e/ou filosóficas, de forma a proteger a sua liberdade de consciência.

7. O Advogado-Geral da União manifestou-se, originalmente, pelo não conhecimento da ADI 5537, em razão da ilegitimidade ativa da requerente, que não congregaria em seu quadro um mínimo de três federações, bem como pela inexistência de poderes específicos para a impugnação da Lei 7.800/2016 em sede de ação direta de inconstitucionalidade. No mérito, pronunciou-se pelo deferimento da medida cautelar, ao fundamento de que: (i) teria havido usurpação da competência legislativa da União para editar normas gerais sobre educação (CF, arts. 22, XXIV, e 24, IX); e (ii) haveria colisão frontal entre a norma impugnada e o princípio do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (CF, art. 206, III).

8. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino – CONTEE apresentou, nos autos da ADI 5537, procuração com poderes específicos para a sua propositura e o quadro de federações congregadas, superando os óbices processuais levantados pelo Advogado-Geral da União para o processamento da ação.

9. O Procurador-Geral da República manifestou-se pelo deferimento da liminar e pela procedência do pedido, por entender que: (i) houve vício de iniciativa por parte da Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas ao legislar sobre matéria de iniciativa do Chefe do Executivo (CF, art. 61, §1º, II, ‘c’ e ‘e’), porque a norma impôs à Secretaria de Estado de Educação obrigações que modificaram suas atribuições e geraram impactos financeiros e orçamentários; (ii) houve usurpação de competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, arts. 22, XXIV, e 24, IX); (iii) a norma impugnada afronta os princípios gerais editados pela União na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a liberdade constitucional de ensino, por suprimir a manifestação e discussão de tópicos inteiros da vida social. É o relatório.

Apreciação do pedido de cautelar

12. Estão presentes, a meu ver, os requisitos de plausibilidade jurídica e de perigo na demora que recomendam o deferimento da cautelar para suspender os efeitos da Lei 7.800/2016 em sua integralidade. O perigo na demora é indiscutível, uma vez que a norma encontra-se em vigor, podendo ensejar a qualquer tempo a persecução disciplinar de professores.

13. A plausibilidade do direito invocado, por sua vez, envolverá o exame: (i) da competência legislativa da União para dispor sobre educação (CF, art. 22, XXIV, e art. 24, IX); (ii) da competência privativa da União para dispor sobre direito civil (art. 22, I, CF/1988); (iii) da iniciativa privativa do Executivo para propor projeto de lei sobre regime jurídico de servidor público, bem como sobre organização e atribuições de órgãos do Poder Executivo (CF/1988, art. 61, §1º, II, “c” e “e” art. 63, I); (iv) do teor do direito à educação, tal como previsto na Constituição (CF/1988, arts. 205, 206 e 214); e (v) do respeito ao princípio da proporcionalidade, em sua vertente de adequação entre meios e fins (CF/1988, art. 5º, LIV, e 1º).

I. A competência legislativa da União para dispor sobre educação (CF, art. 22, XXIV, e art. 24, IX)

14. No que se refere ao poder de legislar sobre educação, a Constituição Federal estabelece: (i) a competência privativa da União para dispor sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF/1988, art. 22, XXIV), bem como (ii) a competência concorrente da União e dos Estados para tratar dos demais temas relacionados à educação que não se incluam no conceito de diretrizes e bases (CF/1988, art. 24). Confiram-se os pertinentes dispositivos constitucionais: Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXIV - diretrizes e bases da educação nacional; Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: IX – educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;

15. A Constituição explicita, ainda, como se dá a distribuição da competência legislativa concorrente, ao dispor:

Art. 24.

[...]

“§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário” [Grifo nosso].

16. Assim, em matéria de diretrizes e bases da educação nacional, há competência normativa privativa da União; ao passo que, nos demais temas pertinentes à educação, haverá competência concorrente entre a União e os Estados. No último caso, de competência concorrente, caberá à União dispor sobre as normas gerais aplicáveis à educação, ao passo que caberá aos Estados tão-somente complementar tais normas. 1

1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases: competência para dispor sobre a liberdade de ensinar e sobre a promoção humanística do país (CF, art. 22, XXIV)

17. A competência privativa da União para dispor sobre as “diretrizes” da educação implica o poder de legislar, com exclusividade, sobre a “orientação” e o “direcionamento” que devem conduzir as ações em matéria de educação. Já o poder de tratar das “bases” da educação refere-se à regulação, em caráter privativo, sobre os “alicerces que [lhe] servem de apoio”, sobre os elementos que lhe dão sustentação e que conferem “coesão” à sua organização 2.

18. Portanto, legislar sobre diretrizes e bases significa dispor sobre a orientação, sobre as finalidades e sobre os alicerces da educação. Ocorre justamente que a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias constituem diretrizes para a organização da educação impostas pela própria Constituição. Assim, compete exclusivamente à União dispor a seu respeito. O Estado não pode sequer pretender complementar tal norma. Deve se abster de legislar sobre o assunto. Confira-se:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino.

[...]

19. Do mesmo modo, não há dúvida de que a regulamentação do tipo de educação apto a gerar “o pleno desenvolvimento da pessoa” e a “promoção humanística do país” integra o conteúdo de “diretriz da educação nacional” e, portanto, constitui competência normativa privativa da União. É intuitivo, ainda, que a supressão de campos inteiros do saber da sala de aula desfavorece o pleno desenvolvimento da pessoa.

20. Há, portanto, plausibilidade na alegação de violação da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação, uma vez que os Estados não detêm competência legislativa – nem mesmo concorrente – para dispor sobre princípios que integram as diretrizes do sistema educacional, como se infere do teor expresso do art. 22, XXIV, CF/1988. Mas não é só.

2. Violação à competência legislativa concorrente entre União e Estados para legislar sobre educação: competência da União para estabelecer normas gerais (CF, art. 24, IX § 1º)

21. Ainda que se reconhecesse que o Estado tem de competência para dispor sobre a liberdade de ensinar (o que não me parece ser o caso, como já exposto), o exercício de tal competência, por meio da norma impugnada, teria deixado de observar os limites determinados pela Constituição. É que, em matéria sujeita à competência legislativa concorrente, como já mencionado, cabe à União dispor sobre normas gerais, ao passo que cabe aos Estados dispor sobre questões residuais de interesse específico do ente da federação, desde que, ao tratar do tema, observe as normas gerais ditadas pela União.

22. Ora, a Lei 9.394/1996 (“Lei de Diretrizes e Bases de Educação”) – norma geral em matéria de educação – previu que a educação deve se inspirar “nos princípios da liberdade” e ter por finalidade “o pleno desenvolvimento do educando” e “seu preparo para o exercício da cidadania”. Determinou, ainda, que o ensino deve ser ministrado com respeito à “liberdade de aprender e ensinar”, ao “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” e com “apreço à tolerância” (arts. 2º e 3º, II, III e IV).

23. A Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas, muito embora tenha reproduzido parte de tais preceitos, determinou que as escolas e seus professores atendessem ao “princípio da neutralidade política e ideológica”. A ideia de neutralidade política e ideológica da lei estadual é antagônica à de proteção ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e à promoção da tolerância, tal como previstas na Lei de Diretrizes e Bases.

24. A imposição da neutralidade – se fosse verdadeiramente possível – impediria a afirmação de diferentes ideias e concepções políticas ou ideológicas sobre um mesmo fenômeno em sala de aula. A exigência de neutralidade política e ideológica implica, ademais, a não tolerância de diferentes visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala. Veja-se que a questão não escapou à percepção do Ministério da Educação, que observou, acerca desta exigência:

"O Ministério da Educação entende que, ao definir a neutralidade como um princípio educacional, o indigitado Projeto de Lei contradiz o princípio constitucional do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, uma vez que tal pluralidade efetiva-se somente mediante o reconhecimento da diversidade do pensamento, dos diferentes saberes e práticas.

O cerceamento do exercício docente, portanto, fere a Constituição brasileira ao restringir o papel do professor, estabelecer a censura de determinados conteúdos e materiais didáticos, além de proibir o livre debate no ambiente escolar. Da mesma forma, esse cerceamento pedagógico impede o cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um sistema educacional inclusivo." [Grifo nosso]

25. Na mesma linha, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação alertou para o fato de que o projeto de lei violava a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, esclarecendo:

"4.1. O Projeto de Lei contraria princípios legais, políticos e pedagógicos que orientam a política educacional brasileira, que no processo de consolidação da democracia. apontam para a autonomia dos Sistemas de Ensino na elaboração dos projetos político pedagógicos, a liberdade de ensinar e aprender, o pluralismo de ideias e concepções, a contextualização histórico, político e social do conhecimento, a gestão democrática da escola, a valorização da diversidade humana e a inclusão escolar.

4.2. Ao definir a neutralidade como um princípio educacional, o Projeto de Lei contradiz o princípio constitucional do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas uma vez que tal pluralidade efetiva-se somente mediante o reconhecimento da diversidade do pensamento, dos diferentes saberes e práticas. O cerceamento do exercício docente, portanto, fere a Constituição brasileira ao restringir o papel do professor, estabelecer a censura de determinados conteúdos e materiais didáticos, além de proibir o livre debate no ambiente escolar. Da mesma forma, esse cerceamento pedagógico impede o cumprimento do princípio constitucional que assegura aos estudantes a liberdade de aprender em um sistema educacional inclusivo.

4.3. A contrariedade desse Projeto de Lei também está na afirmação de que a educação moral e prerrogativa dos pais, ignorando o Art. 205. da Constituição Federal que determina a educação dever do Estado e da família, em colaboração com a sociedade, sem distinguir competências exclusivas dos pais e da escola, não separando as diversas dimensões do processo educativo, que envolve apreensão de conhecimentos, a construção de valores e o desenvolvimento do pensamento crítico. 4.4. O argumento explicitado no documento de que existem professores que impõem ideologias e induzem os estudantes a um pensamento único, usado como justificativa para suposta neutralidade educacional, na verdade, trata-se de uma deturpação da pluralidade presente no processo de construção de conhecimento que historicamente esteve presente nos espaços educacionais. Tal argumento também se propõe a incriminar os professores que manifestam posicionamentos presentes na sociedade, quando a diversidade de concepções integra o desenvolvimento acadêmico social cultural dos estudantes.

4.5. Diante do exposto, considera-se que o Projeto de Lei diverge das Diretrizes Educacionais brasileiras estabelecidas pelo CNE, da LDB, do PNE e da Constituição Federal." [Grifo nosso]

26. Desse modo, ainda que a questão atinente à liberdade de ensinar e ao pluralismo de ideias pudesse ser objeto da competência estadual concorrente para legislar, há plausibilidade na alegação de que o Estado, ao exercê-la, usurpou a competência da União para legislar sobre normas gerais, na medida em que, a pretexto de complementar as normas nacionais, estampadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, regulou a questão de forma conflitante com o que disse a LDB, em evidente violação a seus preceitos. Ora, a competência estadual para suplementar as normas gerais da União não abrange o poder de contrariá-las.

II. Violação da competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22, I)

27. A lei alagoana determinou, ainda, em seu art. 2º, §2º, que as escolas confessionais cujas práticas forem orientadas por valores morais, religiosos ou ideológicos devem inserir no contrato de prestação de serviços educacionais informação a tal respeito e previu, expressamente, que a assinatura do pertinente contrato configura a autorização dos pais para tal, sendo, portanto, condição para a veiculação dos referidos conteúdos.

Veja-se:

“Art. 2º São vedadas, em sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou induzam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosa ou filosófica.

[...]

§ 2º As escolas confessionais, cujas práticas educativas sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou ideológicos, deverão constar expressamente no contrato de prestação de serviços educacionais, documento este que será imprescindível para o ato da matrícula, sendo a assinatura deste a autorização expressa dos pais ou responsáveis pelo aluno para veiculação de conteúdos identificados como os referidos princípios, valores e concepções.” [Grifo nosso]

28. Ocorre justamente que constitui competência privativa da União legislar sobre direito civil (CF/ 1988, art. 22, I), matéria que abrange as normas que disciplinam os contratos, tal como o faz o art. 2º, §2º, da Lei 7.800/2016. Há plausibilidade, portanto, na alegação de inconstitucionalidade do art. 2º, §2º, da Lei estadual 7.800/2015 também por este fundamento.

III. Violação à iniciativa privativa do Executivo para dispor sobre regime jurídico de servidor público, sobre organização e atribuições de órgãos do Poder Executivo (CF, art. 61, §1º, II, “c” e “e”, e art. 63, I)

29. Como se nota, ademais, a norma, que foi produzida por iniciativa parlamentar 3, estabelece uma série de comportamentos a serem observados pelos professores da rede estadual de ensino e veda outros tantos, sob pena de serem processados e punidos disciplinarmente (art. 7º c/c arts. 1º, 2º e 3º). Interfere, portanto, com o regime jurídico dos servidores do Executivo, em desrespeito à iniciativa reservada ao Chefe do Executivo para encaminhar projetos de lei sobre a matéria (CF/1988, art. 61, §1º, II, “c”), tal como reiteradamente afirmado pelo Supremo Tribunal Federal. Veja-se: ADI 2.300, rel. Min. Teori Zavascki; ADI 2.329, rel. Min. Cármen Lúcia; ADI 3.061, rel. Min. Ayres Britto.

30. Não bastasse isso, os arts. 5º e 6º da lei determinam que a Secretaria Estadual de Educação – órgão do Poder Executivo – realize cursos de ética do magistério para professores, estudantes e responsáveis e imputa a tal secretaria e, ainda, ao Conselho Estadual de Educação de Alagoas, a atribuição de fiscalizar o cumprimento da lei. Confiram-se os dispositivos da lei alagoana:

“Art. 5º- A Secretaria Estadual de Educação promoverá a realização de cursos de ética do magistério para os professores da rede pública, abertos à comunidade escolar, a fim de informar e conscientizar os educadores, os estudantes e seus pais ou responsáveis, sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que se refere aos princípios referidos no Art. 1º desta Lei.

Art. 6º- Cabe a Secretaria Estadual de Educação de Alagoas e ao Conselho Estadual de Educação de Alagoas fiscalizar o exato cumprimento desta lei.

Art. 7º- Os servidores públicos que transgredirem o disposto nesta Lei estarão sujeitos a sanções e as penalidades previstas no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civil do Estado de Alagoas.” [Grifo nosso]

31. Assim, a lei alterou o regime jurídico aplicável a servidores públicos, dispôs sobre atribuições de órgão do Poder Executivo e criou obrigação – oferta de curso em favor de professores, alunos, pais e responsáveis – que implica aumento de gastos. Há, portanto, plausibilidade jurídica na alegação de violação ao art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I, CF/1988 e, ainda, ao princípio da separação dos poderes.

IV. Desrespeito ao direito à educação, com o alcance que lhe confere a Constituição de 1988

32. A educação assegurada pela Constituição de 1988, segundo seu texto expresso, é aquela capaz de promover o pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitação para a cidadania, a sua qualificação para o trabalho, bem como o desenvolvimento humanístico do país. Nesse sentido, os artigos 205 e 214 da Carta preveem:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” [Grifo nosso]

“Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:

I – erradicação do analfabetismo;

II – universalização do atendimento escolar;

III – melhoria da qualidade do ensino;

IV – formação para o trabalho;

V – promoção humanística, científica e tecnológica do País.

VI – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.” [Grifo nosso]

33. A Constituição assegura, portanto, uma educação emancipadora, que habilite a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão, como profissional. Com tal propósito, define as diretrizes que devem ser observadas pelo ensino, a fim de que tal objetivo seja alcançado, dentre elas a já mencionada (i) liberdade de aprender e de ensinar; (ii) o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; (iii) a valorização dos profissionais da educação escolar. Confira-se o teor do art. 206, II, III e V, CF/1988:

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;

VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII – garantia de padrão de qualidade.

VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.

34. No mesmo sentido, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à capacitação para a vida em sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades fundamentais.

Veja-se:

Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto nº 591/1992)

“Artigo 13. [...].

§ 1º. Os Estados-partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.” [Grifo nosso]

Protocolo Adicional de São Salvador (Decreto nº 3.321/1999)

“Art. 13. Direito à Educação

[...].

2. Os Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas as pessoas capazes de participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e de conseguir uma subsistência digna; bem como favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, e promover as atividades em prol da manutenção da paz.

3. Os Estados-Partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito à educação: [...]. De acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima.” [Grifo nosso]

35. O próprio Protocolo Adicional de São Salvador, ao reconhecer o direito dos pais de escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada a seus filhos, previsto no artigo 12, §4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, condiciona tal direito à opção por uma educação que esteja de acordo com os demais princípios contemplados no Protocolo e que, por consequência, seja apta ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à participação em uma sociedade democrática, à promoção do pluralismo ideológico e das liberdades fundamentais.

36. A toda evidência, os pais não podem pretender limitar o universo informacional de seus filhos ou impor à escola que não veicule qualquer conteúdo com o qual não estejam de acordo. Esse tipo de providência – expressa no art. 13, § 5º – significa impedir o acesso dos jovens a domínios inteiros da vida, em evidente violação ao pluralismo e ao seu direito de aprender. A educação é, justamente, o acúmulo e o processamento de informações, conhecimentos e ideias que proveem de pontos de vista distintos, experimentados em casa, no contato com amigos, com eventuais grupos religiosos, com movimentos sociais e, igualmente, na escola.

1. Direito à educação e pluralismo de ideias

37. Há uma evidente relação de causa e efeito entre o que pode dizer um professor em sala de aula, a exposição dos alunos aos mais diversos conteúdos e a aptidão da educação para promover o seu pleno desenvolvimento e a tolerância à diferença. Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes diferentes dos seus. É por isso que o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas internacionais antes mencionadas, sem que haja menção, em qualquer uma delas, à neutralidade como princípio diretivo.

38. A própria concepção de neutralidade é altamente questionável, tanto do ponto de vista da teoria do comportamento humano, quanto do ponto de vista da educação. Nenhum ser humano e, portanto, nenhum professor é uma “folha em branco”. Cada professor é produto de suas experiências de vida, das pessoas com quem interagiu, das ideias com as quais teve contato 4. Em virtude disso, alguns professores têm mais afinidades com certas questões morais, filosóficas, históricas e econômicas; ao passo que outros se identificam com teorias diversas. Se todos somos – em ampla medida, como reconhecido pela psicologia – produto das nossas vivências pessoais, quem poderá proclamar sua visão de mundo plenamente neutra? 5 A própria concepção que inspira a ideia da “Escola Livre” – contemplada na Lei 7800/2016 – parte de preferências políticas e ideológicas. Foi o que observou Leandro Karnal a respeito do tema em questão:

“Então, como já desafiei algumas pessoas antes, me diga um fato histórico que não tenha opção política. Cortar a cabeça de Luís XVI, 21 de janeiro de 1793? Cortar a cabeça de Maria Antonieta, 16 outubro 1793? Vamos dizer ‘que pena, coitados dos reis’, ou vamos analisar como um processo de violência típico da revolução e assim por diante? Não existe escola sem ideologia. Seria muito bom que o professor não impusesse apenas uma ideologia e sempre abrisse caminho ao debate. Mas é uma crença fantasiosa, [...], de que a escola forma a cabeça das pessoas, e que esses jovens saiam líderes sindicais. Os jovens têm sua própria opinião: ouvem o professor, vão dizer que o professor é de tal partido. Os jovens não são massa de manobra, e os pais e professores sabem que eles têm sua própria opinião. Toda opinião é política, inclusive a Escola sem Partido. Eu gostaria de uma escola que suscitasse o debate, que colocasse para o aluno, no século XIX, um texto de Stuart Mill, falando do indivíduo e da liberdade do mercado, ao lado de um texto de Marx, e que o aluno debatesse os dois textos. Mas se o professor for militante de um partido de esquerda ou de centro? Também faz parte do processo. Isto não é ruim. A demonização da política é a pior herança da ditadura militar, que além de matar seres humanos, ainda provocou na educação um dano que vai se arrastar por mais algumas décadas.” [Grifo nosso]

39. Está claro, portanto, que a neutralidade pretendida pela Lei alagoana colide frontalmente com o pluralismo de ideias, com o direito à educação com vistas à formação plena como ser humano, à preparação para o exercício da cidadania e à promoção da tolerância, valores afirmados pela Constituição e pelos tratados internacionais que regem a matéria.

2. Direito à educação e liberdade de ensinar

40. A Lei 7.800/2016 traz, ainda, previsões de inspiração evidentemente cerceadora da liberdade de ensinar assegurada aos professores, que evidenciam o propósito de constranger e de perseguir aqueles que eventualmente sustentem visões que se afastam do padrão dominante, estabelecendo vedações – extremamente vagas – tais quais: (i) proibição de conduta por parte do professor que possa induzir opinião político-partidária, religiosa ou mesmo filosófica nos alunos (art. 2º); (ii) proibição de manifestar-se de forma a motivar os alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas (art. 3º, III); (iii) dever de tratar questões políticas, socioculturais e econômicas, “de forma justa”, “com a mesma profundidade”, abordando as principais teorias, opiniões e perspectivas a seu respeito, concorde ou não com elas (art. 3º, IV).

41. As aludidas proibições dirigidas aos professores são formuladas com a indicação expressa de que seu descumprimento ensejará punição disciplinar com base no Código de Ética Funcional dos Servidores Públicos e no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos do Estado de Alagoas (art. 7º).

42. Mais uma vez, está presente no aludido dispositivo a intenção de impor ao professor uma apresentação pretensamente neutra dos mais diversos pontos de vista – ideológicos, políticos, filosóficos – a respeito da matéria por ele ensinada, determinação que é inconsistente do ponto de vista acadêmico e evidentemente violadora da liberdade de ensinar. Confira-se, nesse sentido, o que diz Robert Post sobre o tema 6:

“É evidente que qualquer pretensão de neutralidade política é inconsistente com princípios elementares da liberdade acadêmica.

A pretensão de neutralidade política imporia ao professor a exposição de todos os lados de uma questão controvertida do ponto de vista político. No entanto, qualquer determinação nesse sentido seria incompatível com o respeito, por parte do professor, aos standards profissionais que regem a sua atividade. Basta considerar o caso do biólogo que ensina teoria da evolução. A teoria da evolução é controversa politicamente porque o significado literal da Bíblia é objeto de debate político. Pretender que o biólogo confira tempo igual a uma teoria de desenho inteligente (theory of intelligent design), somente porque pessoas leigas, engajadas politicamente, acreditam nessa teoria, é dizer que o professor, em nome da neutralidade política, deve apresentar como críveis ideias que a sua profissão reconhece como falsas. A razão de ser da liberdade acadêmica é justamente proteger a convicção acadêmica deste tipo de controle político. A liberdade acadêmica obriga os professores a utilizarem critérios acadêmicos e não políticos para guiar sua atividade.” [Grifo nosso]

43. Justamente porque os conteúdos acadêmicos podem ser muito abrangentes e suscitar debates políticos, Post observa que a permanente preocupação do professor quanto às repercussões políticas de seu discurso em sala de aula e quanto à necessidade de apresentar visões opostas os levaria a deixar de tratar temas relevantes, a evitar determinados questionamentos e polêmicas, o que, por sua vez, suprimiria o debate e desencorajaria os alunos a abordar tais assuntos, comprometendo-se a liberdade de aprendizado e o desenvolvimento do pensamento crítico. Veja-se 7:

“Porque os conteúdos acadêmicos abrangem todos os assuntos de interesse humano, as ideias dos professores podem se mostrar politicamente controvertidas em uma infinidade de maneiras. A regra de neutralidade política imporia aos professores que permanecessem constantemente vigilantes a respeito das repercussões de ideias expressas em sala de aula; demandaria a apresentação de ‘pontos de vista alternativos’ ‘de modo justo’ sempre que uma ideia expressa em sala de aula pudesse gerar um certo grau de controvérsia política. É fácil verificar como esse tipo de norma suprimiria o debate e fragilizaria o objetivo de provocar nos estudantes o exercício de um pensamento independente. É justamente em virtude desse objetivo que a liberdade de ensinar determina que os professores sejam livres para estruturar e discutir em sala de aula o material que acreditem ser pedagogicamente mais efetivo, desde que não doutrinem seus alunos ou violem standards de pertinência e competência pedagógica.” [Grifo nosso]

44. A liberdade de ensinar é um mecanismo essencial para provocar o aluno e estimulá-lo a produzir seus próprios pontos de vista. Só pode ensinar a liberdade quem dispõe de liberdade. Só pode provocar o pensamento crítico, quem pode igualmente proferir um pensamento crítico. Para que a educação seja um instrumento de emancipação, é preciso ampliar o universo informacional e cultural do aluno, e não reduzi-lo, com a supressão de conteúdos políticos ou filosóficos, a pretexto de ser o estudante um ser “vulnerável”. O excesso de proteção não emancipa, o excesso de proteção infantiliza. 8

45. Vale notar, ademais, que a norma impugnada expressa uma desconfiança com relação ao professor. Os professores têm um papel fundamental para o avanço da educação e são essenciais para a promoção dos valores tutelados pela Constituição. Não se pode esperar que uma educação adequada floresça em um ambiente acadêmico hostil, em que o docente se sente ameaçado e em risco por toda e qualquer opinião emitida em sala de aula. A lei impugnada, nesta medida, desatende igualmente ao mandamento constitucional de valorização do profissional da educação escolar (CF/1988, art. 206, V).

V. Violação ao princípio da proporcionalidade

46. Não se pretende, com as considerações acima, afirmar que, em nome da liberdade de ensinar, toda e qualquer conduta é permitida ao professor em sala de aula, inclusive o comportamento que cerceie e suprima o debate ou a manifestação de visões divergentes por parte dos próprios alunos.

47. Tampouco se pretende equiparar a liberdade acadêmica à liberdade de expressão. A liberdade acadêmica tem o propósito de proteger o avanço científico, por meio da proteção à liberdade de pesquisa, de publicação e de propagação de conteúdo dentro e fora da sala de aula. É assegurada, ainda, com o fim de permitir ao professor confrontar o aluno com diferentes concepções, provocar o debate, desenvolver seu juízo crítico. Tem relação com a expertise do professor, ainda que não se restrinja a ela, porque as fronteiras de cada disciplina são elas próprias bastante indefinidas. Tem o propósito de assegurar uma educação abrangente.

48. A liberdade de expressão, por sua vez, volta-se à preservação de valores existenciais, à livre circulação de ideias e ao adequado funcionamento do processo democrático. Não tem relação com expertise técnica, não tem compromisso com standards acadêmicos, mas com a condição de cidadão e com o direito de participar do debate público. No espaço público, todos somos iguais. Na sala de aula, o professor forma pessoas e avalia os alunos. São, portanto, direitos distintos, finalidades distintas, não necessariamente sujeitos aos mesmos limites.

49. Não há dúvida de que a liberdade de ensinar se submete à consecução dos fins para os quais foi instituída. Deve, por isso, observar os standards profissionais aplicáveis à disciplina ministrada pelo professor. Ensinar matemática ou física segue padrões distintos de ensinar história e geografia. Cada campo do saber tem seus limites e suas particularidades. Alguns podem trabalhar com maior objetividade do que outros. E o professor deve ser preparado para observar os standards mínimos da sua disciplina, para preservar o pluralismo quando pertinente, para não impor sua visão de mundo, para trabalhar com os questionamentos e as divergências dos estudantes. Preparar o professor envolve a formulação de políticas públicas adequadas – e não seu cerceamento e punição. Envolve, ainda, a definição de tais standards com clareza 9.

50. A norma impugnada vale-se, contudo, de termos vagos e genéricos como direito à “educação moral livre de doutrinação política, religiosa e ideológica” (art. 1º, VII), vedação a “condutas que imponham ou induzam nos alunos opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas” (art. 2º), proibição a que o professor promova “propaganda religiosa, ideológica ou político-partidária” ou incite “seus alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas” (art. 3º, III).

51. Mas o que é doutrinação? O que configura a imposição de uma opinião? Qual é a conduta que caracteriza propaganda religiosa ou filosófica? Qual é o comportamento que configura incitação à participação em manifestações? Quais são os critérios éticos aplicáveis a cada disciplina, quais são os conteúdos mínimos de cada qual, e em que circunstâncias o professor os terá ultrapassado?

52. A lei não estabelece critérios mínimos para a delimitação de tais conceitos, e nem poderia, pois o Estado não dispõe de competência para legislar sobre a matéria. Trata-se, a toda evidência, de questão objeto da Lei de Diretrizes de Bases da Educação, matéria da competência privativa da União, como já observado.

53. O nível de generalidade com o que as muitas vedações previstas pela Lei 7.800/2016 foram formuladas gera um risco de aplicação seletiva e parcial das normas (chilling effect) 10, por meio da qual será possível imputar todo tipo de infrações aos professores que não partilhem da visão dominante em uma determinada escola ou que sejam menos simpáticos à sua direção. Como muito bem observado por Elie Wiesel: “A neutralidade favorece o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o assédio, nunca o assediado”. 11

54. A norma é, assim, evidentemente inadequada para alcançar a suposta finalidade a que se destina: a promoção de educação sem “doutrinação” de qualquer ordem. É tão vaga e genérica que pode se prestar à finalidade inversa: a imposição ideológica e a perseguição dos que dela divergem. Portanto, a lei impugnada limita direitos e valores protegidos constitucionalmente sem necessariamente promover outros direitos de igual hierarquia. Trata-se, assim, de norma que viola o princípio constitucional da proporcionalidade (art. 5º, LIV e art. 1º), na vertente adequação, por não constituir instrumento apto à obtenção do fim que alega perseguir.

55. Também por essas razões, não tenho dúvidas quanto à plausibilidade da inconstitucionalidade integral da Lei 7.800/2016.

Conclusão:

56. Diante do exposto, defiro a liminar pleiteada para determinar a suspensão da integralidade da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas. Inclua-se em pauta para referendo do plenário.

Intime-se. Pulique-se.

Brasília, 21 de março de 2017.

Luís Roberto Barroso

Ministro do Supremo Tribunal Federal

Notas:

1 - SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 9. ed., São Paulo: Malheiros, 2014, p. 274-275; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 3. ed., 2000. p. 178.

2 - MOTTA, Elias de Oliveira. Direito educacional e educação no século XXI. Brasília: Unesco, 1997. p. 91.

3 - A norma é produto do Projeto de Lei Ordinária º 69/2015, de autoria do Deputado Ricardo Nezinho.

4 - 1 SCHLENKER, Barry R. Identity and Self Identification. In: The self and social life. Nova Iorque: McGraw-Hill Book Company, 1985. p. 65-99.

5 - FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). In: Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

6 - FINKIN, Matthew W.; POST, Robert. For the Common Good: Principles of American Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011, tradução livre.

7 - FINKIN, Matthew W.; POST, Robert. For the Common Good: Principles of American Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011, tradução livre.

8 - V. RE 590.415, rel. Min. Luís Roberto Barroso, para considerações análogas, no que respeita ao excesso de tutela do trabalhador e à atrofia de suas capacidades cívicas.

9 - V. sobre a diferenciação entre liberdade acadêmica e liberdade de expressão: FINKIN, Matthew W.; POST, Robert. For the Common Good: Principles of American Academic Freedom. New Haven: Yale University Press, 2011.

10 - SCHAUER, Frederick. Fear, Risk and the First Amendment: Unraveling the Chilling Effect. College of William & Mary Law School Scholarship Repository.

11 - Frase extraída do discurso pronunciado por Elie Wiesel quando do recebimento do Prêmio Nobel da Paz, em dezembro de 1986, livre tradução. No original: “We must take sides. Neutrality helps the oppressor, never the victim. Silence encourages the tormentor, never the tormented”.

(ADI 5537 MC, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 21/03/2017, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-056 DIVULG 22/03/2017 PUBLIC 23/03/2017)

Em correspondência, segue outra declaração de REFERENDO À LIBERDADE DE EDUCAÇÃO:

DIREITO À EDUCAÇÃO. Medida cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Lei municipal que veda o ensino sobre gênero e orientação sexual, bem como a utilização desses termos nas escolas. Deferimento da liminar.

1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF/88, art. 22, XXIV), bem como à competência deste mesmo ente para estabelecer normas gerais em matéria de educação (CF/88, art. 24, IX). Inobservância dos limites da competência normativa suplementar municipal (CF/88, art. 30, II).

2. Supressão de domínio do saber do universo escolar. Desrespeito ao direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição. Dever do Estado de assegurar um ensino plural, que prepare os indivíduos para a vida em sociedade. Violação à liberdade de ensinar e de aprender (CF/88, arts. 205, art. 206, II, III, V, e art. 214).

3. Comprometimento do papel transformador da educação. Utilização do aparato estatal para manter grupos minoritários em condição de invisibilidade e inferioridade. Violação do direito de todos os indivíduos à igual consideração e respeito e perpetuação de estigmas (CF/88, art. 1º, III, e art. 5º).

4. Violação ao princípio da proteção integral. Importância da educação sobre diversidade sexual para crianças, adolescentes e jovens. Indivíduos especialmente vulneráveis que podem desenvolver identidades de gênero e orientação sexual divergentes do padrão culturalmente naturalizado. Dever do estado de mantê-los a salvo de toda forma de discriminação e opressão. Regime constitucional especialmente protetivo (CF/88, art. 227).

5. Plausibilidade do direito alegado e perigo na demora demonstrados. Cautelar deferida.

DECISÃO:

1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, proposta pela Procuradoria-Geral da República, em face do artigo 3º, X, parte final, da Lei 3.468, de 23 de junho de 2015, do Município de Paranaguá, Estado do Paraná, que dispõe sobre a aprovação do Plano Municipal de Educação de Paranaguá, vedando, no dispositivo atacado, política de ensino com informações sobre gênero ou orientação sexual. Vide o teor do dispositivo questionado:

Artigo 3º. São diretrizes do PME:

.........................................................

X - promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental, sendo vedada entretanto a adoção de políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo "gênero" ou "orientação sexual". [Grifo nosso]

2. Alega a requerente que o dispositivo atacado contraria os seguintes preceitos constitucionais: (i) o princípio da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I); (ii) o direito à igualdade (art. 5º, caput); a vedação à censura em atividades culturais (art. 5º, IX); (iii) o devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV); a laicidade do Estado (art. 19, I); (iv) a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV); (v) o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, I); (vi) e o direito à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II). Pondera que a norma contribui imediatamente para a perpetuação da cultura de violência, tanto psicológica quanto física contra a parcela da população LGBT. Com base nesses fundamentos, requer a concessão do pedido liminar para suspensão imediata da eficácia do dispositivo impugnado.

3. É o relatório. Passo ao exame da cautelar.

I. Esclarecimentos preliminares: os conceitos de sexo, gênero e orientação sexual

4. Para que se compreenda adequadamente o objeto da controvérsia, é importante esclarecer o significado das expressões "sexo", "gênero" e "orientação sexual", as duas últimas proscritas pelo dispositivo legal que é objeto desta ação. Como já tive a oportunidade de esclarecer 1, a palavra sexo, de modo geral, é utilizada para referir-se à distinção entre homens e mulheres com base em características orgânico-biológicas, baseadas em cromossomos, genitais e órgãos reprodutivos2. Gênero designa o autoconceito que o indivíduo faz de si mesmo como masculino ou feminino3. E orientação sexual refere-se à atração afetiva e emocional de um indivíduo por determinado gênero4.

5. As pessoas cisgênero são aquelas que se identificam plenamente com o gênero atribuído ao seu sexo e que se encontram nas fronteiras convencionais culturalmente construídas sobre o tema. As pessoas transgênero são aquelas que não se identificam plenamente com o gênero atribuído ao seu sexo biológico, incluindo-se entre as últimas os transexuais, indivíduos que se reconhecem no gênero oposto a seu sexo biológico. Quanto à orientação sexual, são heterossexuais os que se atraem afetiva e sexualmente pelo gênero oposto; homossexuais, os que se atraem pelo mesmo gênero; bissexuais, os que se atraem por ambos os sexos etc.

6. Vedar a adoção de políticas de ensino que tratem de gênero, de orientação sexual ou que utilizem tais expressões significa impedir que as escolas abordem essa temática, que esclareçam tais diferenças e que orientem seus alunos a respeito do assunto, ainda que a diversidade de identidades de gênero e de orientação sexual seja um fato da vida, um dado presente na sociedade que integram e com o qual terão, portanto, de lidar.

7. Esclarecidos tais pontos, o exame do caso impõe que se examinem as seguintes questões: 1. Os municípios detêm competência para legislar sobre políticas de ensino com o alcance aqui examinado? 2. É possível suprimir conteúdos sobre gênero e orientação sexual da educação escolar, à luz dos mandamentos constitucionais que tratam do direito à educação? 3. Tal supressão é compatível com o direito à igualdade e com a doutrina da proteção integral, aplicável a crianças, jovens e adolescentes? A resposta às três questões é negativa, como passo a demonstrar.

II. A competência legislativa da União para dispor sobre educação (CF, art. 22, XXIV, e art. 24, IX)

8. De acordo com a Constituição de 1988, compete privativamente à União dispor sobre as diretrizes e bases da educação nacional (CF/88, art. 22, XXIV). Compete-lhe, ainda, estabelecer normas gerais sobre a matéria, a serem complementadas pelos Estados, no âmbito da sua competência normativa concorrente (CF/88, art. 24, IX). Cabe, por fim, aos Municípios suplementar as normas federais e estaduais (CF/88, art. 30, II).

9. Como já tive a oportunidade de explicitar 5, legislar sobre as diretrizes da educação significa dispor sobre a orientação e sobre o direcionamento que devem conduzir as ações na matéria. Tratar das bases do ensino implica, por sua vez, prever os alicerces que servem de apoio à educação, os elementos que lhe dão sustentação e que lhe conferem coesão 6. Ocorre que a Constituição estabelece expressamente como diretrizes para a organização da educação: a promoção do pleno desenvolvimento da pessoa, do desenvolvimento humanístico do país, do pluralismo de ideias, bem como da liberdade de ensinar e de aprender (CF/88, art. 205; art. 206, II e III; art. 214). Confira-se o teor dos pertinentes dispositivos:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” [Grifo nosso]

"Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

[...]

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino". [Grifo nosso]

“Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:

V – promoção humanística, científica e tecnológica do País.” [Grifo nosso]

10. A norma impugnada veda a adoção de política educacional que trate de gênero ou de orientação sexual e proíbe até mesmo que se utilizem tais termos. Suprime, portanto, campo do saber das salas de aula e do horizonte informacional de crianças e jovens, interferindo sobre as diretrizes que, segundo a própria Constituição, devem orientar as ações em matéria de educação. Ao legislar em tais termos, o Município dispôs, portanto, sobre matéria objeto da competência privativa da União sobre a qual deveria se abster de tratar.

11. Além disso, estabeleceu norma que conflita com a Lei 9.394/1996 (“Lei de Diretrizes e Bases de Educação”), editada pela União, com base no exercício de tal competência privativa, e que prevê, além da garantia dos valores constitucionais acima elencados, o respeito à liberdade, o apreço à tolerância e a vinculação entre educação e práticas sociais como princípios que devem orientar as ações educacionais (arts. 2º e 3º, II, III e IV). Veja-se o teor dessa última:

“Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: ........................................................................................................................................

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;

IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

........................................................................................................................................ XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.” [Grifo nosso]

12. Desse modo, sequer seria possível defender que a Lei municipal 3.468/2015 decorre apenas do exercício da competência normativa suplementar por parte do Município de Paranaguá (CF/88, art. 30, II). Ainda que se viesse a admitir a possibilidade do exercício de competência suplementar na matéria, seu exercício jamais poderia ensejar a produção de norma antagônica às diretrizes constantes da Lei 9.394/1996.

13. Assim, há plausibilidade na alegação de violação da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação, quer porque os Municípios não detêm competência legislativa – nem mesmo concorrente – para dispor sobre diretrizes do sistema educacional (CF/88, art. 22, XXIV), quer porque, ainda que se admitisse sua competência para suplementar as normas gerais da União na matéria, a lei municipal jamais poderia conflitar com essas últimas (CF/88, art. 30, II).

III. O alcance do direito à educação

14. Como já mencionado, a educação assegurada pela Constituição de 1988, segundo seu texto expresso, é aquela voltada a promover o pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitação para a cidadania, bem como o desenvolvimento humanístico do país (CF/88, arts. 205. e 214). Trata-se de educação emancipadora, fundada, por dispositivo constitucional expresso, no pluralismo de ideias, na liberdade de aprender e de ensinar, cujo propósito é o de habilitar a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão e como profissional (CF/88, art. 206, II, III e V).

15. Tais disposições constitucionais estão alinhadas, ainda, com normas internacionais ratificadas pelo Brasil. Nesse sentido, o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à capacitação para a vida em sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades fundamentais 7.

16. A proibição de tratar de conteúdos em sala de aula sem uma justificativa plausível, à toda evidência, encontra-se em conflito com tais valores. Em primeiro lugar, não se deve recusar aos alunos acesso a temas com os quais inevitavelmente travarão contato na vida em sociedade. A educação tem o propósito de prepará-los para ela. Além disso, há uma evidente relação de causa e efeito entre a exposição dos alunos aos mais diversos conteúdos e a aptidão da educação para promover o seu pleno desenvolvimento. Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes diferentes dos seus. É por isso que o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas internacionais antes mencionadas.

17. A norma impugnada caminha na contramão de tais valores ao impedir que as escolas tratem da sexualidade em sala de aula ou que instruam seus alunos sobre gênero e sobre orientação sexual. Não tratar de gênero e de orientação sexual no âmbito do ensino não suprime o gênero e a orientação sexual da experiência humana, apenas contribui para a desinformação das crianças e dos jovens a respeito de tais temas, para a perpetuação de estigmas e do sofrimento que deles decorre.

18. Trata-se, portanto, de uma proibição que impõe aos educandos o desconhecimento e a ignorância sobre uma dimensão fundamental da experiência humana e que tem, ainda, por consequência, impedir que a educação desempenhe seu papel fundamental de transformação cultural, de promoção da igualdade e da própria proteção integral assegurada pela Constituição às crianças e aos jovens, como se demonstra a seguir.

IV. A educação como instrumento de transformação cultural e de promoção do direito à igualdade

19. A escola é uma dimensão essencial da formação de qualquer pessoa. O locus por excelência em que se constrói a sua visão de mundo. Trata-se, portanto, de um ambiente essencial para a promoção da transformação cultural, para a construção de uma sociedade aberta à diferença, para a promoção da igualdade. A matéria não é nova e foi objeto de um dos casos mais paradigmáticos do constitucionalismo contemporâneo. Em Brown v. Board of Education, a Suprema Corte norte-americana reconheceu a inconstitucionalidade da imposição de escolas separadas para brancos e negros, ao fundamento de que as escolas são um ambiente essencial para a formação da cidadania, para promoção de valores culturais e da igualdade, e que a mera separação contribuía para a perpetuação da discriminação racial 8.

20. Também o Tribunal Constitucional Alemão já se pronunciou sobre a função da educação nas escolas públicas e reconheceu a constitucionalidade da introdução da educação sexual no currículo do ensino fundamental. Na oportunidade, observou que a missão das escolas não é apenas a de transmitir conhecimento geral, mas sobretudo de possibilitar uma educação mais ampla e preparar o cidadão para a vida em sociedade. Esclareceu, ainda, que o comportamento sexual integra o comportamento geral, que a educação sexual é parte da formação do indivíduo e que o Estado tem o dever de oferecer aos jovens uma educação compatível com a vida contemporânea (BVerfGE 47, 46). Veja-se trecho da decisão 9:

“Mesmo que existam – como supra apresentado – razões para crer que o lugar adequado à educação sexual individual seja o lar, deve-se, entretanto, por outro lado, também considerar que a sexualidade apresenta diversas referências sociais. O comportamento sexual é uma parte do comportamento geral. Assim, não se pode proibir ao Estado que este considere a educação sexual como importante elemento da educação total de um indivíduo jovem. Disso faz parte também proteger e alertar as crianças contra ameaças de cunho sexual.” [Grifo nosso]

21. Razões semelhantes àquelas invocadas nos casos acima impedem a vedação à educação sobre gênero e orientação sexual no caso das escolas brasileiras. É importante observar, além disso, que os grupos que não se enquadram nas fronteiras tradicionais e culturalmente construídas de identidade de gênero ou de orientação sexual constituem minorias marginalizadas e estigmatizadas na sociedade 10.

22. Basta lembrar que o Brasil lidera o ranking mundial de violência contra transgêneros 11, cuja expectativa média de vida, no país, gira em torno de 30 anos, contra os quase 75 anos de vida do brasileiro médio 12. Transexuais têm dificuldade de permanecer na escola, de se empregar e até mesmo de obter atendimento médico nos hospitais públicos 13. Também não são incomuns atos de discriminação 14 e violência dirigidos a homossexuais 15. As relações de afeto entre pessoas do mesmo sexo são cercadas de preconceito e marcadas pelo estigma. Tanto é assim que as uniões homoafetivas obtiveram tratamento jurídico equiparado ao de união estável, por este Supremo Tribunal Federal, apenas no ano de 201116. E que foi necessário que o Conselho Nacional de Justiça expedisse uma resolução vedando a recusa de celebração de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, pelas autoridades competentes, para que tal direito fosse assegurado efetivamente 17.

23. A transsexualidade e a homossexualidade são um fato da vida que não deixará de existir por sua negação e que independe do querer das pessoas. Privar um indivíduo de viver a sua identidade de gênero ou de estabelecer relações afetivas e sexuais conforme seu desejo significaria privá-lo de uma dimensão fundamental da sua existência; implicaria recusar-lhe um sentido essencial da autonomia, negar-lhe igual respeito e consideração com base em um critério injustificado.

24. A educação é o principal instrumento de superação da incompreensão, do preconceito e da intolerância que acompanham tais grupos ao longo das suas vidas. É o meio pelo qual se logrará superar a violência e a exclusão social de que são alvos, transformar a compreensão social e promover o respeito à diferença. Impedir a alusão aos termos gênero e orientação sexual na escola significa conferir invisibilidade a tais questões. Proibir que o assunto seja tratado no âmbito da educação significa valer-se do aparato estatal para impedir a superação da exclusão social e, portanto, para perpetuar a discriminação. Assim, também por este fundamento – violação à igualdade e à dignidade humana – está demonstrada a plausibilidade do direito postulado.

V. educação sexual e proteção integral da criança e do adolescente

25. É importante considerar, ainda, que os alunos são seres em formação, que naturalmente experimentam a sua própria sexualidade, que desenvolvem suas identidades de gênero, sua orientação sexual, e que elas podem ou não corresponder ao padrão cultural naturalizado. A educação sobre o assunto pode ser, assim, essencial para sua autocompreensão, para assegurar sua própria liberdade, sua autonomia, bem como para proteger o estudante contra a discriminação e contra ameaças de cunho sexual.

26. Nessa linha, deve-se ter em conta que o art. 227. da Constituição assenta o princípio da proteção integral da criança, do adolescente e dos jovens, atribuindo à família, à sociedade e ao Estado o dever de lhes assegurar todos os direitos necessários ao seu adequado desenvolvimento, entre os quais se destacam: o direito à educação, à liberdade e à proteção contra toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão. Confira-se o teor do dispositivo:

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” [Grifo nosso]

27. Em virtude da condição de fragilidade e de vulnerabilidade das crianças, dos adolescentes e dos jovens, a Constituição sujeita-os a um regime especial de proteção, para que possam se estruturar como pessoas e verdadeiramente exercer a sua autonomia 18. Educar jovens sobre gênero e orientação sexual integra tal regime especial de proteção porque é fundamental para permitir que se desenvolvam plenamente como seres humanos. Por óbvio, tratar de tais temas não implica pretender influenciar os alunos, praticar doutrinação sobre o assunto ou introduzir práticas sexuais. Significa ajudá-los a compreender a sexualidade e protegê-los contra a discriminação e a violência.

“A escola pode sim e, aliás, deve auxiliar a toda/o estudante a aprender a relacionar-se afetiva e sexualmente, possibilitando que possa amadurecer “sem fantasmas medievais” a persegui-lo/a. A escola não pode ser um palco de mentiras no qual não entre em cena uma parte importante da vida: a dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. E os dados mostram que aqueles e aquelas que chegaram à universidade lidam melhor com essa realidade do que todos aqueles que param nas primeiras séries do ensino formal. É fundamental investir em uma revisão do currículo e das relações escolares, privilegiando a igualdade entre os sexos e as expressões de gênero.” 19 [Grifo nosso]

28. Não bastasse o exposto, a escola – ao lado da família – é identificada por pesquisadores como um dos principais espaços de discriminação e de estigmatização de crianças e jovens transexuais e homossexuais. Segundo estudos da Fundação Perseu Abramo, quando perguntadas em que situação sofreram pela primeira vez discriminação homofóbica, grande parte das pessoas trans, gays e lésbicas indicou a escola como o lugar em que isso ocorreu pela primeira vez e os colegas de escola como um dos principais autores de tais atos. Veja-se:

“Embora a instituição heteronormativa da sequência sexo-gênero-sexualidade ocorra em diversos espaços sociais e institucionais, parece que são a escola e a família os ambientes nos quais se verificam seus momentos cruciais. A pesquisa da FPA mostra que a família e a escola figuram como os piores espaços de discriminação homofóbica. Por exemplo, pessoas identificadas como gays e lésbicas que já se sentiram discriminadas por causa de sua orientação ou preferências sexuais (59% do total), quando perguntadas em que situação sofreram pela primeira vez discriminação homofóbica, apontaram “colegas de escola” (13% do total dos respondentes), seguidos de “familiares” (11%) e “pais” (10%) (...). São dados que reiteram outras pesquisas realizadas em diversas capitais brasileiras durante as paradas LGBT, nas quais família e escola se revezam como o primeiro e o segundo pior espaço de discriminação homofóbica. [...].

………………………………………………………………………………………....

É inegável o aporte da instituição escolar ao longo dos processos de normalização heterorreguladora dos corpos e de marginalização de sujeitos, saberes e práticas dissidentes em relação à matriz heterossexual. Ali, a presença da homofobia é capilar. Em distintos graus, na escola podemos encontrar homofobia no livro didático, nas concepções de currículo, nos conteúdos heterocêntricos, nas relações pedagógicas normalizadoras. Ela aparece na hora da chamada (o furor em torno do número 24, por exemplo; mas, sobretudo, na recusa de se chamar a estudante travesti pelo seu ‘nome social’), nas brincadeiras e nas piadas ‘inofensivas’ e até usadas como ‘instrumento didático’. Está nos bilhetinhos, nas carteiras, nas quadras, nas paredes dos banheiros e na dificuldade de ter acesso ao banheiro. Aflora nas salas dos professores/as, nos conselhos de classe, nas reuniões de pais e mestres. Motiva brigas no intervalo e no final das aulas. Está nas rotinas de ameaças, intimidação, chacotas, moléstias, humilhações, tormentas, degradação, marginalização, exclusão etc.” 20 [Grifo nosso]

29. É na escola que eventualmente alguns jovens são identificados, pela primeira vez, como afeminados ou masculinizados, em que o padrão cultural naturalizado é identificado como o comportamento “normal”, em que a conduta dele divergente é rotulada como comportamento “anormal” e na qual se naturaliza o estigma. Nesse sentido, o mero silêncio da escola nessa matéria, a não identificação do preconceito, a omissão em combater a ridicularização das identidades de gênero e orientações sexuais, ou em ensinar o respeito à diversidade, é replicadora da discriminação e contribui para a consolidação da violência às crianças homo e trans. Veja-se:

“Com suas bases emocionais fragilizadas, travestis e transexuais na escola têm que encontrar forças para lidar com o estigma e a discriminação sistemática e ostensiva. Expostas a sistemáticas experiências de chacota e humilhação e a contínuos processos de exclusão, segregação e guetização, são arrastadas por uma “rede de exclusão” que “vai se fortalecendo, na ausência de ações de enfrentamento ao estigma e ao preconceito, assim como de políticas públicas que contemplem suas necessidades básicas, como o direito de acesso aos estudos, à profissionalização e a bens e serviços de qualidade em saúde, habitação e segurança (Peres, 2004, p. 121). Na escola, quando um docente se recusa a chamar uma estudante travesti pelo seu nome social, está ensinando e estimulando os demais a adotarem atitudes hostis em relação a ela e à diversidade sexual. Trata-se de um dos meios mais eficazes de se traduzir a pedagogia do insulto em processos de desumanização e exclusão no seio das instituições sociais.” 21 [Grifo nosso]

“Diante dos resultados obtidos na pesquisa Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil, podemos afirmar que no campo da educação são ainda muitos e profundos os problemas que a homofobia causa a estudantes LGBT em todo o país. Os dados mostram que, da maneira como está estruturada e no cotidiano de suas práticas pedagógicas e de socialização, a escola é realmente um ambiente em que há discriminação pelo descumprimento das normas de gênero e da sexualidade. Normas estas ainda bastante arraigadas em concepções naturalizantes, ou melhor, biologizantes, isto é, que supõem uma oposição binária e complementar entre machos e fêmeas e, portanto, do masculino e do feminino baseada em sua constituição fisiológico-corporal e/ou genética.” 22 [Grifo nosso]

30. É na escola que se pode aprender que todos os seres humanos são dignos de igual respeito e consideração. O não enfrentamento do estigma e do preconceito nas escolas, principal espaço de aquisição de conhecimento e de socialização das crianças, contribui para a perpetuação de tais condutas e para a sistemática violação da autoestima e da dignidade de crianças e jovens. Não tratar de gênero e de orientação sexual na escola viola, portanto, o princípio da proteção integral assegurado pela Constituição.

VI. Conclusão

31. Por todo o exposto, entendo presente a plausibilidade da inconstitucionalidade formal e material do art. 3º, X, da Lei 3.468/2015. O perigo na demora é igualmente inequívoco uma vez que a norma compromete o acesso imediato de crianças, adolescentes e jovens a conteúdos relevantes, pertinentes à sua vida íntima e social, em desrespeito à doutrina da proteção integral.

32. Defiro a cautelar, para suspender os efeitos do art. 3º, X, da Lei 3.468/2015, parte final, no trecho em que veda o ensino sobre gênero e orientação sexual.

33. Inclua-se o feito em pauta para a apreciação da liminar pelo pleno. Na sequência, solicitem-se informações ao Exmo. Sr. Prefeito e à Câmara Municipal de Paranaguá, bem como o parecer do Advogado Geral da União.

Publique-se. Intime-se.

Brasília, 16 de junho de 2017.

Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO

Notas:

1 RE 845.779, rel. Min. Luís Roberto Barroso.

2 Sexo é, contudo, um conceito controvertido. Veja-se o que diz Jaqueline Gomes de Jesus sobre o assunto: “a sociedade em que vivemos dissemina a crença de que os órgãos genitais definem se uma pessoa é homem ou mulher. Porém, essa construção do sexo não é um fato biológico, é social” (JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012.

3 LANZ, Letícia. Identidade de gênero.

4 BENTO, Berenice. O Que é Transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 328; JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012.

5 ADI 5.537, rel. Min. Luís Roberto Barroso.

6 MOTTA, Elias de Oliveira. Direito educacional e educação no século XXI. Brasília: Unesco, 1997. p. 91.

7 Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto nº 591/1992): “Artigo 13. [...]. § 1º. Os Estados-partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz” [Grifo nosso]. Protocolo Adicional de São Salvador (Decreto nº 3.321/1999): “Art. 13. Direito à Educação. [...]. 2. Os Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas as pessoas capazes de participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e de conseguir uma subsistência digna; bem como favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, e promover as atividades em prol da manutenção da paz. 3. Os Estados-Partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito à educação: [...]. De acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima” [Grifo nosso].

8 Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483. (1954).

9 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Trad. Beatriz Hennig et al. Berlim: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 508.

10 LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3. ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 15-16.

12 A estimativa é do grupo Transrevolução (RJ).

13 PRADO, Marco Aurélio Máximo; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia, hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 61.

14 Segundo estudo sobre diversidade sexual, que entrevistou 2014 pessoas, em 150 municípios do país: “Cerca de 90% dos entrevistados acreditam haver preconceito contra LGBT no Brasil; 26% admitem ter preconceito pessoal contra gays, e 29% contra travestis (...); 84% dos entrevistados concordam totalmente com a seguinte frase: “Deus fez o homem e a mulher com sexos diferentes para que cumpram seu papel e tenham filhos”. Enquanto 58% concordam que “a homossexualidade é um pecado contra as leis de Deus” (...); e 7% dos entrevistados não aceitariam um filho gay e o expulsariam de casa” (RODRIGUES, Julian. Direito humanos e diversidade sexual: uma agenda em construção. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 34).

15 Relatório sobre Violência Homofóbica da Secretaria de Direitos Humanos, p. 22.

16 ADI 4277 e ADPF 132, rel. Min. Ayres Britto, DJe, 14.10.2011.

17 Resolução CNJ nº 175/2013: “Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo”.

18 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. São Paulo: Saraiva, p. 148.

19 RAMIRES, Luiz. Homofobia na escola: o olhar de um educador social do movimento LGBT. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p 131-139.

20 PRADO, Marco Aurélio Máximo; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia, hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 59-60.

21 PRADO, Marco Aurélio Máximo; JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia, hierarquização e humilhação social. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 59-60.

22 RAMIRES, Luiz. Homofobia na escola: o olhar de um educador social do movimento LGBT. In: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2011, p 131-139.

(ADPF 461, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, julgado em 16/06/2017, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-134 DIVULG 20/06/2017 PUBLIC 21/06/2017)

DAS GRAVES VIOLAÇÕES CONSTITUCIONAIS

Medidas como esta, de atemorização e coerção exercida por vereadores contra professores da rede pública municipal de ensino, infelizmente, têm-se mostrado atuantes em todo o país – devido à onda conservadora/reacionária que se instaurou no país. Além de se configurar como crime contra a pessoa do servidor público, corrobora como atentado aos preceitos da Constituição Federal de 1988, na forma de se invalidar o compromisso com a Liberdade – um dos preceitos-baluartes da Dignidade Humana.

Vejamos pari passu, desde o Preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (BRASIL, 1988 - grifo nosso).

Na sequência, em que se acompanha a leitura do artigo 1º:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

V - o pluralismo político.

Por mais que se desconheça a Carta Política, o legislador não pode produzir hermenêutica que substitua “pluralismo político” com “multiplicação partidária”. A seguir:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário (BRASIL, 1988, art. 1-2 - grifo nosso).

A célebre tripartição dos poderes, constante desde Locke (1994), mas redefina pelo Iluminismo de Montesquieu e de Saint-Jus, não se aquebranta, salvo na forma totalitária do poder. O legislador teria de saber disto, a fim de não importunar as tarefas que cabem ao Ministério da Educação – consoante a CF/88. E ainda que ver, como no art. 3º:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

[...]

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL, 1988, art. 3. - grifo nosso).

Não está claro e bem definida a liberdade sem discriminação? Por que o legislador infraconstitucional – ao decair de sua função derivada – quer impor apenas a “liberdade dentro de seu culto e ritual”? Como é que haverá integração regional se, internamente, promove-se a censura de quem se julga superior à Constituição?

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Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

[...]

§ A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações (BRASIL, 1988, art. 4. - grifo nosso).

Segue-se pelo art. 5º da Constituição Federal de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

[...]

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (BRASIL, 1988, art. 5. - grifo nosso).

Que leis violaram os professores que adentraram ao mérito da discriminação racial (sic), machista, homofóbica, de verdadeira tortura social que se assenta na realidade nacional? Ou alguém desconhece que matamos, no mínimo, 70 mil brasileiros e brasileiras anualmente, de forma violenta e trágica? Desconhecer o Texto Constitucional é grave, mas amotinar-se contra dados da realidade é preocupante. Também desconhecemos os direitos sociais? O primeiro deles não é a educação?

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988, art. 6. - grifo nosso).

Salvo escusas de alguma revisão constitucional não difundida, ainda prevalecem os desígnios do Estado Laico – independente se se confessa com Deus, Alá ou a “espiritualidade do alto”.

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. (BRASIL, 1988, art. 19. - grifo nosso).

Aqui, por óbvio, não cabem hermenêuticas ou interpretações, pois que o verbo proíbe, veda, obriga a não-fazer ou a desfazer, caso tenha feito o malfeito de violar a laicização do espaço público. São muitas aparições constitucionais em defesa da Liberdade (vale dizer, do Iluminismo) e a contragosto da censura, quer seja político-institucional quer seja clerical, porém, para sintetizar, traremos (in verbis) os preceitos – que não contém preconceitos religiosos – atinentes aos artigos 205 a 207 da CF88.

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII - garantia de padrão de qualidade.

VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

Parágrafo único. A lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais da educação básica e sobre a fixação de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos de carreira, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

§ 1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros, na forma da lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996)

§ 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1996) (BRASIL, 1988, art. 205-207 - grifo nosso).

Do contrário, esta forma-Estado de Cesarismo Regressivo e Repressivo (Gramsci, 200o) atua mediante a coerção de forma ilegal, inconstitucional, portanto, antirrepublicana e antidemocrática. Condição que, historicamente, ficou conhecida como Clerical-Fascismo.

DA LIBERDADE OU DO CLERICAL-FASCISMO

Há que se reafirmar que o Estado Laico60 não suprime a liberdade religiosa, apenas torna facultativa a apreciação religiosa: e se é facultativa, o cidadão tem o direito de não se submeter a religião alguma. Aliás, este é o ponto de inflexão do Estado Teológico ao Estado Laico, da argumentação teológica à valoração ética e teleológica. Mesmo no interior doméstico das casas, dos lares, a religião não pode ser óbice ao desenvolvimento da ética pública: são dois fenômenos distintos, mas com prevalência absoluta para a ética pública.

Tome-se o exemplo hipotético de uma cidade que só tenha uma escola pública e que nesta escola não haja adoração religiosa de nenhum tipo, ou seja, que seja de fato laica. O pai ou a mãe de filhos menores, fervorosas em sua fé – seja qual for – não podem abdicar de matricular seu(s) filho(s) sob a alegação de que é uma escola que pratica o ateísmo: até porque talvez nem se defenda ali o ateísmo, talvez apenas se pratique o absenteísmo religioso. Esta abstenção religiosa da escola pública, se motivar os pais à ausência de cuidados escolares dos filhos, certamente, lhes acarretará responsabilidade criminal: abandono de menores na fase em que mais precisam do apoio público (escola) e dos pais.

É, pois, exatamente o oposto do que se compreende no senso comum. O que resta obrigatório, neste plano inicial da abordagem, é que – face à liberdade de não professar religião alguma – as manifestações públicas de adoração de qualquer credo religioso devem ser reguladas e, em alguns casos, proibidas pelo Estado: a exemplo das escolas públicas, repartições públicas e átrios e ambientes internos dos três poderes.

O debate sobre tolerância religiosa, portanto, deve incidir somente no sentido de que o Estado – ao não adotar religião alguma – deve criar condições, zelar, para que todas possam se manifestar em seus devidos centros de espetáculo religioso ou até mesmo no espaço público, desde que o Poder Público seja comunicado com antecedência e que ali esteja presente apenas para garantir a segurança dos presentes e dos transeuntes não aliciados por aquela determinada religiosidade.

Realmente, não há que se discutir a liberdade de culto religioso, pois se trata de direito de manifesto conteúdo político que remonta à abertura do Iluminismo. Kant com seu sapere aude (ouse saber!) e Locke, na seara do liberalismo condutor das teses da tolerância religiosa, fariam eco à Revolução Gloriosa de 1648 e a todo o curso diretivo da Reforma, no centro do Renascimento.

Kant definiu o Iluminismo como a saída do ser humano do estado de não-emancipação: como sendo a incapacidade de fazer uso de sua razão sem recorrer a outros. Em sua Carta Sobre a Tolerância, Locke (1987) expõe e argumenta de maneira lógica a necessidade da separação entre Igreja e Estado. E, uma vez exposta a argumentação que garante a separação entre a razão que envolve as agências políticas e os sentimentos de foro íntimo que alimentam a crença na transcendência, Locke define-se pela tolerância à diversidade de culto e de práticas.

O que também acarretaria alguns princípios básicos da tolerância religiosa: solidariedade e generosidade. Ao que ainda se soma a caridade, a mansuetude e a benevolência.

Sem contar que a liberdade religiosa, como liberdade acerca de se ter ou não uma crença, ou seja, antes mesmo de haver inclinação por esta ou aquela religião, é direito de primeira instância. Como direito de plenitude subjetiva, que apenas realça a condição humana, vê-se convertido em instrumento dos que se conscientizam da incompletude humana e da incapacidade de sobreviver ao peso massacrante do realismo da cotidianidade. A estes ainda se somam as raízes de eras remotas do transcendente convertido em direito de sobrevivência, como se deu no chamado Cristianismo Primitivo, em luta acesa contra o Império Romano. Também se esperava que já se tivessem ido embora os ardorosos defensores de suas próprias Cruzadas. Todavia, mesmo diante do século XXI à nossa frente, ainda precisamos nos converter de crença e de expectativa de direito, porque a intolerância não é capaz de vir amainada pelo debate: inatismo versus transcendentalismo. Trata-se, portanto, de um de direito político, mas, enquanto direito público-subjetivo, direito de livre-arbítrio. Disto já sabemos todos nós. Contudo, perdemo-nos em defesa do direito ao transcendente quando este se vê confrontado com a laicização.

O fenômeno da laicização, por seu turno, também responde ao pleno Renascimento, quando se formava o Estado-Nação e a matemática ganhava força para conquistar novos horizontes à humanidade. Igualmente são conhecidas as histórias de Galileu e de Newton; desnecessário, portanto, aqui retomá-las, bem como o célebre “Navegar é preciso!” (de Fernando Pessoa), com bússola e astrolábio. Em suma, diante do duelo ciência e fé, obra homônima de Galileu (1988), trata-se de se ter a razão aliada à devida prudência de se buscar a verdade, de não ir de encontro ao perigo, às ciladas da própria ânsia ou ganância. Assim, prudência é ter ciência da paciência e, portanto, paciência com a consciência. Esta é, em síntese, a reta razão que pode unir conhecimento e moderação. Já em Maquiavel (1979), trata-se de primar pela veritá effettuale: verdade testada pelo sucesso da experiência (empirismo)61.

O Projeto Escola sem Partido

Auto intitulada de Escola sem Partido, a ideologia toma o partido do fascismo, o qual prega a total satanização, vitimização da ação política. Os néscios dessa ordem querem apagar a filosofia grega, dissecar a Polis, remover da condição humana a própria “vita activa”. Assim, de encontro ao processo civilizatório, pode-se dizer que só não toma partido em qualquer situação os néscios, anencéfalos, “loucos de todo gênero” (sic), absolutamente incapazes, até porque os medianos têm condição do veto, alienados de si mesmos, embrutecidos de toda ordem, desprovidos de massa crítica, analfabetos políticos contumazes, ignorantes da realidade circunvizinha e que tais.

Não há, na vida humana – quer dizer, civilizada – um só átimo de ação em que não tomemos partido diante de um fato e isto nos confere avaliação, ainda que muitas vezes desprovida de méritos e consciência sobre o feito/fato. No nosso modelo de nato-fascismo, iniciamos e aprimoramos em muitos pontos a minuta do protofascismo trazida por Umberto Eco (1998):

1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e verdade primitiva. Como conseqüência, não pode existir avanço do saber. 2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a Idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo. 3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão. 4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. Para o Ur-Fascismo, a crítica e o desacordo são traições. 5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade cultural. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 6. Uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas. 7. Na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô. Os seguidores têm que se sentir sitiados e o modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. 8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo – com isso, porém, revelam-se incapazes de avaliar a força do inimigo. 9. Não há luta pela vida, mas antes vida para a luta. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. 10. Há um elitismo popular, populista, que faz as massas sonharem com o poder. 11. Nessa perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Esse culto do heroísmo está estreitamente ligado ao culto da morte, não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte”. (ECO, 1998, p. 43)62.

A lista de assalto à democracia, de atentado ao bom senso, de espancamento aos direitos humanos fundamentais é infinda, bem como a descrição de seus (nossos) algozes. Este breve retrato tem o intuito de apenas nos posicionarmos, tomando-se partido nas escolas, nas ruas e nas casas, a fim de que o fascismo e o cesarismo sejam objetivamente caracterizados. Desse modo, os dois últimos exemplos são objetivos quanto à realidade: Ministério Público pede a interdição de Grupo de Estudos sobre o pensamento de Karl Marx, na Universidade Federal de Minas Gerais63; a cidade do Estado do Paraná adota projeto advindo do modelo Escola Sem Partido64 – depois seria seguida por outras. Pois, o que prevalece são os “méritos” político-ideológicos e não a educação.

A negatividade da incapacidade cognitiva

É com desgosto intelectual, se estamos habituados a ter com o Iluminismo emancipatório, que nos vemos instados a ler o Projeto Escola sem Partido (PL 193/2016). Em todo caso, já que mergulhamos no anti-iluminismo, abre-se aqui o inciso I, do artigo 2º: “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. Será que os envolvidos nas ações propositivas e práticas do projeto sabem o que isso significa e o alcance que isto representa?

Quanto a ter uma neutralidade política do Estado, é o mesmo que esperar do direito uma função que não seja legal. O direito pode ser imoral, ilegítimo, injusto e mesmo assim terá uma conotação legal. O Estado pode ser financiador de terrorismo ou de pacifismo, zelar pelo povo ou se voltar contra ele.

Portanto, o Estado nunca será – por absoluta concordância lógica – neutro politicamente. Se os legisladores prenhes de sabedoria no Poder Legislativo, e o nome já diz que é um poder, estudassem o mínimo, saberiam que o Estado corresponde ao Poder Político. Ou seja, como imaginar que possa haver um poder sem ser político?

Alguns pensaram desse modo no século XIX; mas, sem sucesso diante da realidade, estão relegados ao esquecimento do mundo real. Pois bem, como se não bastasse, o tal PL – de quem nunca estudou qualquer assunto a sério, a não ser a contabilidade dos donativos que não pagam tributos – ainda tem a capacidade de propor uma neutralidade ideológica do Estado ou do Poder Político.

Sem muitas conjecturas sobre o que seja ideologia – se é uma mentira, uma névoa sobre o real, uma tomada parcial, disforme, distorcida da realidade –, basta-nos pensar em dois sentidos bem “neutros”: “conjunto de valores” (MANNHEIM, 1979); “visão de mundo” (LÖWY, 1975). Acaso existe uma visão de mundo que não seja parcial?

Além disso, como ressalta Löwy (1975), não há nem mesmo “um trabalho empírico neutro”; pois, é “como se a escolha das questões não determinasse, em larga medida, as respostas mesmas!” (LÖWY, 1975, p. 16).

De todo modo, retomemos com os não-marxistas (de Karl Marx), para ver que também são sábios – quando estudam de verdade. Em Mannheim:

Os objetivos educacionais da sociedade não podem ser adequadamente entendidos quando separados das situações que cada época é obrigada a enfrentar e da ordem social para a qual eles são formulados” (MANNHEIM, 1979, p. 89-90 – grifo nosso).

O sociólogo Antony Giddens (1998), segue a trilha de Max Weber (1979) e de Mannheim (dois sociólogos clássicos): “O ato de fundar é uma “teorização política” precisamente porque os princípios inferidos a partir do trabalho dos fundadores legitimam dimensões básicas da atividade intelectual” (1998, p. 14-15 – grifo nosso). Como se lê, não há ato que não seja político. Aliás, já dizia Aristóteles (2001).

Agora, como querem os marxistas: “estudar profundamente a teoria em suas fontes originais e não em fontes de segunda-mão” (HOBSBAWN, 1991, p. 21). Estudar para, sim, tomar partido, o partido do bom, belo e justo – o que para estudiosos não equivale a adotar partido político.

Nunca pensei que cairia tão bem a recomendação clássica: “o próprio educador deve ser educado” (MARX, 1984, p. 126). Do que decorre outra, deixem a educação para quem estudou. A conclusão, igualmente óbvia, neste item, é que não se explica a um jumento que ele é jumento. Quem não frequenta a escola não pode falar de educação.

Para quem se propõe a tratar da educação, em todos os sentidos, é preciso dizer que o clássico é altamente especializado, mas o que impede sua miopia é esta disposição para ver (sem medo) de uma posição privilegiada, mas não do alto em postura insípida, inodora arrogante, superior.

O clássico ultrapassa seu tempo porque está aberto e sensível à visão longitudinal e latitudinal da realidade. O clássico reinventa os significados, os sentidos e enfrenta as conclusões muito alusivas, lendárias, óbvias ou até levianas (PL 193/2016), em algo surpreendentemente inovador, transformador, quase fantástico.

Todo clássico tem o holos como referência porque quer saber de tudo um pouco, sabendo muito de algo em especial e, por isso, o clássico tem os olhos abertos para o futuro. O resto – como resto mesmo – é pura ignorância. Ou como disse de forma célebre e objetiva, o físico Isaac Newton: “Se vi mais longe, foi porque estava sobre os ombros de gigantes”.

Por fim, resta dizer, igualmente como resto, que se o projeto não passa na análise do primeiro inciso, não há que se gastar mais tinta com defunto ruim. Essa é nossa contribuição para os soberbos que o propõe, mas, se alguém quiser debater, é só chamar. Tem muito mais de onde veio esse breve texto. Apesar de não me dedicar a explicar o que seja burrice solene. Brincamos de educação – para se dizer o mínimo – quando intentamos opor o irracionalismo cromo crítica ao Iluminismo emancipatório: o resultado é o irracionalismo anti-iluminista que alimenta a sombra moral do fascismo.

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Sobre os autores
Vinícius Scherch

Graduado em Direito pela Faculdade Cristo Rei, Cornélio Procópio - Paraná (2010). Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNOPAR, Campus Bandeirantes - Paraná (2014). Graduado em Gestão Pública pela UNOPAR, Campus Bandeirantes-Paraná (2015). Mestre em Ciência Jurídica pela UENP -Jacarezinho. Advogado na Prefeitura Municipal de Bandeirantes - Paraná.

Vanderlei de Freitas Nascimento Junior

Doutorando no PPGCTS, da UFSCar. Advogado. Especialista em direito processual civil pela Rede Anhanguera/UNIDERP.

Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Colaboração: Isadora Pascoalino Mariotto; Maria Eduarda de Oliveira; Raquel Franco Tassoni graduandas em Pedagogia na Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR. Revisão Técnica: Ana Paula Ricci de Jesus – Graduada em Letras pela PUC-Campinas. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Literatura/PPGLit/UFSCar.

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