POSSIBILIDADES E DISCUSSÕES
6.1 A EMERGÊNCIA DOS AXIOMAS RETRIBUTIVOS – ENTRE UMA IDEIA DE JUSTIÇA E UMA REALIDADE NÃO CORRESPONDENTE
Diante dos dados, passamos à discussão destes resultados buscando compreender o que eles indicam verdadeiramente. Assim, observamos a clara preferência dos pesquisados com as teorias retributivas e as mistas e, consequentemente, uma evidente preterição das chamadas teorias preventivas em ambos os anos. O 1º ano optou, preferencialmente, pelas teorias mistas, seguida das retributivas; o quadro no 5º ano se inverte – as teorias retributivas ganham força com o grupo.
Primeiramente, questionamos o porquê das teorias retributivas ou absolutas ganharem força com o público ao passar dos anos, uma vez que, doutrinariamente, podemos, inclusive, levantar a falência desta teoria quando posta à crítica – sendo tarefa árdua achar intelectuais (vivos) que fundamentem a pena tão somente nesta justificativa como o fazem estes os pesquisados incluídos nestes dados – considerando ambos os anos, chegamos à média de 43% de optantes por esta teoria. Observamos, ainda, que é a teoria que prevalece entre os concluintes do curso, com uma folga de cerca de 10% para a próxima na estatística.
Parece-nos que sob o ideário dos estudantes repousa a ideia que a doutrina aduz: “a pena ainda não perdeu sua finalidade retributiva. Na lição de Nélson Hungria, a pena, como retribuição, traduz primacialmente, um princípio humano por excelência, que é o da justa recompensa: cada um deve ter o que merece” (SHITANTI, 1999, p. 189, grifo nosso).
Isto é, a mais plausível justificação para tais dados se encontra numa tentativa de afloramento do mais selvagem senso de justiça a partir do questionamento e da ponderação do aparente livre arbítrio do delinquente e o sopesamento do mal causado – o brocardo romano ecoa, punitur quia peccatum est, pune-se porque se pecou (se cometeu o crime). Já se asseverava, e se faz visível aqui, na década de 1960 este fenômeno nas lições de Aníbal Bruno (1967, p. 32-33) quando propunha que, no cerne desta teoria, qualquer fim prático para além da retribuição é meramente secundário e não deveria, de nenhuma maneira, se comparar e, tão menos, se sobrepor, a um fim essencial de uma espécie de justiça retributiva.
Seja por excesso de utilitarismo ou por um espírito fenomenológico inerente à atividade jurídica, parece-nos que este cenário, permeados por axiomas que se travestem de justiça e ou mesmo de equidade, é um problema severo ao tentar compreender a realidade e, mais ainda, a realidade brasileira tão cheia de desigualdades e com uma tão grave necessidade de reestruturação crítica da “prática penal” que para argumentação – quanto a isto – dispensa (ao leitor e) qualquer tipo de número ou gráfico que represente tal dilema. Conciliar tais dogmas com uma tentativa de funcionalização da pena diante do monopólio da violência que se encontra no Estado – tão ineficiente – é achar, na verdade, a falência da justiça e se lançar a uma autocondenação, afinal, o indivíduo que delinquiu deixaria, assim, de ser um problema? Criaríamos eternas cidades-exílio como no passado mais remoto da humanidade? Acharíamos, desta forma, qualquer tipo de ressocialização do indivíduo através de uma revelação transcendental ou metafísica que, após esta “paga” transformaria o delinquente em um indivíduo “remido” e apto para as a vivência em sociedade? As repostas para estas perguntas devem ser todas, enfaticamente, negativas.
6.2 A FALÊNCIA DO IDEÁRIO PREVENTIVO?
Outra observação fácil de ser feita é o baixo número de optantes por um caminho que funcionalize a pena apenas em uma ideia preventiva, sendo esta prevenção a finalidade ulterior a ela. Assevera-se que esta teoria, no início do curso, tem uma força quase que inexpressiva e, com o decorrer dos anos, os resultados apontam que chega a crescer 6% em relação aos graduandos.
A doutrina nos ensina que “nas teorias relativas (utilitárias ou utilitaristas), dava-se à pena um fim exclusivamente prático, em especial o de prevenção. O crime não seria causa da pena, mas a ocasião para ser aplicada" (MIRABETE, 2005, p. 244). Desta forma, a pena teria uma incidência prática, seja na sociedade ou seja no delinquente, no sentido de impedir o delito – para além da ideia de “justiça”, há a necessidade social – ecoa, assim, outro brocardo: punitur ne peccetur, punir para não pecar.
A fim de achar uma explicação para tal preterição por esta teoria, deparamo-nos com uma seleuma que impera na mídia e se reverbera sem limites: o nível de reincidência criminal. Investigando os noticiários e mídias sociais brasileiras não é difícil achar o espantoso número de “70% de reincidência criminal”. Todavia, quando pesquisado e posto à prova este número, encontramos um sem-fim de problemas nessa afirmação. A Agência Lupa (2006), membro verificado da International Fact-checking Network (IFCN), fez um trabalho de checagem de fato deste axioma e expôs a encomenda, no ano de 2012, de uma pesquisa sobre reincidência criminal - entende-se o termo “reincidência criminal” em quando há mais de uma condenação, independentemente do prazo legal estabelecido pela legislação brasileira.
Os dados frutos de uma pesquisa em cooperação técnica entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) teve publicação em 2015 e expôs que 1 (um) em cada 4 (quatro) condenados reincide no crime, 24,4%. Todavia, fazemos a ressalva de que existem diversas pesquisas com as mais variadas configurações possíveis para entendimento do termo “reincidência” e com padrões que consideram ou não os presos provisórios, fazendo com que estes dados sejam dotados de uma grande elasticidade e difíceis de representar a realidade brasileira de forma segura – fazendo com que o dado inflamado de “70%” seja reiterado tantas vezes pela imprensa, por gestores públicos e afins.
Partindo não da exatidão dos dados que as pesquisas de reincidência apontam, mas sim dos dados que são repercutidos midiaticamente podemos traçar uma ponte entre a “realidade” (crida pelos pesquisados) e os números que se manifestaram em nossa pesquisa. A possibilidade que melhor explica a preterição da teoria preventiva é, exatamente, a descrença de que o ato punitivo surta algum tipo de efeito que faça com que esses crimes não sejam reiterados; isto é, no ideário dos pesquisados pode ecoar o signo da “desesperança” na pena, não achando, eles, motivo para crer que punir impeça o peccatum.
EPÍLOGO: CONCLUSÕES, PACIFICAÇÕES E PROPOSTAS
Baseado nas realidades expostas, sejam as do Brasil, sejam os resultados obtidos com a pesquisa com os acadêmicos da Faculdade da Amazônia Ocidental, nos deparamos com a emergente necessidade de fomento ao processo de ensino-aprendizado crítico, que ponha à prova e questione pseudo-verdades que pairam sobre o senso comum e que devem ser malhadas sob a ótica crítica do pensamento – da filosofia, da fenomenologia e tantas outras disciplinas.
A suposição apriorística que as respostas dos grupos apontassem para a transição de uma justificativa retributiva para a pena, que preponderaria no grupo ingressante – uma vez que é um pensamento relativamente próximo ao senso comum e que apresenta menor complexidade de engendramento – e se desenvolvesse no grupo concluinte de forma a concordar com a doutrina da teoria mista pacificada no Brasil não foi confirmada. Encontramos, na verdade, caminhos que nos parecem – assim como à doutrina – retrógrados; fato que evidencia que os pseudo-axiomas carregados pelos indivíduos, mesmo em ambiente acadêmico, não são tão facilmente abandonados.
Havemos de pacificar que, se necessitamos mudar a realidade criminal e penal brasileira – como o sabemos que sim – há um longo caminho a ser exercido na própria sala de aula e nos debates acadêmicos, a fim de encontrarmos uma forma de funcionalizar a pena sob uma ótica humanística e que, utilitariamente, possa atender as necessidades da própria sociedade para que os sistemas penais possam se desenvolver a partir destas. Por fim, entendermos o ideário destes grupos é vislumbrarmos como se farão possíveis os caminhos de ressocialização no país – se o farão.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. Volume 1, 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
BRANDÃO, Cláudio. Teoria Jurídica do Crime. 2. ed. São Paulo: Forense, 2007.
SILVA, Haroldo Caetano da. Manual de Execução Penal. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2002.
BRUNO, Anibal. Direito Penal: parte geral. 3. ed. São Paulo: Forense, 1967.
SHITANTI, Tomaz M. Curso de Direito Penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direto Penal: parte geral, 22. ed. São Paulo: Atlas, 2005
LUPA. ‘A reincidência atinge mais de 70% dos presos no Brasil’?. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2016/07/12/lupaaqui-a-reincidencia-atinge-mais-de-70-dos-presos-no-brasil/>. Acesso em: 8 nov. 2018.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2
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[1] Para mais detalhes, observar a apresentação das Teorias Relativas, seção 4.2 deste artigo.