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Aids e discriminação:

violação dos direitos humanos

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05/08/2005 às 00:00
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Este trabalho tem como objetivo mostrar a relação dos direitos humanos com a AIDS, sua atuação e sua contribuição na luta pelo fim do preconceito, mostrando como pode melhorar a vida dos portadores do HIV/AIDS.

RESUMO

Este trabalho monográfico tem por objetivo o estudo da discriminação associada à AIDS e a conseqüente violação dos direitos humanos. O estudo pautou-se nos princípios da dignidade da pessoa humana, da não-discriminação e do direito à vida e à saúde. Ao se analisarem os aspectos da discriminação em relação à AIDS, identificaram-se conseqüências negativas para os programas de saúde pública e para o tratamento dos doentes de AIDS. Através da pesquisa bibliográfica, constatou-se a ineficácia dos programas de prevenção da AIDS, bem como as falhas no tratamento da doença, quando a discriminação está presente. Desde a descoberta do vírus HIV, diversas ações foram implementadas pelo governo e pelas organizações não-governamentais que cuidam da problemática. Contudo, essas ações visaram apenas à informação, acerca das formas de contágio e de prevenção. Por isso, deve haver uma maior ênfase no aspecto de discriminação, no que se refere à educação e informação sobre a AIDS, matéria tratada nesta monografia.

Palavras-chave: AIDS. Discriminação. Direitos humanos.


SUMÁRIO: RESUMO. INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I: AIDS E SEU SURGIMENTO. 1.1 Síndrome da imunodeficiência adquirida. 1.2 Origem e disseminação. 1.3 AIDS: a terceira epidemia. CAPÍTULO II: DIREITOS HUMANOS. 2.1 Declaração Universal dos Direitos Humanos. 2.2 Eficácia da Declaração no ordenamento jurídico brasileiro. 2.3 Constituição Federal de 1988. 2.3.1 Princípio da dignidade da pessoa humana. 2.3.2 Direitos individuais referentes ao tema em análise. CAPÍTULO III:DISCRIMINAÇÃO, DIREITOS HUMANOS E AIDS. 3.1 A discriminação e a AIDS. 3.2 Violação dos direitos humanos e suas conseqüências para o portador do HIV. 3.3 AIDS e direitos humanos. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

O surgimento da AIDS despertou medo e intensificou preconceitos preexistentes na sociedade e no mundo. As primeiras vítimas foram os homossexuais. Posteriormente, com a propagação da AIDS, prostitutas, usuários de drogas, moradores de rua ou qualquer pessoa que adotasse comportamento inadequado para os modelos da sociedade tornaram a ser apontados como portadores potenciais.

Além da associação com a promiscuidade, a AIDS, desde seu surgimento, esteve sempre associada à morte e à fatalidade. Através dessas associações, o portador do HIV/AIDS tem sua cidadania negada, é excluído socialmente e renegado pelas pessoas, até por sua própria família.

Neste contexto de discriminação e preconceito, surgem os direitos humanos, que nada mais são do que direitos fundamentais do homem. Como objeto central dos direitos humanos, este é tutelado em sua essência. Conforme consagra nossa Carta Magna, as necessidades físicas e sociais do individuo devem ser protegidas e sua dignidade preservada.

Este trabalho tem como objetivo mostrar a relação dos direitos humanos com a AIDS, sua atuação e sua contribuição na luta pelo fim do preconceito, mostrando como pode melhorar a vida dos portadores do HIV/AIDS. Além disso, ressalta as conseqüências que a discriminação e o preconceito geram para a saúde pública e para o ser humano, no contexto da AIDS.

A discriminação tem conseqüências danosas para a pandemia da AIDS e é um obstáculo aos programas de prevenção e controle da doença. Muitas pessoas, devido à discriminação e à estigmatização da AIDS, têm medo de procurar ajuda e acabam se afastando dos programas sociais criados para esse fim. Preferem ficar com a dúvida e ignorar o fato de poder ter o vírus a ter que enfrentar os estigmas e os preconceitos relacionados à doença.

Além do problema da discriminação para a saúde pública, o ser humano e sua dignidade são intensivamente afetados. Ao contrair o vírus, a morte é associada ao portador, de modo que sua cidadania começa a desaparecer. Demissão do emprego, proibição de freqüentar determinados lugares, desprezo, omissão no atendimento médico, abandono da família e amigos são as principais conseqüências que atingem a pessoa que contrai o vírus HIV. O portador passa a ser algo descartável e dispensável para a sociedade.

Esses tipos de atitudes adotadas contra o portador do vírus prejudicam seu tratamento e sua recuperação. Um ambiente acolhedor e amigável é essencial para a recuperação do portador do vírus HIV. Com a presença dos direitos humanos, todas essas atrocidades podem ser combatidas e evitadas.

Na luta pelos direitos do portador do HIV/AIDS, estão presentes as ações dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Destacam-se ainda as ONGs que, através de seus ativistas, conseguiram pressionar o governo e conquistar diversos direitos para os portadores do vírus.

Não resta dúvida de que a discriminação tem efeito totalmente negativo, no que diz respeito ao controle da AIDS e à qualidade de vida do portador do HIV/AIDS. Dentro de tal contexto, este trabalho vem enfatizar o citado problema, com o intuito de alertar a sociedade para os efeitos maléficos da discriminação. Esta deve ser combatida com tanta eficácia quanto a luta pela prevenção do contágio pelo vírus.

O trabalho foi elaborado com base na seguinte estruturação: no capítulo I, são abordados os aspectos clínicos da doença, o vírus, sua forma de atuação e o tratamento. Ocupa-se ainda de sua origem, do contexto mundial e regional do seu aparecimento, assim como dos preconceitos e discriminações decorrentes do seu surgimento.

O capítulo II se refere aos direitos humanos, seu histórico, a luta pela dignidade da pessoa humana, os tratados internacionais e sua eficácia no ordenamento jurídico brasileiro. São analisados os princípios e direitos fundamentais referentes ao tema, insculpidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

O capítulo III trata da discriminação, da AIDS e dos direitos humanos, relacionando os três assuntos. Enfatiza-se a importância dos direitos humanos no combate à discriminação e as conseqüências desta para o portador do HIV/AIDS. Discute-se ainda a mistificação da AIDS e sua transformação em castigo, em face das especulações a respeito da doença e as influências dessas concepções para a disseminação do vírus e para a saúde pública e, principalmente, do portador.

A AIDS é uma doença sem cura, não um mal que veio castigar os "pecadores" e os "desvirtuados". Ela afeta qualquer um em qualquer lugar. Independe de opção sexual, condição social, cor, raça ou qualquer outro pré-requisito. Deve-se evitar o contágio do vírus HIV, adotando-se cuidados essenciais e comportamento seguro, não através do desprezo e da indiferença. Em suma, através do amor e do carinho, deve-se conceder uma vida digna a quem possui o vírus.


CAPÍTULO I

AIDS E SEU SURGIMENTO

1.1 Síndrome da imunodeficiência adquirida

A sigla AIDS, originária do nome científico na língua inglesa, significa acquired immunological deficience syndrome (síndrome da imunodeficiência adquirida). Assim foi classificada à época de sua descoberta, pois a doença é caracterizada por diversos sintomas, por afetar o sistema imunológico do portador e por ser contraída mediante contágio e não hereditariamente. O HIV (human immunodeficiency virus) é o agente causador da doença, responsável pela destruição do sistema imunológico.

Para uma melhor compreensão sobre a atuação desse vírus, é preciso antes entender como atua nosso sistema imunológico. No corpo humano existem células de defesa que agem quando algo estranho aparece. Assim, o que não pertence ao organismo provoca a reação de seus mecanismos de defesa:

Há vários tipos de glóbulos brancos, cada um com sua função específica e necessária a desempenhar no sistema imunológico. Um tipo de glóbulo branco, o macrófago dendrítico, funciona como elemento de reconhecimento e alerta inicial; localiza-se no fígado, no baço e nos gânglios. Quando identificam um germe invasor, enviam sinais químicos, que são reconhecidos pelos linfócitos T-helper, responsáveis por fazer soar o alarme de alerta geral no organismo. Ao receber esse sinal, o sistema imunológico envia comandos para os linfócitos T-killer, cuja função é localizar os invasores e levar as células B a destruí-los, ao mesmo tempo em que células fagóticas são mobilizadas, com a tarefa de limpar o organismo dos germes estranhos (VALENTIM, 2003, p. 33).

Ao entrar na corrente sanguínea, o vírus HIV instala-se, exatamente, nos linfócitos T– helper, fazendo com que estes não mais realizem sua função precípua, que é comunicar a ocorrência de uma invasão. Com isso, o sistema imunológico desconhece os invasores sejam eles quais forem, dando livre acesso aos germes causadores de doenças (VALENTIM, 2003).

Portanto, a perda das defesas do organismo em razão presença do vírus provoca diversas doenças, algumas denominadas de oportunistas1. Em um indivíduo não infectado, tais doenças são facilmente curáveis; já para um portador do vírus HIV, tornam-se perigosas e às vezes mortais, pois aproveitam-se do progressivo enfraquecimento do sistema imunológico. Observe-se, contudo, que esse enfraquecimento não é imediato. Durante algum tempo, o vírus HIV permanece latente, até que comece sua fase de replicação. Esta é feita através do material genético do linfócito T:

O HIV possui uma enzima, a transcriptase reversa, responsável pela reprogramação dos materiais genéticos da célula T4 infectada produzindo o DNA de filamento duplo. As células infectadas servem de reservatórios para o HIV, permitindo que o vírus se esconda do sistema imunológico e possa ser transportado para infectar vários tecidos corporais (SMELTZER; BARE; BRUNNER, 2002, p. 1289-1290).

A doença possui três estágios: o primeiro caracteriza-se pela latência, já mencionada, do vírus HIV, antes de sua replicação. Nessa fase, o portador ainda se caracteriza como assintomático, pois não possui nenhum dos sintomas da soropositividade nem da AIDS. Não obstante, apesar de não externar os sintomas, possui a capacidade de infectar, podendo transmitir o vírus para outra pessoa. "Existem casos de pessoas que permanecerão como portadores assintomáticos pelo resto da vida, sem manifestar a doença" (VALENTIM, 2003, p.34):

A velocidade de produção do HIV vai depender do estado de saúde do hospedeiro. Caso o individuo não esteja vivenciando outro processo infeccioso, a reprodução do HIV pode ser lenta, e acelerada na presença da infecção ou quando o sistema imunológico está ativado. Esse fato pode explicar o período de latência que algumas pessoas vivenciam depois da infecção pelo HIV. Esse período varia de meses a anos, podendo a pessoa permanecer sem sintomas por muitos anos (SMELTZER; BARE; BRUNNER, 2002, p. 1.289-1.290).

No segundo estágio, o sistema imunológico ainda consegue combater precariamente algumas infecções, possuindo algum grau de defesa pelo organismo. Este já está fraco e debilitado, mas ainda não está sujeito às doenças oportunistas e possui carga viral menor que a quantidade de células de defesa. Essa fase abrange uma série de distúrbios, condições que debilitam, mas não são fatais, o que a distingue da AIDS propriamente dita (VALENTIM., 2003). A AIDS é o terceiro e último estágio da infecção. Nessa fase, ocorre o estabelecimento e desenvolvimento concreto do vírus no organismo humano, caracterizado pelas doenças oportunistas:

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Quando as infecções oportunistas ocorrem ou quando os níveis de linfócitos T CD4+ alcançam determinado nível (abaixo de 200 celulas/mm3 de sangue), dizemos que esta pessoa está com a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), doença que pode comprometer diferentes órgãos e sistemas do organismo (BATISTA; GOMES, 2000, p. 23).

Deve-se salientar o fato de que o desenvolvimento do vírus HIV no organismo humano é variável e depende de diversos fatores como: condições genéticas, reações aos medicamentos, alimentação, estilo de vida, convívio social e outros (FERREIRA, 2004). Em relação ao convívio social, significa dizer que o portador do vírus jamais deve ser discriminado, isso porque o estado psicológico e emocional é fator de extrema relevância para o combate ao desenvolvimento da doença (VALENTIM, 2003).

A transmissão do vírus HIV se dá pelo sêmen e secreções vaginais, através de relações sexuais. O HIV se encontra no sangue e pode ser transmitido através do compartilhamento de seringas entre os usuários de drogas ou por acidentes perfuro-cortantes com sangue contaminado. Existe, também, a possibilidade da transmissão da mãe para o filho durante a gestação, no parto ou durante o aleitamento. O risco de transmissão aumenta à medida que evolui a imunodeficiência da mãe (RACHID; SCHECHTER, 2004)

É importante ressaltar que a transmissão por via sexual é bidirecional. Portanto, seja qual for o sexo dos parceiros, ambos correm o risco de adquirir o vírus, seja em relações homossexuais ou heterossexuais (BATISTA; GOMES, 2000).

Não é possível determinar que tipo de pessoa pode contrair o vírus. Atualmente não mais se usa a expressão "grupos de risco" ou "comportamento de risco". Assim, pessoas que não possuem comportamento de risco podem contrair o vírus através de outras que adotam tal tipo de comportamento. Há ainda a hipótese de pessoas que contraem o vírus por acidente ou responsabilidade de terceiros. São situações que nada têm a ver com comportamento sexual de risco.

Portanto, não se deve estigmatizar e julgar quem pode ou quem não pode contrair AIDS. Todos podem ser vítimas dessa doença, seja por acidente ou por negligência. A verdade é que se trata de uma doença como qualquer outra, diferenciando-se apenas porque, ainda, não tem cura. Apesar de sua gravidade ela não torna seus portadores diferentes dos outros ou com menos dignidade.

Com a descoberta da forma de atuação do vírus, foram criados medicamentos que combatem o desenvolvimento da doença. São os chamados coquetéis anti - HIV. Começaram a ser desenvolvidos no início da década de noventa, consistindo basicamente na inibição da transcriptase reversa e da protease. Através de sua ação, o portador do vírus pode levar uma vida normal sem previsão específica sobre o tempo em que ficará sadio sem manifestar a doença (VALENTIM, 2003):

Fundamentalmente, é preciso convencer-se de que, embora a AIDS seja ainda incurável (no sentido de que não se pode eliminar o HIV do corpo), mais e mais se torna uma doença tratável. Existem tratamentos para todas as doenças oportunistas (quanto mais precocemente curadas, melhor é a qualidade de vida do doente). E mais: estão sendo desenvolvidos medicamentos preventivos de cada vez melhor qualidade para evitar os possíveis desenvolvimentos da imunodeficiência (DANIEL; PARKER, 1991, p. 126).

A primeira droga anti-HIV aprovada foi o AZT (1987). Sua função é inibir a transcriptase reversa. Em 1995, foi desenvolvido o saquinavir, o primeiro inibidor da protease. Outras drogas foram sendo disponibilizadas no decorrer da década de noventa para comercialização, destacando-se as seguintes: DDI, DDC, 3TC, D4T, Abacavir e Nevirapina (BATISTA; GOMES, 2000). Apesar de proporcionarem maior tempo de vida aos pacientes com AIDS, os efeitos colaterais desses medicamentos constituem um dos principais motivos do abandono do tratamento (VALENTIM, 2003).

A AIDS não tem cura, mas pode ser evitada. No ato sexual deve-se ter alguns cuidados básicos utilizando-se preservativos e evitando-se grande número de parceiros. Outro cuidado importante é não compartilhar seringas ou objetos cortantes que possam transmitir o vírus, como alicate de unhas ou agulhas. A mulher grávida deve fazer rotineiramente o pré-natal, pois há possibilidade de que criança de mãe contaminada venha a nascer sem o vírus. Na hipótese de se precisar fazer transfusão de sangue, deve-se procurar locais onde ele é devidamente testado (BRASIL, 2004).

Além da prevenção pessoal, feita através de cuidados com o corpo, outro tipo de prevenção extremamente importante é a prevenção feita à população em geral pelo poder público. As ações estatais devem ser cada vez mais atuantes para evitar o aumento da epidemia. É preciso também proporcionar aos doentes um tratamento humano e solidário, através de informações sobre as formas de transmissão, destacando-se também as formas pelos quais a AIDS não é transmitida, nesse aspecto, é preciso esclarecer que gestos como abraço, beijo, toque e o uso de talheres e pratos não transmitem a AIDS. Além do tratamento com medicamentos, os portadores do vírus devem ser tratados com dignidade, vivendo com total apoio e amor. Dentro desse clima de solidariedade, eles podem suportar, aceitar e entender sua condição, conseguindo assim melhores resultados na luta pela vida.

1.2 Origem e disseminação

a) A AIDS no mundo

Em 1981, foram relatados nos Estados Unidos cinco casos de Pneumocystis carinii em homossexuais masculinos jovens, sendo notificados ao Center for Desease Control and Prevention - CDC. A doença destruía o sistema de defesa da pessoa infectada e provocava a morte em pequeno espaço de tempo.

O cientista norte-americano Robert Gallo, do National Institute of Health (Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos), foi um dos precursores na descoberta do vírus, paralelamente com o Dr. Luc Montagnier, do Instituto Pasteur de Paris (França). Ambos pesquisaram sobre o vírus que provocava a doença. O Dr. Robert Gallo descobriu o vírus HTLV-3 (terceiro retrovírus linfotrópico T humano) e o Dr. Luc Montagnier isolou um retrovírus humano, denominando-o de LAV (Lymphadenopathy Associaded Virus). Posteriormente, ao se comparar o LAV e o HTLV-3, descobriu-se que se tratava do mesmo tipo de vírus (VALENTIM, 2003).

Não se sabe quem identificou o vírus provocador da AIDS, pois a comunicação da descoberta pelos Estados Unidos deu-se um dia após a publicação da descoberta francesa no Jornal New York Times, gerando agitadas discussões a respeito. Enfim, em 1987, houve a celebração de um acordo entre a França e os Estados Unidos para encerrar os conflitos, apesar de ainda existirem (VALENTIM, 2003).

O mundo reagiu de forma temerosa e assustada, ante a repercussão causada pela AIDS. Registre-se, nesse aspecto, a imprudência de alguns médicos que, sem nenhum respaldo científico, definiram a doença como "câncer gay", gerando medo e preconceito. Os próprios governantes, amedrontados, adotaram políticas de isolamento e quarentena, ferindo os direitos humanos (RUNICKI, 2004).

Com essa onda de infecção causada pelo vírus e a disseminação do preconceito, a comunidade internacional resolveu atuar, oferecendo financiamentos de campanhas de prevenção em âmbito mundial. Em 1985, foi realizada a Primeira Conferência Internacional de AIDS; em 1986, a Organização Mundial de Saúde - OMS criou o Global Programme on AIDS; em 1987, Norine Kaleeba fundou, em Uganda, a organização não-governamental - ONG The AIDS Support Organization - TASO; em 1996 o Global Programme on AIDS transformou-se em Programa de AIDS das Nações Unidas em HIV / AIDS – UNAIDS (GALVÃO, 2002).

Atualmente, milhares de ONGs e programas estatais atuam na prevenção da AIDS. Segundo o relatório do Programa da AIDS das Nações Unidas – UNAIDS, divulgado em seis de julho de 2004, cerca de 38 milhões de pessoas, em todo o mundo, têm o HIV. No último ano, mais cinco milhões contraíram o HIV (dados de 2004). Portanto, apesar de todos os esforços em prevenir a incidência da AIDS, ela ainda persiste em números altos.

b) A AIDS no Brasil

As primeiras notificações sobre a AIDS no Brasil ocorreram por volta da década de 80. Assim como em todo o mundo, os primeiros portadores do HIV foram vítimas de discriminação e preconceito. Conforme já referido, a doença foi denominada de "câncer gay", por ter sido diagnosticada primeiramente em homens com práticas homossexuais e bissexuais.

Em 1981, o Jornal do Brasil apresentou a primeira reportagem sobre a AIDS. Ainda desconhecendo a verdadeira natureza da doença, elaborou a matéria com o seguinte título: "Câncer em homossexuais é pesquisado nos EUA" (GALVÃO, 2002, p. 6).

A AIDS disseminou-se com incrível velocidade. Segundo o Boletim Epidemiológico (Ministério da Saúde), em 1982, foram notificados dez casos de AIDS; em 1985, esse número aumentou para quinhentos e setenta e três casos, sendo vinte e dois em mulheres; no ano seguinte, o número já havia dobrado (GALVÃO, 2002).

Atualmente, segundo o Relatório Mundial sobre a Epidemia de AIDS divulgado pelo Programa de AIDS das Nações Unidas - UNAIDS, estima-se que existem no Brasil seiscentas e sessenta mil pessoas com o vírus da AIDS.

Como se observa, em menos de vinte e cinco anos, houve um aumento exorbitante no número de casos de AIDS. É preciso observar também que sua incidência deixou de ser majoritária em homossexuais, para atingir heterossexuais. A distribuição da doença no Brasil não é homogênea, verificando-se, entretanto uma alta concentração na região Sudeste e nas capitais. Contudo, um novo fenômeno tendencial está se formando atualmente no país: trata-se da interiorização, da feminilização e da pauperização da incidência dos casos de AIDS.

Com a acelerada disseminação da doença, foram tomadas as primeiras providências no âmbito do poder público, como a criação de secretarias e ONGs, buscando-se controlar a pandemia que se instalava. A comunidade gay passou a mobilizar-se e a alertar sobre os perigos de contágio e as formas de prevenção.

Contrariando o bom senso, com a descoberta de outras formas de transmissão, que não a sexual, as manifestações preconceituosas, ao invés de se retraírem, aumentaram e se alastraram para outros tipos de pessoas: prostitutas, presos, drogados, moradores de rua etc. Esses segmentos foram marginalizados e vítimas de atitudes degradantes: do isolamento social à negação de atendimento em hospitais.

Apesar da luta pela igualdade e pela dignidade do portador do vírus HIV e do doente de AIDS, ainda hoje presenciamos constantes demonstrações de discriminação e preconceito. A sociedade tenta, a todo custo, afastar-se de uma realidade que a rodeia, visto que ninguém está livre de contrair o vírus. Em todo esse contexto, a informação e a educação são as únicas formas de humanizar a sociedade e prevenir futuras infecções.

1.3 A AIDS e a terceira epidemia

Com seu surgimento, a AIDS deu margens ao surgimento de teorias e estigmas, que se revelaram tão importantes quanto seus aspectos clínicos e físicos:

"Segundo o Dr. Jonathan Mann, da Organização Mundial de Saúde, podemos indicar pelo menos três fases da epidemia de AIDS (...). A primeira é a epidemia da infecção pelo HIV que silentemente penetra na comunidade e passa muitas vezes despercebida. A segunda epidemia, que ocorre alguns anos depois da primeira, é a epidemia da própria AIDS: a síndrome de doenças infecciosas que se instalam em decorrência da imunodeficiência provocada pela infecção pelo HIV. Finalmente, a terceira (talvez, potencialmente, a mais explosiva) epidemia de reações sociais, culturais, econômicas e políticas à AIDS, reações que, nas palavras do Dr. Mann, são ‘tão fundamentais para o desafio global da AIDS quanto a própria doença’" (HERBERT; PARKER, 1991, p.13).

A sociedade, desde as suas origens, sempre viveu rodeada de tabus e preconceitos. Estes foram alimentados pelos governantes e pela Igreja, especialmente na Idade Média. Manter um povo na ignorância sempre foi o maior artifício utilizado para manipulá-lo. Sem o conhecimento, o indivíduo era subjugado a fazer o que se entendia como certo aos olhos de Deus. Mas, com toda certeza, esse comportamento passivo e subserviente era vantajoso para os poderosos e a elite. Estes utilizavam-se da ignorância e do medo do povo, usavam seu trabalho para enriquecer e o deixavam à mercê das doenças e da miséria.

Sem dispor da liberdade para construir suas próprias crenças, o indivíduo teve que aderir a doutrinas que, de forma fugaz e leviana, o faziam acreditar que aquela era a única verdade. Era difundido o pensamento de que, se as regras da Igreja não fossem seguidas, a condenação divina após a morte era certa. Esses dogmas atemorizavam as pessoas, favorecendo sua manipulação.

Até hoje, vemos o reflexo dessa manipulação nos preconceitos e no falso moralismo. Como exemplo significativo desse moralismo exacerbado, podemos apontar o sexo, que foi e é tido como padrão para definir moral e caráter. Para boa parte da sociedade, a vida sexual deve ser regrada de acordo com o que estabelecem os bons costumes.

Esse forte preconceito contra quem adotasse qualquer outro estilo de vida, que não fosse aquele preestabelecido pela sociedade, se intensificou com o surgimento da AIDS. Foi ela, erroneamente, associada primeiramente aos homossexuais e depois aos bissexuais que não se conduzissem dentro dos padrões firmados pela Igreja. Ainda assim, após algumas descobertas sobre o vírus, mostrando que havia outras formas de transmissão, além da relação sexual, a doença foi associada à marginalidade, perseguindo aqueles que têm comportamento sexual diferenciado do padronizado, como prostitutas, gays e drogados:

Mesmo diante das significativas evidências em contrário, entretanto, a visão da AIDS como doença homossexual e todos os estigmas ligados à própria homossexualidade continuaram a ter um grande efeito na modelação da resposta brasileira à epidemia. Mesmo quando se questionou o foco exclusivamente homossexual dado nessa visão inicial, mesmo assim, essa, com sua ênfase definitiva na fundamental marginalidade do doente de AIDS, parece ter servido como uma espécie de modelo para a gradual expansão da epidemia no imaginário popular (DANIEL; PARKER, 1991, p. 18).

A AIDS veio a consolidar essa secular orientação, segundo a qual todos devem seguir padrões estabelecidos de acordo com o que é conveniente para a sociedade. Entretanto, o ser humano é livre para fazer suas opções, para viver do modo que lhe parece certo. Suas opções sexuais e suas doenças não o fazem menos humano ou menos digno de respeito.

Não obstante as informações difundidas sobre a doença, ter AIDS significa ter comportamento sexual promíscuo. A associação da AIDS com o comportamento sexual das pessoas é a fonte de todo o preconceito, que vai se ramificando para outras formas de discriminação, como o medo infundado do contágio pelo simples contato social.

Seguindo o pensamento de Herbert Daniel e Richard Parker, apesar das várias demonstrações de incompreensão e intolerância frente à epidemia de AIDS, pode-se vislumbrar alguma esperança no fato de a doença não ter evoluído sem ter sido questionada. Um crescente número de voluntários e organizações vem se empenhando no combate à discriminação e ao preconceito. Ao fornecerem informações e expressarem solidariedade, tais organismos provam que essas são as únicas respostas verdadeiramente eficientes para barrar o avanço da AIDS (HERBERT; PARKER, 1991).

A AIDS traz ao seu portador, e também a quem o rodeia, a nítida presença da morte. Ao portador cabe entender a doença, aceitá-la e viver com ela. É uma tarefa difícil, mas seria muito facilitada, se a sociedade entendesse que a AIDS é apenas uma doença, que pode matar sim, mas que seu portador pode viver por muitos anos e pode conviver socialmente sem prejudicar a vida de terceiros.

Os portadores do vírus HIV, com a ajuda dos coquetéis anti-HIV, podem levar uma vida normal como portadores assintomáticos. Podem resistir à doença, se forem corretamente tratados. Um ambiente social acolhedor e solidário é essencial a esse tratamento. Portanto, não se pode condenar à morte quem adquiriu a doença, pois não há a certeza de que acontecerá. É preciso ajudar o portador do HIV nessa batalha que trava com a doença. Nesse sentido, afirma Herbert Daniel 2 (DANIEL; PARKER, 1991, p. 49-50):

"Estou tendo, nos meus dias de vida, nestes meus dias da vida, nestes meus dias em vida quando descobri que a vida é uma descoberta da fragilidade, na vida destes meus dias onde a morte passou a ser uma presença que nada tem de pornográfica ou obscena (pelo contrário, sempre no palco, como uma respeitável atriz que rouba muita das melhores cenas), estou tendo a vida que os dias põem e de que me disponho – com uma gula que nada tem de incerteza, mas tem certamente de indirigida, como uma fome que já deveria ter nascido há milênios, se eu soubesse já há milênios os milenares prazeres de cada segundo que a intensidade da hora da vida põe e predispõe em cena".

E continua: "Ela me venceria, não se me matasse, mas se me retirasse a consciência de que vivo com ela, e que devo me adaptar a certas circunstâncias de vida impostas pela doença". A sensação que tem o portador do HIV sobre a proximidade da morte já é suficiente para transformar sua vida. À sociedade caberia a tarefa de amenizar essa sensação, através da solidariedade, do afeto e da compreensão. Mas ao invés disso, decreta a morte civil dos portadores, negando-lhes direitos fundamentais e tratando-os como pessoas estigmatizadas.

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Sobre a autora
Tatyane Guimarães Oliveira

advogada em João Pessoa (PB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Tatyane Guimarães. Aids e discriminação:: violação dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 762, 5 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7126. Acesso em: 18 abr. 2024.

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