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Análise crítica da exigência de três anos de atividade jurídica para o ingresso nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público

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10/08/2005 às 00:00
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7. Ausência de razoabilidade na nova exigência constitucional

Ab initio, cabe registrar que o princípio da razoabilidade pode ser analisado, de modo fungível, como sinônimo do princípio da proporcionalidade. Esse é o entendimento da melhor doutrina. [19]

A escola alemã, no desenvolvimento do princípio da proporcionalidade, determinou sua decomposição em três subprincípios, a saber: adequação, necessidade ou exegibilidade e proporcionalidade em sentido estrito. Pela adequação, deve a medida administrativa ou legislativa emanada do Poder Público ser apta para o atingimento dos fins que a inspiram. Trata-se, na síntese de Daniel Sarmento, "da aferição da idoneidade do ato para consecução da finalidade perseguida pelo Estado." [20]

Considerando essa dimensão da adequação do princípio da razoabilidade (proporcionalidade), pode-se perceber que a exigência dos três anos revela-se inócua para os fins colimados, qual seja, a busca por uma maior qualidade dos candidatos nos processos seletivos. Desse modo, o tempo de atividade jurídica não surge como instrumento capaz de apurar a eficiência de um advogado, pois, durante todo o período de militância, nada assegura a qualidade do seu trabalho e, muito menos, sua sensibilidade para o exercício da Magistratura.

Ademais, com base na doutrina de Celso Spitzcovsky [21], "o exercício da profissão pode tê-lo transformado em um especialista para uma determinada matéria, fazendo-o perder, por força desse aspecto, uma visão interdisciplinar imprescindível para o exercício de tal mister."

Nota-se que a nova exigência constitucional não é adequada, por não ser apta para o atingimento do fim que a inspirou. Vale dizer, não atende ao princípio da razoabilidade, uma vez que não garante maiores qualidades daqueles que intentam ingressar nas carreiras do Magistratura e do MP. Por esse viés, há grande possibilidade de se argumentar juridicamente a inconstitucionalidade da nova ordem, uma vez que apresenta-se desarrazoada.

É plenamente possível atender aos princípios da razoabilidade e eficiência sem a utilização dessa restrição temporal imposta pela Carta Magna. Para tanto, deve-se manter, ou em alguns casos aumentar, o rigor nas diversas fases dos concursos públicos, de forma a apurar não só os conhecimentos teóricos e práticos do candidato, mas também, o seu perfil psicológico, a sua sensibilidade para o exercício da carreira. O mesmo rigor, conforme já abordado, deverá ser adotado durante o estágio probatório, em que devem ser apurados os itens de ordem prática, tais como rendimento, assiduidade e produtividade.


8. Entendimento Pretoriano do STF

Enquanto não surge a legislação infra-constitucional que regulamente a matéria, obrigatoriamente de modo razoável, torna-se de extrema relevância o conhecimento da interpretação dada pelo órgão guardião da Constituição Federal, que é o STF.

Não vai tardar para que o Excelso Pretório se manifeste sobre o assunto, quicá, através das reiteradas decisões acerca dessa matéria, ensejando a aprovação de súmula vinculante. Enquanto não vem essa importante manifestação do colegiado, resta conjecturar sobre o entendimento que irá prosperar na Suprema Corte.

As demandas para o STF começaram a ganhar força com a publicação do Edital para o 22º Concurso Público para Provimento de Cargo de Procurador da República, que, em seu art. 6º, § 1º, exige que o candidato comprove os três anos de atividade jurídica já na inscrição para o certame. Como a autoridade coatora é o Procurador-Geral da República, o órgão competente para julgar é o STF. Dezenas de Mandados de Segurança, com pedido de liminar para garantir a inscrição, foram impetrados e com base nos julgamentos dessas demandas, dá para esboçar um prognóstico de como será o entendimento do STF sobre o tema.

Dos atuais 11 Ministros, 8 tiveram a oportunidade de se manifestar preliminarmente, como relatores dos Mandados de Segurança, ao analisar a concessão ou não do pedido de liminar dos candidatos ao cargo de Procurador da República para se inscreverem sem precisar, em tal momento, comprovar os três anos de atividade jurídica.

A situação se apresenta bem equilibrada no tocante ao posicionamento dos ministros. Há uma aparente divisão em dois grupos: uma corrente, seguida por quatro ministros, é favorável que a nova exigência constitucional só seja cobrada na posse do cargo e uma outra corrente, simpatizada por também quatro ministros, entende estar correta a cobrança já na inscrição, conforme a exigência do Edital para o 22º Concurso do Ministério Público Federal.

A corrente favorável à cobrança apenas no ato da posse é composta pelos Ministros Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso, Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence. Tais magistrados trazem, nos seus despachos de deferimento da medida liminar uma série de argumentos, baseando-se sempre na ausência de razoabilidade da cobrança na inscrição. O eminente Ministro Carlos Ayres Britto sintetiza, de uma maneira lógica e sensata que "o prazo de três anos de atividade jurídica é exigido do bacharel em direito para o ingresso na carreira do Ministério Público. Ingresso, esse, que se dá com a posse e não com o ato de inscrição no respectivo concurso. Lógico." [22]

O Ministro Marco Aurélio afirma categoricamente que "compelir-se, em inscrição que não se mostra definitiva, à declaração do atendimento do requisito de três anos de atividade jurídica na condição de bacharel em Direito evidencia o menoscabo ao princípio da razoabilidade, a colocação, em plano secundário, da máxima do determinismo...", mais adiante, nesse mesmo despacho, chega a dizer que alijar do certame candidatos que poderão, à época da posse, ter a atividade jurídica necessária é menosprezar a própria dignidade do homem. [23]

O Ministro Cezar Peluso, nos seus despachos concedendo a medida liminar, vai mais longe um pouco, deixando-se antever seu posicionamento em relação à matéria. Ele afirma que "é dotada de razoabilidade jurídica a alegação de que a norma do art. 129, § 3º, da Constituição da República, na redação da Emenda Constitucional n.º 45/2004, não impõe que os 3 (três) anos de atividade jurídica prévia, exigidos do candidato à carreira do Ministério Público, tenham por termo inicial a aquisição do título de bacharel." [24] Desse modo, o Ministro Peluso oferece guarida ao entendimento de que as atividades de estágio, anteriores ao bacharelado, possam vir a ser consideradas como atividade jurídica. Posição essa que encontra eco na doutrina, conforme abordado no item 3 deste texto.

Na outra corrente, composta pela Ministra Ellen Gracie e pelos Ministros Carlos Veloso, Eros Grau e Joaquim Barbosa, a fundamentação que respalda o indeferimento da liminar gira sempre em torno do julgamento anterior da ADIN 1.040/DF, de relatoria da Ministra Ellen Gracie, onde se chegou à conclusão, por maioria de votos, que a exigência temporal para ingresso nas carreiras do Ministério Público da União não representa ofensa ao princípio da razoabilidade. Assim, num mero juízo de delibação, tais ministros negaram a liminar, sem muito justificar o fato, somente tendo por base esse anterior julgamento da ADIN 1.040/DF, que, a nosso ver, não prejudica a análise da matéria, carecendo de uma nova análise, a partir da nova ordem constitucional imposta.

Em suma, atualmente, o colegiado do STF ainda não se manifestou sobre o tema. Existem posicionamentos isolados de alguns relatores, dando margem a um prognóstico que se apresenta bem dividido. A corrente que se manifestou, preliminarmente, favorável à cobrança apenas na posse, além de encontrar guarida na Súmula 266 do STJ, apresenta vários argumentos plausíveis, possuindo, portanto, um aparente maior poder de convencimento quando o Plenário for se reunir para deliberar sobre o assunto. Espera-se, assim, que aqueles que ainda não se manifestaram e os que indeferiram as liminares se curvem às sensatas, razoáveis e variadas argumentações, já previamente manifestada na Corte e que, certamente, tomarão uma maior dimensão.


9. Considerações finais

Desconsiderando a possibilidade de argumentação da inconstitucionalidade, pela falta de razoabilidade da nova exigência constitucional, entende-se que é viável um maior aproveitamento teleológico da expressão atividade jurídica. Para tal aproveitamento, faz-se necessário que tanto as supervenientes leis reguladoras que venham a ser editadas, quanto os editais de concurso observem os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários sobre a materia, sob pena de flagrante irrazoabilidade.

Para que o Direito não ignore a realidade, é imprescindível uma conotação ampla da expressão "atividade jurídica", não podendo, de forma alguma, ser exigida nos concursos públicos somente a "prática forense" ou a "atividade advocatícia", uma vez que nem a Carta Magna quis dar esse aspecto restritivo. Ademais, a interpretação da expressão tem de ser realizada com base na unidade da Constituição, de modo que não deve ser utilizada a significação que inviabilize a concretização da norma constitucional que não impõe uma idade mínima para ser juiz de direito, estabelecendo apenas o mínimo de 21 anos para ser juiz de paz.

Por fim, ressalte-se que a tarefa do Judiciário, como ultima ratio, é de extrema importância nessa missão de harmonizar a nova exigência, dando-lhe uma significação lógica e razoável nos casos de os atos da Administração (leis ou editais de concurso) restringirem a acepção da expressão. Nesse sentido, tem-se, em arremate, o escólio de Luís Roberto Barroso [25].

O juiz não pode ignorar o ordenamento jurídico. Mas, com base em princípios constitucionais superiores, poderá paralisar a incidência da norma no caso concreto, ou buscar-lhe novo sentido, sempre que possa motivadamente demonstrar sua incompatibilidade com as exigências de razoabilidade e justiça que estão sempre subjacentes ao ordenamento.


10. Referências bibliográficas

ALMEIDA, Péricles Ferreira de. Prática de Jurídica e a Emenda Constitucional n.º 45/2004. Disponível na Internet: <www.jus.com.br/doutrina/texto> Acesso em 28/03/2005;

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2004;

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 1991;

DA CUNHA JÚNIOR, Dirley & MARTINS, Carlos Eduardo Behrmann Rátis. EC 45/2004 Comentários à Reforma do Poder Judiciário. Salvador: Juspodium, 2005;

GOMES, Luiz Flávio. Ingresso na Magistratura e no MP: 3 anos de atividade jurídica garantem profissionais experientes? Disponível na Internet: <http://www.ultimainstancia.ig.com.br/colunas/ler_noticia.php?> Acesso em 28/03/2005;

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LIMA, George Marmelstein. Mandado de Segurança contra exigência de prática de advocacia em concurso público. Disponível na Internet: < www.jus.com.br> Acesso em 25/03/2005;

MAZZILLI, Hugo Nigro. A prática de "atividade jurídica" nos concursos. Disponível na Internet: <http://www.escritorioonline.com> Acesso em 28/03/2005;

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16 ed. São Paulo: Atlas, 2004;

RIPERT, Georges. Aspectos Jurídicos do Capitalismo Moderno. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1947;

SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003;

SPITZCOVSKY, Celso. A Inconstitucionalidade do Critério de Prática de Atividade Jurídica para Concurso Público. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br> Acesso em 05/04/2005;

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 1998.


Notas

01 Pensamento conforme o escólio de Hugo Nigro Mazzilli, manifestado no artigo A prática de "atividade jurídica" nos concursos. Disponível na Internet: <http://www.escritorioonline.com> Acesso em 28/03/2005.

02 Diz o art. 7º da EC 45/2004: "Art. 7º O Congresso Nacional instalará, imediatamente após a promulgação desta Emenda Constitucional, comissão especial mista, destinada a elaborar, em cento e oitenta dias, os projetos de lei necessários à regulamentação da matéria nela tratada, bem como promover alterações na legislação federal objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional."

03 Op. cit., p.2.

04 Nesse sentido, reiteradamente, vem se manifestando o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que editou a súmula 266, com o seguinte teor: "O diploma ou habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público."

05 GOMES, Luiz Flávio. Ingresso na Magistratura e no MP: 3 anos de atividade jurídica garantem profissionais experientes? Disponível na Internet: <http://www.ultimainstancia.ig.com.br/colunas/ler_noticia.php?> Acesso em 28/03/2005.

06 Sobre o conceito de prática jurídica em nossos Tribunais, inclusive com a transcrição de ementa de diversos julgados do STJ, vide o excelente artigo "Mandado de Segurança contra exigência de prática de advocacia em concurso público", elaborado pelo juiz George Marmelstein Lima, disponível em www.jus.com.br.

07 DA CUNHA JÚNIOR, Dirley; MARTINS, Carlos Eduardo Behrmann Rátis. EC 45/2004 Comentários à Reforma do Poder Judiciário, p. 20

08 Op. cit., p.3.

09 Cabe registrar a possibilidade de o STF, como guardião da Constituição Federal, se manifestar sobre o assunto, interpretando a expressão constitucional trazida pela emenda, constituindo-se num norte para todos os atos jurídicos. Inclusive, pode ainda o Excelso Pretório, com base no novo Art. 103-A, futuramente, editar uma súmula vinculante sobre o tema.

10 O item do Edital elenca como requisito para o cargo: "3.4 – Ser titulado bacharel em Direito e ter exercido três anos de advocacia, contados a partir da data de expedição da carteira provisória e/ou definitiva quando da inscrição na OAB, sem contar o estágio."

11 Resolução Administrativa n.º 1046/2005, aprovada pelo Pleno do TST em 07/04/2005.

12 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14 ed., p. 23

13 ALMEIDA, Péricles Ferreira de. Prática de Jurídica e a Emenda Constitucional n.º 45/2004. Disponível na Internet: <www.jus.com.br/doutrina/texto>. Acesso em 28/03/2005.

14 RIPERT, Georges. Aspectos Jurídicos do Capitalismo Moderno. p. 33

15 O constitucionalista Alexandre de Moraes, em seu manual "Direito Constitucional", p. 46, enumera e apresenta todos os princípios interpretativos, conforme a doutrina de J. J. Gomes Canotilho.

16 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6 ed., p. 196.

17 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 2003. p. 22.

18 Declaração haurida nas notícias divulgadas no site do TST (www.tst.gov.br).

19 Luís Roberto Barroso, acompanhado por Daniel Sarmento e outros, defende a idéia de fungibilidade dos dois princípios, uma vez que almejam o mesmo resultado, que é o de coibir o arbítrio do Poder Público, invalidando leis e atos administrativos caprichosos, contrários aos valores constitucionais. O autor afirma, sem embargo da origem e do desenvolvimento diversos (Razoabilidade: origem anglo-saxão e Proporcionalidade: origem alemã), que tanto um quanto outro "abrigam os mesmos valores subjacente: racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos arbítrios ou caprichos. Por essa razão, razoabilidade e proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis." (Interpretação e Aplicação da Constituição, cit., p. 372/373).

20 Op. cit., p. 87.

21 SPITZCOVSKY, Celso. A Inconstitucionalidade do Critério de Prática de Atividade Jurídica para Concurso Público. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br> Acesso em 05/04/2005.

22 Despacho do Relator Min. Carlos Ayres Britto, concedendo a medida liminar pleiteada no Mandado de Segurança 25504 MC/DF, julgamento do dia 30/08/2005 e publicado no DJ do dia 08/09/2005.

23 Despacho do Relator Min. Marco Aurélio, concedendo a medida liminar pleiteada no Mandado de Segurança 25499/DF, julgamento do dia 27/08/2005 e publicado no DJ do dia 09/09/2005.

24 Manifestações inseridas nos despachos dos Mandados de Segurança n.ºs 25503 MC/DF, 25501 MC/DF e 25515 MC/DF.

25 Op. cit., p. 291.

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Sobre o autor
Luciano Chaves de Farias

agente de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado da Bahia, bacharel em Direito e em Turismo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Luciano Chaves. Análise crítica da exigência de três anos de atividade jurídica para o ingresso nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 767, 10 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7143. Acesso em: 20 abr. 2024.

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